quinta-feira, 30 de julho de 2020

Meu Caro Confrade Germano Almeida


 

Por ocasião do seu 75º aniversário, queria, antes de mais, apresentar-lhe os meus parabéns e votos de uma cada vez mais rica e promissora criação no campo das letras.

Cabo Verde se orgulha da vastíssima obra e se congratula com o Prémio Camões que, merecidamente, lhe foi atribuído.

Li, já, uma grande parte da sua obra. A minha maior empatia vai pelos romances

É do domínio público que não concordo consigo quando afirma que “o crioulo não nos leva a lugar nenhum”. É uma verdade que o crioulo é, sobretudo, a língua de comunicação do nosso povo.

Pode crer, caro confrade, que, perante a diversidade e a importância da sua cidadania literária; face ao galardão “Prémio Camões”, as nossas divergências, mesmo existindo, ficam sem grande expressão.

Então, que o farol das 75 primaveras continue a espalhar luz, e a semear as mais ricas sementes da azágua crioula e global, no campo das letras, da história e da cultura.


 

 


terça-feira, 28 de julho de 2020

CORSINO FORTES: POETA - ARQUIPÉLAGO


Cultor e Promotor de uma Poética Inovadora

                                                              Por Manuel Veiga

Na poética do autor de Cabeça Calva de Deus…, várias são as heranças procuradas, resgatadas, construídas ou celebradas:  a do palco africano, a do rincão local, a da aldeia global.
Na demanda dessas heranças, Corsino Fortes, em alguns aspetos, se situa na linha dos seus precursores caboverdianos, daqueles que, face às agruras e ao sufoco na Terra amada, decorrentes dos caprichos da natureza e de uma Administração desleixada, criaram, no seu imaginário literário, um espaço-refúgio, um Éden compensador.
Na geração de José Lopes e Pedro Cardoso, esse Éden, ou Terra Prometida, tinha o nome Jardim das Hespérides. Na geração claridosa criou-se a ideia de Pasárgadas. Na geração subsequente, o poeta Aguinaldo da Fonseca imaginou que o Éden seria o de “uma outra ilha dentro da ilha” e Onésimo da Silveira proclama, dizendo, que “povo das ilhas quer um poema diferente para o povo das ilhas”.                                                                       
Esta ideia tinha sido defendida, também, por Amílcar Cabral. Seguidamente, foi Corsino Fortes quem melhor deu sequência a esse ideário programático. E a diferença entre a poética de Aguinaldo da Fonseca, Amílcar Cabral e Corsino Fortes, relativamente aos seus antecessores, está, precisamente, na configuração da Terra-Prometida como “uma outra ilha dentro da Ilha” e na sintaxe poética, por vezes em detrimento da linguística, que utiliza.
Vejamos como ele, através da metáfora acima referida, dá-nos conta de uma poética inovadora. Antes, porém, gostaríamos de dizer que, ao ler Corsino Fortes, pela primeira vez, não conseguimos entender uma parte significativa da sua poética. Evitámos, pura e simplesmente, de fazer o julgamento de qualidade, como alguns leitores desprevenidos fazem. Era preciso munir-nos de algumas ferramentas para entender, ainda que parcialmente, uma linguagem em que o primeiro sentido, ou a sua ausência aparente, não era o verdadeiro sentido.
Em Corsino Fortes, há que saber distinguir a sintaxe linguística da sintaxe poética, a que tem ligação com os campos sonoros, melódicos, esotéricos, clássicos, épicos, místicos, históricos, proféticos…, podendo a mesma não respeitar a que a que a norma linguística estabelece. É o que acontece com os tempos verbais (ver a entrevista com Michel Laban, 1992:414), ou então o título do poema “De Boca a Barlavento ou seja “A Boca de Barlavento” onde verifica-se um desvio da sintaxe linguística. Vemos duas hipóteses para explicar esse desvio: a) A questão de sonoridade, ritmo e movimento; b) A desordem na sintaxe dos materiais linguísticos poderá significar a desordem ou o inconcebível da situação narrada no poema, a tal “geometria de sangue & fonema”, gotejando “de comarca em comarca”.
Quando o poeta-demiurgo e profeta trata, simultaneamente, de questões ligadas à antropologia, à historia, à sociologia, à política, à transcendência, utilizando mais a sintaxe poética do que a linguística, a compreensão da sua mensagem exige o conhecimento ou a familiarização com os entornos da sua criação poética, com o seu background cultural, com o seu entendimento e motivações, com as suas metáforas e alegorias. E como isso nem sempre é possível, na sua abrangência total, a interpretação da sua criação permanece em aberto.
Com base em alguns poemas da Trilogia A Cabeça Calva de Deus …, que inclui Pão & Fonema, Árvore & Tambor e Pedra de Sol & Substância, vamos apresentar algumas notas de leitura sobre este Poeta Arquipélago, Cultor e Promotor de uma Poética que, em vários aspetos, rompeu com o modelo literário do seu tempo. Alias, Cármen Tindó Secco, citada por Fátima Fernandes, na sua tese de doutoramento (p. 122) afirma que
“Com a obra de Corsino Fortes, os cânones literários do passado foram definitivamente ultrapassados. Muitos de seus poemas dialogaram intertextualmente com os de poetas das “gerações” anteriores, como Jorge Barbosa e Gabriel Mariano. Fez a releitura da poesia de Claridade, negando a proposta de evasionismo e afirmando a necessidade de fecundar a esperança de transformação dentro das ilhas. Releu também Ovídio Martins, contradizendo-o: ‘Já não somos os flagelados do Vento Leste’, pois o vento tornou-se metáfora anunciadora de mudanças sociais, um signo cabo-verdiano de desafio (…) A poesia de Corsino aprofundou a proposta do anticolonialismo fundada pelo grupo Sèló e questionou também os séculos de dominação portuguesa”.
Sobre esta questão, o próprio Corsino, na entrevista concedida a Michel Laban (Cabo Verde: Encontro com Escritores, vol. II, 1992, p. 388) falando do projeto comum com João Vário, esclarece:
É difícil caraterizá-lo, porque nós não tínhamos ideias bem seguras dada a nossa ‘debutância’ [incipiência], mas de qualquer maneira, íamos formando o propósito de vir a escrever algo que fosse diferente ou, melhor, que crescesse … ao património existente – isto é – algo que não fosse meramente fiduciário”.
Corsino Fortes preconiza, pois, um projeto literário que, sem hostilizar as heranças do passado, intenta novos caminhos, em matéria de estilo, de modelo e projeto literário.
Na nossa leitura, primeiramente, procuraremos, nos poemas estudados, não só explorar, minimamente o modelo literário de Corsino Fortes, como tentaremos descobrir não tanto o significado de superfície da sua poética, que poderá ser um não-significado (na sintaxe linguística), mas o sentido profundo, decorrente da sintaxe poética, e que, na nossa perspetiva, poderá ser o verdadeiro sentido criado pelo poeta.
Por cada extrato do poema estudado, falaremos das particularidades inovadoras que as caraterizam. Na análise que vamos fazer, por não sermos músico, teremos dificuldades em abarcar a componente musical dos poemas, nos termos em que o poeta declarou a Simone Caputo Gomes, numa entrevista, no âmbito da tese de doutoramento da Prof.a Fátima Fernandes (p. 271):
Se o destinatário alvo não está muito preparado para compreender [a minha poesia], a música então dá-me um suporte para alcançar o receptor. A melodia é uma linguagem universal e, de fato, é fundamental nessa transmissão. O alfabeto tem que pintar e também expressar a música do folclore, do sentimento... Como propõe [Ezra] Pound, fonopeia, melopeia e logopeia têm que acontecer juntas.
Continuando, afirma Fortes que, quando, pela primeira vez, declamou, na Faculdade de Direito de Lisboa, o poema “De boca a barlavento” um dos colegas que tocava muito bem o violão disse:
“… se não fosses poeta, eras um bom tocador de violão. [Por isso, continua o poeta] conhecer profundamente a epopeia sentimental do cabo-verdiano, as letras das mornas, o funacol, a obra dos nativistas, dos claridosos e não só, os grandes poetas, toda a poesia medieval, os trovadores... estudar foi fundamental para a minha obra” (p. 271).
Com os sons e as melodias que nascem no próprio chão do Arquipélago, vejamos como é que o “logos” da poesia de Corsino Fortes ganha harmonia e sentido no palco global e africano (herança marina) e no rincão local (herança caprina). Devemos assinalar ao leitor que esta é, seguramente, uma das leituras possíveis. Sendo a poética de Corsino Fortes uma obra aberta, difícil se torna uma interpretação fechada. Já Mesquitela Lima (1974) dizia que o livro o esmagou e que “é com raiva contente que [procura] penetrar na molécula …, no labirinto do Fonema”.
Nós também temos a noção clara que, com a leitura que fazemos, não atingimos o númen do sentido (por vezes hermético) de certas realizações. Algumas zonas nos ficaram na sombra. Tudo o que aqui fica dito é tão somente o que a luz da nossa lanterna nos permitiu ver.
Vejamos, então, algumas partituras desse estilo através de uma pequena incursão na sua trilogia poética que inclui Pão e Fonema, Árvore e Tambor, Pedra de Sol e Substância.

1.     Em Pão & Fonema
O título, em si, é uma metáfora que encera o sentido identitário do povo caboverdiano, da sua respetiva cultura e forma de existir, à procura de pão, de voz e de vez para um diálogo inicial e incessante no palco da globalização, mas com o centro de gravidade no chão das ilhas.
 Nós somos o que comemos, mas também a forma como expressamos o nosso existir. Tendo a disponibilidade de pão-milho-morna-liberdade, a existência acontece, a cultura nasce e o fonema – no sentido de educação e comunicação, mas também, no dizer de Daniel Spínola (2009), “…o começo de uma anunciação à volta da essência da vida, que é o alimento nosso de cada dia”) –  encarrega-se de resgatar o ciclo do milho na nossa alimentação, de recriar, preservar, valorizar e divulgar as heranças de um humanismo em crescimento, e em diálogo permanente. O poeta, na bonita isotopia utilizada diz que “Toda a partida é alfabeto que nasce/ Todo o regresso é nação que soletra”, querendo dizer que com a partida do emigrante nasce a esperança de dias melhores e com o seu regresso a vida pode melhorar, com mais “pão”, mais conhecimento, mais liberdade, mais dignidade.
(…)
Retomemos, então, o livro Pão & Fonema para descobrirmos como é que se atualiza o sentido poético de Corsino Fortes, o qual, nem sempre, corresponde ao significado linguístico, daí “os labirintos” na sua poesia.
Na impossibilidade de analisar a obra na sua abrangência formal e semântica, contentemo-nos apenas com alguns extratos do poema “Konde Palmanhan Manxê”:
“… Konde palmanhan manxê/ Sen dezuspere pundróde/ Na bandera de pórta/ Sen lanterna sindide/ Na róbe de burre/ Pa naufraje de navi/ Sen navi kebróde/ Na bóka de pove/ Y mar ben ólte! Bróbe! Dezusperóde”.
Aqui é a antevisão do Dia Clarim da Independência. Estamos em 1974, um ano antes da manhã gloriosa de 5 de Julho de 1975.
Note-se que para Corsino Fortes, a Independência é o marco maior na história do nosso povo. Eis como ele declara a Michel Laban (1992:416) a importância desse dia que ele anteviu no poema em “Konde Palmanhan Manxê”:
“… esse júbilo de poder viver numa época, em todo o meu amor em relação à terra, em todo o meu amor na nossa luta; e também esse júbilo de poder viver numa época de nascimento do nosso Estado, da inserção de Cabo Verde no mundo … Porque nós vivíamos isso… Às vezes eu pensava: ‘Hei-de viver para ver a Independência do meu país!’ É uma coisa bela. Isso me paga tudo na minha vida, viver a Independência(sublinhado nosso).
No poema em análise, procuremos descobrir o sentido poético nele esculpido:

“… Konde palmanhan manxê/ Sen dezuspere pundróde/ Na bandera de pórta/ Sen lantérna sindide/ Na róbe de burre/ Pa naufraje de navi/ Sen navi kebróde/ Na bóka de pove/ Y mar ben ólte! Bróbe! Dezusperóde”
“…palmanhan manxê” é o mesmo que a chegada da Independência; “sen dezuspere pundróde/Na bandera de pórta” poderá significar o fim da colonização; “sen lanterna sindide na róbe burre/ Pa naufraje de navi…kebróde/ na bóka de pove” é o mesmo que sem a necessidade de prender um facho luminoso na cauda dos burros, como se fossem faróis, provocando, assim, o naufrágio de navios, para regalo de “famintos”, na ilha da Boavista; “… Y mar ben ólte! Bróbe! Dezesperóde” terá o sentido de forças coloniais muito zangadas, em desespero, mesmo.
2.     Árvore & Tambor
Depois do sobrevoo ao Pão & Fonema (prenúncio da Luta pela Independência), passemos ao segundo livro da trilogia, Árvore & Tambor (celebração e júbilo pela conquista da Independência) que, na sintaxe poética e não linguística, é o Povo de Cabo Verde já mais crescido, com raízes, tronco e ramos, mas também com a marca indelével de uma identidade africana, simbolizada no signo “tambor” que não só nos liga ao chão de África, mas também reafirma que a nossa identidade, para além de “pedra, mar, cabra e sol; milho, pão & fonema”, tem uma forte componente musical de que o “tambor” pode representar. É todo esse “mobiliário” que fez de Cabo Verde Nação, antes mesmo de ser Estado.
Se os Pré-Clardosos criaram o jardim das Hespérides como Terra Prometida; se os Claridosos sonharam com Pasárgadas; Corsino Fortes, à semelhança de Aguinaldo da Fonseca e de Amílcar Cabral, quis que a Terra Prometida fosse uma outra ilha dentro das dez já existentes, ou seja, Cabo Verde.
Concordando com Ovídio Martins quando esconjurou a ida para a Pasárgada, dele descorda, em parte, com anti-evasionismo que aquele vate proclama em “Somos os Flagelados do Vento Leste”.
É por sermos Árvore & Tambor” , no chão independente das nossas ilhas, que, “Mesmo Sendo, Já não Somos os Flagelados do Vento Leste”, escreve Corsino Forte. Nesta parte da trilogia, a hora é para celebrar, com júbilo, a Festa da Independência.
(…)
3.     Pedra de Sol & Substância
Da Árvore & Tambor, com raízes bem fincados no Chão-Nação e Estado-Nação, passemos ao terceiro elemento da trilogia, ou seja, ao livro Pedra de Sol & Substância (a reconstrução do Estado Independente), para analisar um fragmento do poema Dragoeiro:
Ó catedral & proa de mil âncoras/ ó árvore de mil tambores// Da rocha ao rosto que me deste/ Do rosto à raiz que te dou/ Florescem no teu tronco/ o crânio de Deus + o fogo povo/ Que nos abraça! Como/ Se o arquipélago já não fosse/ A tua Ordem/& as ilhas + ilhéus! A tua Regra// (…) Dragoeiro! Das pernas do vale à face da montanha/ As crateras modelaram/ Teu porte/ De porta-bandeira/ Entre o céu & a terra/ Como se o teu umbigo De mundo largo/ Já não fosse! O cálice/ De sol & substância/ no vulcão da Vida”.
A crioulidade, essa riqueza antropológica que o nosso “dragoeiro” simboliza, é fruto “d’un brassage de cultures” de variadíssimas procedências, cada uma das quais com a sua riqueza e com a sua expressão, fundidas num código único, a “Cabeça Calva de Deus”. O reconhecimento da Cidade Velha, em 2009, e da Morna, em 2019, como Património da Humanidade são provas de que o nosso “dragoeiro” pela idade e pela falta de água já tem a cabeça calva; e pela experiência e riqueza já deseja poder alcançar os atributos do Criador. Aliás, diz a Bíblia que o homem é feito à imagem e semelhança de Deus. Então, o sonho do crioulo cabverdiano não é uma ficção, é uma possibilidade, apesar da erosão, da seca e das lestadas do vento leste.
(…)
Estas são algumas ideias que a leitura de alguns poemas de Corsino Fortes provocou em nós. Como dissemos já, A Cabeça Calva de Deus … é uma obra aberta. A nossa leitura é uma das possíveis. Outros, lendo os mesmos textos, poderão chegar a outras conclusões e é nisto que está a riqueza da poética de Corsino Fortes.

NB: Extrato de um texto mais desenvolvido a ser publicado no meu livro  Letras que Imortalizam.

Bibliografia

ALMADA José Luís Hopffer, (2009). “Corsino Fortes – Poeta Artesão e Co-Artífice da Renovação da Poesia Caboverdiana Contemporânea”. In Pré-Texto, nº 4, II série, Homenagem a Corsino Fortes, AEC, Edição da Biblioteca Nacional de Cabo Verde.

FERNANDES Fátima, 2013. A expressão metafórica do sentido de existir na Literatura Cabo-verdiana contemporânea: João Varela, Corsino Fortes e José Luís Tavares. Universidade de S. Paulo S. Paulo.

FORTES Corsino, 2001. A Cabeça Calva de Deus: Pão & Fonema, Árvore & Tambor, Pedras de Sol & Substância. Lisboa, Publicações D. Quixote.
LABAN Michel, 1992. Cabo Verde: Encontro com Escritores, vol. II, Porto, Fundação Eng. António de Almeida.
LEITE Ana Mafalda,1986. “Árvore & Tambor ou a Reinvenção da Terra Cabo-verdiana”, in Prefácio a Árvore e Tambor de Corsino Fortes, Praia/Lisboa, Instituto Caboverdiano do Livro / Edições D. Quixote.

Idem, 1996. A Modernização Épica nas Literaturas Africanas. Lisboa, Veja.

LIMA Mesquitela, 1974. Pão & Fonema Ou a Odisseia de um Povo. Luanda, Edição do Comité de Acção do PAIGC em Angola, Casa Amílcar Cabral.
SANTOS Elsa Rodrigues (2009). “A Obra Poética de Corsino Fortes”. In Pré-Textos, nº 4, II série, Homenagem a Corsino Fortes, AEC, Edição da Biblioteca Nacional de Cabo Verde
SPÍNOLA Daniel, 2009.  “A Cabeça Calva de Deus: Uma Poética Cosmovisão de Cabo Verde”. In Pré-Textos, Homenagem a Corsino Fortes, p. 7-23.





quinta-feira, 16 de julho de 2020

Mandamentu da Fraternidade

KUSAS MESTE MUDA

O mandamento da fraternidade ordena que amemos a todos como gostaríamos que fôssemos amados. E esse amor deve ser algo de concreto, e não de abstrato. Significa partilha, respeito, solidariedade, reconhecimento, doação, magnanimidade, generosidade.
Hoje, não só na Baia Azul, mas por todo o lado, esse mandamento cristão é infringido, desrespeitado e, às vezes mesmo, ridicularizado.
Quando se declara uma guerra injusta, está-se a incumprir o mandamento.
Quando se pratica qualquer tipo de violência, há incumprimento.
Quando se permite ou se contribui para que haja fome no mundo, há incumprimento.
Quando não se diligencie ou não há interesse para que haja inclusão social, cultural e educativa, há incumprimento.
Quando a riqueza podre convive lado a lado com a miséria degradante, há incumprimento.
Quando os direitos dos trabalhadores não são respeitados, há incumprimento.
Quando a liberdade, os direitos e as garantias dos cidadãos são esquecidos, há incumprimento.
Quando há opressão e se pratica a injustiça, há incumprimento.
Quando a Situação e a Oposição (na política) recusam o diálogo construtivo para a solução de problemas que exigem o consenso das partes há incumprimento.
Quando o desemprego massivo atinge jovens e menos jovens, há incumprimento.
Quando o nepotismo e o amiguismo tomam conta da administração e dos setores de produção e de desenvolvimento, há incumprimento.
Quando a poluição não é nem controlada, nem diminuída, há incumprimento.
Quando se pratica o roubo, a fraude ou a corrupção, há incumprimento.
Quando a dignidade da pessoa humana não é respeitada, há incumprimento (MV, 2019: 271. Profecias do Ali-Ben-Ténpu).
Kusas Meste Muda. Ku Paulino Vieira, nu sunha:
“Ami kordóde, N sunhá / Kabuverde éra un paraíze /Xeiu de jardin floride // Oh Deus dá-me ligria / Panhá nha sonhe Bo abensoá-l / Voltá-me el realidade /(…)// Éra rikéza na txon / Éra riaxu ta korrê / Éra ligria na pove / Éra beléza oiá nos fidju /Ta brinká na txon na mei de móte / Debóxe de árvore parida / Oh Deus da-me ligria / Panhá nha sonhe Bo abensoá-l / Bo voltá-me el realidade”.

Manuel Veiga, Facebook de16.7.2020)

quarta-feira, 15 de julho de 2020

Mandamento da Fraternidade


KUSAS MESE MUDA
O mandamento da fraternidade ordena que amemos a todos como gostaríamos que fôssemos amados. E esse amor deve ser algo de concreto, e não de abstrato. Significa partilha, respeito, solidariedade, reconhecimento, doação, magnanimidade, generosidade.
 Hoje, não só na Baia Azul, mas por todo o lado, esse mandamento cristão é infringido, desrespeitado e, às vezes mesmo, ridicularizado.
Quando se declara uma guerra injusta, está-se a incumprir o mandamento. Quando se pratica qualquer tipo de violência, há incumprimento. Quando se permite ou se contribui para que haja fome no mundo, há incumprimento. Quando não se diligencie ou não há interesse para que haja inclusão social, cultural e educativa, há incumprimento. Quando a riqueza podre convive lado a lado com a miséria degradante, há incumprimento. Quando os direitos dos trabalhadores não são respeitados, há incumprimento. Quando a liberdade, os direitos e as garantias dos cidadãos são esquecidos, há incumprimento. Quando há opressão e se pratica a injustiça, há incumprimento. Quando o desemprego massivo atinge jovens e menos jovens, há incumprimento. Quando o nepotismo e o amiguismo tomam conta da administração e dos setores de produção e de desenvolvimento, há incumprimento. Quando a poluição não é nem controlada, nem diminuída, há incumprimento. Quando se pratica o roubo, a fraude ou a corrupção, há incumprimento. Quando a dignidade da pessoa humana não é respeitada, há incumprimento (MV, 2019. Profecias do Ali-Ben-Ténpu).

Kusas Mesti muda. Ku Paulino Vieira, nu sunha:
Ami kordóde, N sunhá / Kabuverde éra un paraíze /Xeiu de jardin floride // Oh Deus da-me ligria / Panhá nha sonhe Bo abensoá-l / Voltá-me el realidade /(…)// Éra rikéza na txon / Éra riaxu ta korrê / Éra ligria na pove / Éra beléza oiá nos fidju  /Ta brinká na txon na mei de móte / Debóxe de árvore parida / Oh Deus da-me ligria / Panhá nha sonhe Bo abensoá-l / Bo voltá-me el realidade”.

Manuel Veiga, 15/7/2020


sábado, 4 de julho de 2020

45 ANOS DA NOSSA INDEPENDÊNCIA




DIÁRIO DAS ILHAS: A Saga que os “cronistas de serviço” omitiram, deturparam, ou deixaram incompleta

A obra não é tanto a exposição de um mundo, através do pensamento, mas sobretudo o processo da sua formação, o do mundo da nossa crioulidade física, antropológica e histórica, através do verbo.

Se a narração vem em português é porque nos primórdios do mundo caboverdiano, a língua crioula ainda não existia. A obra tem muito de ficção, mas também tem muito de sentimento e de história. É por isso que no frontispício da mesma, o autor concorda com o poeta português David Mourão Ferreira  quando este escreve:

“… assistimos [hoje] à  afirmação, sem precedente, de uma ficção que à História recorre – tanto à História recente quanto à História remota – mas para sobre ela triunfar, e até para a modificar ou inflectir, por obra e graças do poder transfigurador do vero”.

E isto é tanto verdade quando, em Eloge de la Créolité (19933:36-38), se diz:

Notre histoire (…) est naufragée dans l’Histoire coloniale … [ele] n’est pas totalement accessible aux historiens. Leur méthodologie ne leur donne accès qu’à la Chronique coloniale. Notre Chronique est dessous les dates, dessous les faits répertoriés: nous sommes Paroles sous l’écriture. Seule la connaissance poétique, la connaissance romanesque, la connaissance littéraire, bref, la connaissance artistique, pourra nous déceler, nous percevoir, nous ramener évanescents aux réanimations de la conscience … [Seule] la vision intérieure et acceptation de notre créolité nous permettrons d’investir ‘ces zones impénétrables du silence où le cri s’est dilué. C’est en cela que la littérature nous restituera à la durée’, à l’espace-temps continu, c’est en cela qu’elle s’émouvra de son passé et qu’elle sera histoire”.

Diário das Ilhas é isto mesmo: “paroles sous écriture” que vão para além da crónica colonial, com recurso ao conhecimento romanesco, sociológico, arquivístico, oral-tradicional, jornalístico, literário e artístico, para, através da força transfiguradora do verbo e da alma crioula, preencher zonas de silêncio deixadas naquelas “crónicas de serviço”.

A saga começa com Naus Peregrinas, já desde os idos do século XV, navegando para Mar de Canal e nos Mares do Continente fronteiriço, nos trilhos do pernicioso sistema escravocrata, e fala das peripécias da operação e transformações várias (físicas, antropológicas e outras) dos colonos e escravos que às ilhas aportaram, desde a noite de 1460/62, até a manhã clarim do 5 de Julho de 1975, altura em que o confronto se tinha transformado em reencontro e o recém-nascido já tinha um nome de batismo: crioulidade caboverdiana..

Eis alguns extratos apenas do primeiro dia do Diário:

Antes de mais, entremos na Nau para a viagem a que o narrador, um tal poeta Jorge Barbosa, nos convida, ou melhor, nos apresenta:

Era antigamente/ a primeira nau de escravos/no rumo do Arquipélago/ rápida navegando/ sob o impulso dos alísios”.

Cabo Verde começou com uma nau, não uma qualquer. Era de escravos, mas também de capitães-mores. Uma nau sem identidade porque a sua história estava ainda no início, porque Cabo Verde ainda não era, estava para ser, porém o seu destino começara a cumprir-se. E é no poema “Prelúdio” que o mesmo poeta afirma:

“… nessa hora então/ nessa hora inicial/ começou a cumprir-se/ este destino ainda de todos nós”.

O estranho é que, de repente

“… abateu sobre  a  nau/ a maior tempestade do equinócio// Desmantelada/ o convés varado pela força/ e pela iras sonoras da procela/ o navio flutuou três noites à deriva”.                           
                                                                              
Solitários, os escravo dominados iam aguentando, sem que houvesse solidariedade, e nem tão-pouco as bênçãos do céu. É por isso que alguns

“…
de olhos rígidos/ metálicos/ abertos/ foram com urgência/ lançados ao mar/ os corpos nus; putrefactos/ (…) Não houve orações/ nem foram lidos/ versículos tristemente/ na Bíblia de bordo// Talvez não houvesse nenhum/ temente e breve sinal da Cruz”.

Porém a viagem continuou porque nem todos morreram; a viagem continuou porque a própria nau quebrada pela força da tempestade foi de novo reconstruída; a viagem continuou porque o destino das Baias tinha apenas começado. Após quinhentos anos, porém, isto é, a 5 de Julho de 1975, o povo das Baias, até então sem estatuto jurídico reconhecido, proclamaram a sua Independência   e com o Pai da nacionalidade e estratega da Luta de Libertação, cantaram:                           

Sol, suor e o verde e o mar.// Séculos de dor e esperança;/ Esta é a terra dos nossos avós! // Fruto das nossas mãos,/ Da flor do nosso sangue;/ Esta é a nossa Pátria amada // Viva a pátria gloriosa1/ Floriu nos céus a bandeira da luta // Avante contra o jugo estrangeiro! // Nós vamos construir/ Na pátria imortal/ A paz e o progresso!// (…)/ Ramos do mesmo tronco / Olhos na mesma luz:// Esta é a força da nossa união! // Cantem o mar e a terra/ A madrugada e o sol/ Que a nossa luta fecundou”.
Alguns anos depois, o povo das Baias, já num tempo que o Diário das Ilhas não regista, visto que o seu horizonte ia até a Independência, dava, na década de 1990, um novo salto na senda de um Estado de Direito mais forte e de uma conquista mais robusta da sua liberdade e dignidade, e com um dos seus poetas[1], entoou um novo hino:
“Canta, irmão / Canta, meu irmão / Que a liberdade é hino / E o homem a certeza // Com dignidade, enterra a semente/No pó da ilha nua / No despenhadeiro da vida / A esperança é do tamanho do mar / Que nos abraça / Sentinela de mares e ventos / Perseverante / Entre estrelas e o atlântico / Entoa o cântico da liberdade

É assim que o Diário das Ilhas, através do verbo e da palavra, procurou preencher, ainda que de forma incompleta, algumas zonas de silêncio que a narrativa dos “cronistas de serviço” não conseguiram ou não desejaram preencher. E isto é “exposição”, mas também é “reencarnação” do mundo crioulo, pela palavra, pelo pensamento e pelo sentimento.
Quem quiser ir mais além que leia a obra na sua integridade.

                                                                                                           Manuel Veiga









[1] Amílcar Spencer Lopes