sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

Autonomização da Língua Caboverdiana 4

F2
LCV
N    da  Djon   un livru

MLP
Eu  da(r) João  um  livro
CSP
Dei  um  livro  ao  João

                                            (LCV: Língua Caboverdiana; MLP: Material Linguístico Português; CSP: Correspondência Semântica em Português)


Aqui também todo o material linguístico vem do Pt. A autonomização consiste no emprego obrigatório do sujeito e na distribuição dos dois complementos. Em Pt, o complemento direto vem logo a seguir ao predicado, enquanto em LCV há uma mudança na ordem dos dois complementos. Primeiro vem o que tem o estatuto de  indireto em Pt e só depois o direto.  Seria inaceitável em LCV a frase «N da un livru Djon».  Entretanto, raramente poder-se-ia ouvir a frase «N da un livru pa Djon». Aqui se não se pode falar nem de simplificação, nem de complexificação, é forçoso admitir que há uma reestruturação nova.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

Autonomização da Língua Caboverdiana (LCV), 3


No quadro do DIA INTERNACIONAL DAS LÍNGUAS MATERNAS, vamos dar continuidade ao estudo da autonomização da LCV, através das suas duas matrizes, línguas africanas e o português.

As frases objeto de estudo, na sua maioria, são retiradas do romance Odju d'Agu, 1987, da minha autoria.

 Antes de  iniciar com a análise das frases (F 1, F 2 , F 3 ...), vejamos as  siglas utilizadas:

·       LCV = Língua Caboverdiana; 
·       MLP = Material Linguístico Português;
·       CSP = Correspondência Semântica em Português;
·        OD = Origem Desconhecida;
·       Pt = Português ou língua portuguesa;
·       OA = Origem Africana.
·       RSL = Recriação Semântica Local
·       F1, F2, F 3 … = Frase 1, Frase 2, Frase 3…
..................................................................


F1
LCV
Ami   N   krê

MLP
Mim  eu  querer
CSP
Quero / eu quero

 Em LCV o sujeito pronominal é obrigatório, exibindo, por vezes, uma forma tónica e outra átona. Em Pt ele é facultativo. Somente pelo MLP, a frase é incompreensível. Ora, se em Pt a forma nula ou expletiva do sujeito pronominal é facultativa (quero ou eu quero), o mesmo, de uma forma geral, não acontece em LCV. Apenas no imperativo da segunda pessoa[1] do singular (kume = come) ou em algumas poucas frases como «txobe txeu», o sujeito nulo é permitido.   Isto levou Baptisata,  2002:254, a considerar a LCV uma língua pro-drop, na terminologia chomskiana (1981), enquanto Prata 2004:104, pelas mesmas razões, defende o estatuto semi pro-drop para a LCV.

Ora, se todo o material linguístico é português (ami <mim; N < mim; krê < querer), a sintaxe do mesmo não tem sentido, contrariamente com o que acontece com «Ami N krê». Mais do que simplificação, tudo indica que estamos perante um caso de complexificação estrutural.

Segundo Santos 2000:178, “N” poderá ter vindo também do mandinga. Vejamos o que diz ela: “Nós apenas constatamos que que no grupo mandê atesta-se a mesma consoante nasal homorgânica como marca da primeira pessoa do singular. Ex:  em mandinga
“N ta lom/isto é meu”; “M be domoro to / estou a comer”.



[1]  Note-se que nas formas imperativas de respeito e na primeira pessoa do plural, o sjeito pronominal volta a ser obrigatório: «nhu kume, nha kume, nhos kume» - coma,  coma (no feminino), comei.

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

CABOVERDIANO sem hífen

As razões por que escrevo CABOVERDIANO sem hífen:

Não é por distração que escrevo "caboverdiano e caboverdiana"sem hífen. É que esse hífen é um peso inútil que não tem fundamentação nem linguística, nem lógica, nem pragmática. Com efeito:
 
1)     Linguisticamente falando, “caboverdiano” representa um único monema, diferente, por exemplo, da expressão “luso-brasileiro” onde há dois monemas. Além disso, se subtrairmos o hífen, a palavra não sofre nenhuma erosão, nem do ponto de vista fonético-fonológico, nem do ponto de vista conceptual e semântico. Qual será então a mais-valia desse hífen? Nenhuma. Não sendo nem funcional, nem pertinente; não representando nenhuma mais-valia linguística, torna-se uma sobrecarga desnecessária que vem na linha do estipulado no Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, no concernente, por exemplo, à queda das consoantes mudas que representam também uma sobrecarga inútil. Daí a sua supressão.

2)       Do ponto de vista da lógica, não se percebe por que se deve colocar o hífen na palavra “caboverdiano” e não fazer o mesmo com a palavra “português”? Ambos os termos são derivados gentílicos (o primeiro proveniente de “cabo verde”; o segundo de “portus cale”, ou seja porto quente). Além disso, a mesma lógica que preside na representação de compostos (pátrios) como sanvicentino, santantonense, boavistense … (que não passa pela cabeça de ninguém representá-los com hífen), deveria também presidir na representação do gentílico “caboverdiano”.

3)       Do ponto de vista da pragmática, tanto em “caboverdiano” como em “português” já se perdeu a noção de composição. Quando dizemos “caboverdiano” não pensamos nem em cabo, nem em verde. O mesmo acontece com caboverdianidade, caboverdianamente, caboverdura. Também na Ilha de Santiago, que é matriz de todas as outras variantes e variedades do crioulo, se diz “kauberdianu”e não “kau-berdianu”. Além disso, a desordem que existe na representação da palavra (caboverdiano, caboverdeano, cabo-verdiano, cabo-verdeano, Cabo-Verdiano, Cabo-Verdeano), reclama uma urgente unificação.
Há que ter em conta ainda que o hífen, em “caboverdiano”, pode dar a entender a ideia de um povo dividido. Ora, em Cabo Verde, a ideia de unidade é um desígnio nacional, é um projeto comum, é uma preocupação constante.
Eis, pois, as três razões por que escrevo “caboverdiano”, sem hífen. Entretanto, como académico, não recusarei rever a minha posição se os meus argumentos forem, com fundamento linguístico, lógico e pragmático, desconstruídos, de forma convincente e esclarecedora, pelos defensores do uso do hífen na palavra em apreço. Em não havendo tais argumentos, convido a todos que sufraguem a minha posição, com base na fundamentação apresentada. Seria um bom serviço prestado ao POVO CABOVERDIANO

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

Autonomizaçõa da LCV 2

A reestruturação local dá-se tanto a nível fonético, morfológico e sintático, como também semântico. Há quem considere essa reestruturação como uma simples simplificação linguística, na impossibilidade da interiorização, por parte da população subjugada, da complexidade da língua portuguesa, a língua de dominação.
Neste pequeno estudo, procuraremos demonstrar que a simplificação é corolário da lei do menor esforço, uma lei presente na formação e transformação de todas as línguas do mundo. Há que salientar ainda na formação e evolução da LCV nem sempre as tendências de evolução em contexto unilingue se verificam linearmente. É que a LCV resultou de várias línguas, em contextos pluriétnicos e de mudanças profundas da ecologia  dos “crioulisadores”[1]. A pluralidade de contextos de formação pode explicar a pluralidade e, muitas vezes, a assistematicidade nas transformações operadas. É o caso da negação “ka” que, normalmente, não poderia ter vindo de “nunca”, já que, na evolução linguística, normalmente, as sílabas átonas que caem. Porém, a conjugação de “nunca” com a negação em manjaku (ka), em mankañ (nko), em balanta (kë), em mandinga (ke) pode justificar a negação “ka” na LCV.
Quanto à lei do menor esforço, procuraremos demonstrar que essa lei foi determinante na formação da LCV, sobretudo, quando abordarmos a componente lusitana. De momento, voltemos à reestruturação local para mostrar que ela, muitas vezes, é mais complexa do que a primeira vista se pode imaginar. Em grande medida, vamos colher alguns exemplos do romance Odju d’Agu (Veiga, 2009). Os exemplos vêm acompanhados de um número que corresponde à página onde os mesmos se encontram no romance, na edição em ALUPEC de 2009, já que a primeira edição é de 1987 e exibe o alfabeto fonético-fonológico proposto no colóquio linguístico de Mindelo. Quando não aparece o número de página significa que se trata de uma frase solta, também elas da responsabilidade do autor destas linhas.
Em primeiro lugar surge a unidade que pretendemos demonstrar aspetos da reestruturação local.  Segue-se a tradução literal onde o sentido quase que desaparece. Seguidamente, damos a correspondência logico-semântica na língua portuguesa. Através desse processo, ficará demonstrado que, mesmo que a maioria do léxico da LCV provenha da língua portuguesa, o povo caboverdiano pôde realizar uma verdadeira rutura tipológica, com base nos materiais linguísticos da língua do dominador e do conhecimento implícito da estrutura das línguas de substrato, criando, deste modo, uma nova língua.



[1] Com este termo quero significar os que estiveram na origem da formação do crioulo caboverdiano, o qual tem o mesmo significado que língua caboverdiana (LCV)

sábado, 6 de fevereiro de 2016

AUTONOMIZAÇÃO DA LÍNGUA CABOVERDIANA


AUTONOMIZAÇÃO DA  LÍNGUA CABOVERDIANA:

REESTRUTURAÇÃO LOCAL, COMPONENTES AFRICANA E LUSITANA                    
 A maior força da língua caboverdiana (LCV) está na sua reestruturação local. A partir do substrato africano e lusitano, o povo caboverdiano, do ponto de vista linguístico (mas também antropológico) soube absorver o material importado e conferir-lhe, no dizer de Jürgen Lang, uma alma nova. A expressão africana é significativa, como poderemos ver no decorrer da investigação que vamos fazer. Porém, a componente lusitana,  é verdadeiramente, expressiva, particularmente no aspeto lexical. Na investigação já iniciada, irei, enquanto a mesma durar, dar conta, periódica e sistematicamente, tanto da reestruturação local como da componente africana e lusitana. Conto com as críticas, comentários e achegas de quantos tiverem alguma luz sobre a questão.
Vai ser uma investigação de longo fôlego. Não tenho pressa. E se tomei a decisão de socializar as descobertas  ou as hipóteses formuladas, no decurso do caminho, é precisamente porque sei que o mesmo vai ser longo e, por vezes, difícil de trilhar.
Como linguista, depois de ter dado contributo nas áreas da escrita, da gramática e da lexicografia, esta é, provavelmente, a última etapa de um percurso que dura há cerca de quarenta anos. Contarei com a crítica que traz a luz, não aquela que destrói sem a capacidade de iluminar a mais pequena dúvida ou interrogação.
Para Cabo Verde que me legou uma língua, uma história e uma cultura, quero legar também o meu testamento cultural e linguístico inscrito nas obras já publicadas e nas que seguramente, agora, com o estatuto de professor universitário jubilado, vou continuar a publicar.
Muito proximamente, penso dar à estampa a obra A Palavra e o Verbo, assim caracterizada no pórtico:

Com a força mediática da palavra, o meu «eu» é capaz de significar, de transfigurar, de construir e de comunicar o mundo que nos rodeia, o social que nos preocupa, o cultural que nos enforma, o virtual que nos interpela... Como diria Clarice Lispector: 1986, em Perto do Coração Selvagem: “… continuo sempre me inaugurando, abrindo e fechando círculos de vida…”
Através da palavra  pensamos,  filosofamos, amamos, odiamos, destruímos, rezamos, criamos. Os textos da presente coletânea testemunham a oficina e a lavoura das minhas palavras e do meu verbo, em algumas “azáguas” do meu quotidiano, sempre em sintonia com o que dizia Eduardo Prado Coelho: 1978, em Os Universos da Crítica: «... é bom mexer nas palavras, organizá-las num espaço, estabelecer-lhes movimento de rotação e translação umas com as outras... [para a construção ou configuração de sentidos, tanto os do autor, como os do leitor]. Este é outro modo de ver a questão, mas sabe-se imediatamente que é outro modo do mesmo modo».
Obrigado a todos os que vão acompanhar-me nesta nova aventura. Manuel Veiga