domingo, 24 de maio de 2020

Letras que Imortalizam - PRÓLOGO




Natureza e Conteúdo

Escrevi estas “letras…” não para fazer crítica literária, que é uma forma de julgar a partir de parâmetros bem precisos, mas para exprimir o que elas significam para mim.
Um texto literário, para merecer a minha leitura interpretativa tem que me interpelar, tem que provocar em mim emoção e empatia, tem que me inquietar.
Foi o que aconteceu com as “letras…” aqui abordadas. Peço aos leitores que não esperem delas juízos de valores, nem a procura da conformidade ou não com normas e padrões de procedimentos. O que vão encontrar são as impressões, as emoções, os registos e as marcas que um certo estar no mundo e nas letras provocaram numa certa “pedra”, no tecido e nos interstícios de uma certa alma, em permanente busca da autenticidade, do humanismo, da ética, da cidadania e do belo.
Juntamente com este Prólogo, há um Pórtico, Três Partes, Sete Jornadas e um Epílogo.
O Prólogo introduz-nos na galeria e nos labirintos semânticos desta obra. O Pórtico apresenta-nos “Signos e Símbolos em Jorge Barbosa, Tentativa de uma Análise Semiológica”. Pode-se perguntar a razão por que este texto figura como Pórtico. É que se trata da minha primeiríssima reflexão sobre as letras caboverdianas, uma espécie de porta por onde entrei para a faina da “coisa literária”, numa azágua orientada mais pela procura de sentido e significado da palavra, na empatia e emoção, e não com a preocupação de policiar o respeito pelas normas e padrões pré-estabelecidos. Na nota que acompanha o texto do Pórtico dou conta das circunstâncias que me impeliram a entrar, pela primeira vez, num barco cujo périplo e rumo, na altura, desconhecia. Para entrar nele, o motivo tinha que ser forte. Quem estiver interessado que leia a nota já referida.
As Três Partes falam   de “Letras” que Imortalizam, que Interpelam e que Fecundam.
Na I Parte aparecem quatro Jornadas:  a dos Cabouqueiros, a de Fincar os Pés no Chão, a no Mar de Túrbidas Vagas e a de Luta pela Emancipação, Liberdade e Dignidade.
Na Jornada dos Cabouqueiros aparecem José Evaristo d’Almeida e José Lopes. O primeiro, com o seu romance O Escravo que inaugurou o surgimento da arte romanesca em Cabo Verde. Apesar de ser português, mergulhou-se profundamente na cultura, nas tradições e na vivência dos caboverdianos. Eu não o conhecia, nem a ele, nem a sua obra. Quando o estudioso português, Manuel Ferreira, pediu-me para fazer o prefácio da 2ª edição de um livro de 1856, recusei, pela simples razão do seu autor ser um ilustre desconhecido para mim. O meu interlocutor insistiu dizendo que me enviaria uma copia do livro e que só depois aguardaria pela minha resposta definitiva. Quando li a obra fiquei fascinado com a sensibilidade, a visão e o amor que tinha pela gente e pelas coisas da nossa terra. A resposta tinha que ser afirmativa. Na jornada empreendida, a bordo de O Escravo, dou conta do meu diário de bordo.
O outro cabouqueiro é José Lopes. Sempre ouvi dizer que ele era um escritor alienado. Não me preocupei em conhecê-lo. Entretanto, a Academia Caboverdiana de Letras (ACL) inscreveu o seu nome na galeria dos Imortais das letras caboverdianas. Algum tempo depois, a então Presidente de Direção da ACL, a confrade Vera Duarte de Pina, desafiou-me a prefaciar a reedição do livro Jardim das Hespérides, da autoria de José Lopes. Ora, sendo ele um dos Imortais da ACL, senti o desconforto de recusar o pedido. Enchi-me de coragem e resolvi mergulhar-me na obra em referência. Podem crer que fiquei deslumbrado com a dimensão cultural e poética de José Lopes. Aliás, como cheguei a afirmar na reflexão feita, “Pelo encontro que tive com Jardim das Hespérides, ficou-me a certeza, sem nenhuma réstia de dúvida, que a poética de José Lopes engrandece a nossa literatura, engrandece a língua portuguesa e as literaturas nela moldadas”.
Na Jornada de Fincar os Pés no Chão, debrucei-me sobre dois claridosos:  Jorge Barbosa e Manuel Lopes. O primeiro, tem uma poética que me fascina. As suas alegorias, as suas máscaras, o subterrâneo das mensagens que veicula fizeram-me acreditar que a sua lavra poética tinha, à superfície, um significado; e, na estrutura profunda, tinha um sentido que só um olhar perspicaz era capaz de penetrar. E isto, para um linguista é um desafio aliciante. Daí a razão por que me senti atraído pela gramática da sua poesia, a nível de superfície, e pela poesia da sua gramática, na estrutura profunda da mesma. A técnica utilizada pelo poeta permite dizer sem ter dito ou não dizer, dizendo. Os não iniciados nessa alegoria, como seguramente era o caso da censura de então orquestrada pela Pide DGS, compreendiam apenas a mensagem de superfície e ficavam “a leste” do verdadeiro sentido imprimido pelo autor. Neste jogo, apenas “as máscaras” se manifestavam e a censura se mostrava mais clemente e o poeta deixava de ser amordaçado, e o sentido profundo do seu verbo não era profanado.
Quanto a Manuel Lopes, de Chuva Braba, a determinação e o amor à terra, particularmente retratados por  Mané Quim; a leveza do seu estilo, da sua gramática e do  ideário programático de fincar os pés no chão que ele propugna, através das personagens plurais do afilhado e do padrinho (personificando o instinto crioulo da partida e do regresso ou de querer ficar e ter que partir) convenceram-me que estava diante de um dos maiores romancista caboverdianos e, talvez mesmo, um dos maiores da língua portuguesa. É quase uma injustiça não ter sido, até hoje, um dos galardoados do Prémio Camões.

Na Jornada no Mar de Túrbidas Vagas, Luís Romano, do romance Famintos; e Teixeira de Sousa, dos romances Ilhéu de Contenda e Xaguate, foram os escolhidos.
O primeiro convida-nos a sermos “…pedra para não sentimos” as agruras que vai descrever. É por isso que no trabalho realizado afirmei:
“…há já algum tempo atrás, na década de 80, [comecei] a ler, pela primeira vez, a gesta dramática do “Povo das Ilhas sem Nome”, através da histórica obra de Luís Romano – Famintos - não [tive] a força suficiente nem a coragem necessária para aguentar o realismo nu e cru dos acontecimentos narrados, a evocação eloquente e agressiva da linguagem utilizada, a proliferação de imagens e de situações confrangedoras, em cada frase, em cada folha e em cada capítulo do livro. Deveras impressionado, pus o livro de lado, na certeza de nunca mais voltar a reviver os quadros tristes e lúgubres dos capítulos lidos, dos capítulos que não [fui] capaz de ler.
Porém, os anos passaram e, no [meu] interior, a insatisfação de não [ter] podido suportar as agruras de os Famintos ia ganhando corpo. De adiamento em adiamento, não havia forma de encontrar um pretexto suficientemente forte para vencer a inércia adquirida e as ‘náuseas’ do primeiro contacto.
Eis, porém, que surge uma oportunidade: a comemoração do quadragésimo aniversário do chamado “Desastre de Assistência”, em 1989.
Não só terminei a leitura de Famintos, como dei corpo às impressões e aos sentimentos que a obra despertou em mim. Não há dúvidas que o Mar de Famintos eram, efetivamente, de Túrbidas Vagas.
Essas vagas que “afogam e afagam”, na expressão de Jorge Barbosa, encontrei, também, em Teixeira de Sousa de Oh Mar de Túrbidas Vagas!, uma obra que já li, mas não tive ainda o ensejo de registar as impressões e as emoções que ela me casou. O mesmo não aconteceu com Ilhéu de Contenda e Xaguate que mereceram, da minha parte, uma longa explanação.
O que chamou a minha atenção em Teixeira de Sousa é a transversalidade e profundidade da análise que apresenta sobre as transformações da sociedade foguense. Na nossa literatura, ainda ele não tem paralelo.
Ao autor dei conhecimento da reflexão feita ao Ilhéu de Contenda, como também, ao Xaguate. Eis um extrato da sua carta de 20/7/1988 sobre a minha análise ao Ilhéu de Contenda:
Não há dúvida que soube ler o que escrevi e, sobretudo, entender profundamente a trama social do Fogo na sua dinâmica cultural… Ainda bem que é um nacional a elaborar um ensaio desta natureza. Olhe que não sei … quem fizesse melhor. Finalmente ficou saciada em mim a sede duma interpretação ao nível da minha proposta, ao lançar-me na aventura de Ilhéu de Contenda”.
Quem quiser saber o porquê deste desabafo, que leia, aqui mesmo, o texto objeto da apreciação de Teixeira de Sousa.
Na Jornada de Luta pela Emancipação, Liberdade e Dignidade, debrucei-me sobre Amílcar Cabral como humanista, como Homem de Cultura e como Poeta. Ele foi um soldado da paz que dizia:
eu sou um simples africano que quis saldar a minha dívida para com o meu povo” … [e, por isso],
Jurei a mim mesmo que, até ao dia em que morrer, darei a minha vida, toda a minha energia, coragem e a capacidade que posso ter como homem ao serviço do meu povo, na Guiné e Cabo Verde, ao serviço da causa da Humanidade, para dar a minha contribuição para que a vida do homem no mundo se torne melhor. Esta a minha missão”.
A obra de Cabral é um monumento de luta pela emancipação, liberdade e dignidade do seu povo, em especial, e da África, em geral. Foi para mim uma escola de aprendizagem a viagem que pude fazer pelo legado que nos deixou. Na jornada a ele dedicada, dou conta de alguns aspetos desse legado.

A II Parte do meu livro aborda Letras que Interpelam, num conjunto de duas Jornadas: a do Arquipélago-Mundo e a do Sol Nascente.
As Letras Caboverdianas preconizam um ideário de fincar os pés no chão, um chão que é sobretudo Cabo Verde, na época claridosa; um chão que é Cabo Verde e o Mundo, na época pós claridosa. Esta última sensibilidade começou a incubar-se a partir de 1944, com a revista Certeza em que o ideário seria, na perspetiva do poeta Aguinaldo da Fonseca, a de outra ilha dentro da ilha. Apenas o “mar de canal” era limitado de mais. O mar largo, o do humanismo sem fronteiras não podia ser ignorado.
A Jornada do Arquipélago-Mundo é uma outra forma de conceber o ideário de uma outra ilha dentro da ilha ou, na perspetiva de Onésimo da Silveira, o ideário de um Poema Diferente para o Povo das Ilhas,
“Um poema sem gemidos de homens desterrados
Na quietação da sua existência;
Um poema sem crianças que se alimentem
Do leite negro das horas abortadas
Um poema sem mães olhando
O quadro dos seus filhos sem mãe...
(…)
Um poema sem braços à espera de trabalho
Nem bocas à espera de pão
Um poema sem barcos lastrados de gente
A caminho do Sul
Um poema sem palavras estranguladas
Nas grades do silêncio...”.

A Jornada do Arquipélago-Mundo, a de Outra Ilha Dentro da Ilha e a de um Poema Diferente Para o Povo das Ilhas se aproximam, se complementam. A minha escolha recaiu sobre Arménio Vieira, de O Eleito do Sol e sobre David Hopffer Almada de Caboverdianidade e Tropicalismo, bem como de Cabo Verde de Esperança.
Devo dizer que Arménio Vieira, ao tomar conhecimento do que escrevi sobre O Eleito do Sol, em carta de 11/1/1990, a mim dirigida, afirmou:
Feliz o livro que se presta a múltiplas interpretações. Isto para dizer que a leitura que o meu amigo Manuel Veiga acaba de fazer é uma das possíveis. Parece-me bem fundamentada e feita com muita imaginação. Estou certo que ela vai prestar um bom serviço a muitos leitores, contribuindo, outrossim, para a promoção da obra…”.
Será que o leitor desta Jornada do Arquipélago-Mundo também achará que a mesma, no tocante à leitura feita a O Eleito do Sol, é um bom serviço prestado às letras caboverdianas, como achou o autor da obra?  Se sim, fico contente.
Quanto à reflexão à obra de David Hopffer Almada, numa missiva do autor de 28/01/2020, recebi o seguinte estímulo:
São louváveis as iniciativas que tens tomado e tudo aquilo que vens fazendo, em prol da nossa Cultura, com particular e especial realce para a nossa Literatura! As minhas vivas e sinceras Felicitações por isso! Que continues com essa veia, e que o ânimo/coragem para levar a cabo essa empreitada, de valor fundamental para Cabo Verde, para a sua Cultura e para a sua Literatura, não te falhem!
Desde já, muito obrigado por merecer estar entre os Autores escolhidos para a tua Obra, que, seguramente, nos vai honrar e valorizar a todos!
Faço votos de continuação de bom Trabalho e de muito Bom Produto/Resultado, com vista ao enriquecimento das Letras Cabo-Verdianas e à sua divulgação e conhecimento…”.
Ora, se os leitores acharem razão para, eles também, concordarem com o que afirma o autor estudado, na presente Jornada, considerarei que valeu a pena a reflexão feita.

Faz ainda parte da II Parte do livro a Jornada do Sol Nascente onde perfilam: Kaká Barbóza, do Vinti Xintidu, Letradu na Kriolu; Eurícles Rodrigues, de Lágrimas de Bronze; Carlos Araújo, do Percurso Vulgar; Mana Guta, de Outras Pasárgadas de Mim; Hélio Cruz, de Grite de Kretxeu; Cesaltina Benchimol, da Arte de Cozinhar e da Cozinha da Avó; José Miranda, de Vitamina para uma Felicidade Equilibrada.
Em toda essa Jornada do Sol Nascente encontramos o eco da literatura dos cabouqueiros; da de fincar os pés no chão; da do mar de túrbidas vagas; da luta pela emancipação, liberdade e dignidade humanas; da do arquipélago-mundo.
A particularidade da presente jornada, porém, é a fome de continuar a crescer e a brilhar; é a sede de se dessedentar na água límpida de todas as fontes do planeta; é a procura de horizontes que extravasam a medida da ilha e do arquipélago. Na presente Jornada, é uma constante, quase uma obsessão, a procura de autenticidade, do sabor da terra, de inclusão e do humanismo. Nela, o humanismo como família é uma vivência ainda incompleta, é um sonho, é um projeto de vida; é um desejo de “mergulhar no mar da imensidade”, para retemperar todas as iguarias do ser, do estar e do existir.
Finalmente, chegamos à III Parte do livro, com as Letras que Fecundam, em Jornada de Cidadania e Comprometimento. Estas Jornadas têm todos os condimentos da de Arquipélago-Mundo e da do Sol Nascente. Só que, quem tem fome e sede do local e do global é o próprio autor destas linhas; quem navega no mar da imensidade, à procura de mais luz, de mais água, de mais inclusão, de mais humanismo, de mais autenticidade é quem assina este prólogo.
Resta perguntar qual a finalidade das jornadas empreendidas e das letras esculpidas em cada uma delas. É no epílogo que encontramos a resposta. Por instante, digo apenas que as jornadas e as letras, aqui referidas, têm um coração crioulo, uma alma universal e uma práxis do humano, do social, do inclusivo, do cívico, do ético e do estético.
Desafio os leitores a vasculharem na obra, em referência, as verdades, as impressões e emoções das diversas jornadas aqui referidas. Que o façam, simplesmente, com conhecimento e justiça. O sentir de uma época é para ser avaliado como tal, tendo presente as suas contingências, e não para ser julgado, de forma dogmática, com os parâmetros e valores do sentir de uma outra época.
                                                                                             O Autor