sábado, 4 de julho de 2020

45 ANOS DA NOSSA INDEPENDÊNCIA




DIÁRIO DAS ILHAS: A Saga que os “cronistas de serviço” omitiram, deturparam, ou deixaram incompleta

A obra não é tanto a exposição de um mundo, através do pensamento, mas sobretudo o processo da sua formação, o do mundo da nossa crioulidade física, antropológica e histórica, através do verbo.

Se a narração vem em português é porque nos primórdios do mundo caboverdiano, a língua crioula ainda não existia. A obra tem muito de ficção, mas também tem muito de sentimento e de história. É por isso que no frontispício da mesma, o autor concorda com o poeta português David Mourão Ferreira  quando este escreve:

“… assistimos [hoje] à  afirmação, sem precedente, de uma ficção que à História recorre – tanto à História recente quanto à História remota – mas para sobre ela triunfar, e até para a modificar ou inflectir, por obra e graças do poder transfigurador do vero”.

E isto é tanto verdade quando, em Eloge de la Créolité (19933:36-38), se diz:

Notre histoire (…) est naufragée dans l’Histoire coloniale … [ele] n’est pas totalement accessible aux historiens. Leur méthodologie ne leur donne accès qu’à la Chronique coloniale. Notre Chronique est dessous les dates, dessous les faits répertoriés: nous sommes Paroles sous l’écriture. Seule la connaissance poétique, la connaissance romanesque, la connaissance littéraire, bref, la connaissance artistique, pourra nous déceler, nous percevoir, nous ramener évanescents aux réanimations de la conscience … [Seule] la vision intérieure et acceptation de notre créolité nous permettrons d’investir ‘ces zones impénétrables du silence où le cri s’est dilué. C’est en cela que la littérature nous restituera à la durée’, à l’espace-temps continu, c’est en cela qu’elle s’émouvra de son passé et qu’elle sera histoire”.

Diário das Ilhas é isto mesmo: “paroles sous écriture” que vão para além da crónica colonial, com recurso ao conhecimento romanesco, sociológico, arquivístico, oral-tradicional, jornalístico, literário e artístico, para, através da força transfiguradora do verbo e da alma crioula, preencher zonas de silêncio deixadas naquelas “crónicas de serviço”.

A saga começa com Naus Peregrinas, já desde os idos do século XV, navegando para Mar de Canal e nos Mares do Continente fronteiriço, nos trilhos do pernicioso sistema escravocrata, e fala das peripécias da operação e transformações várias (físicas, antropológicas e outras) dos colonos e escravos que às ilhas aportaram, desde a noite de 1460/62, até a manhã clarim do 5 de Julho de 1975, altura em que o confronto se tinha transformado em reencontro e o recém-nascido já tinha um nome de batismo: crioulidade caboverdiana..

Eis alguns extratos apenas do primeiro dia do Diário:

Antes de mais, entremos na Nau para a viagem a que o narrador, um tal poeta Jorge Barbosa, nos convida, ou melhor, nos apresenta:

Era antigamente/ a primeira nau de escravos/no rumo do Arquipélago/ rápida navegando/ sob o impulso dos alísios”.

Cabo Verde começou com uma nau, não uma qualquer. Era de escravos, mas também de capitães-mores. Uma nau sem identidade porque a sua história estava ainda no início, porque Cabo Verde ainda não era, estava para ser, porém o seu destino começara a cumprir-se. E é no poema “Prelúdio” que o mesmo poeta afirma:

“… nessa hora então/ nessa hora inicial/ começou a cumprir-se/ este destino ainda de todos nós”.

O estranho é que, de repente

“… abateu sobre  a  nau/ a maior tempestade do equinócio// Desmantelada/ o convés varado pela força/ e pela iras sonoras da procela/ o navio flutuou três noites à deriva”.                           
                                                                              
Solitários, os escravo dominados iam aguentando, sem que houvesse solidariedade, e nem tão-pouco as bênçãos do céu. É por isso que alguns

“…
de olhos rígidos/ metálicos/ abertos/ foram com urgência/ lançados ao mar/ os corpos nus; putrefactos/ (…) Não houve orações/ nem foram lidos/ versículos tristemente/ na Bíblia de bordo// Talvez não houvesse nenhum/ temente e breve sinal da Cruz”.

Porém a viagem continuou porque nem todos morreram; a viagem continuou porque a própria nau quebrada pela força da tempestade foi de novo reconstruída; a viagem continuou porque o destino das Baias tinha apenas começado. Após quinhentos anos, porém, isto é, a 5 de Julho de 1975, o povo das Baias, até então sem estatuto jurídico reconhecido, proclamaram a sua Independência   e com o Pai da nacionalidade e estratega da Luta de Libertação, cantaram:                           

Sol, suor e o verde e o mar.// Séculos de dor e esperança;/ Esta é a terra dos nossos avós! // Fruto das nossas mãos,/ Da flor do nosso sangue;/ Esta é a nossa Pátria amada // Viva a pátria gloriosa1/ Floriu nos céus a bandeira da luta // Avante contra o jugo estrangeiro! // Nós vamos construir/ Na pátria imortal/ A paz e o progresso!// (…)/ Ramos do mesmo tronco / Olhos na mesma luz:// Esta é a força da nossa união! // Cantem o mar e a terra/ A madrugada e o sol/ Que a nossa luta fecundou”.
Alguns anos depois, o povo das Baias, já num tempo que o Diário das Ilhas não regista, visto que o seu horizonte ia até a Independência, dava, na década de 1990, um novo salto na senda de um Estado de Direito mais forte e de uma conquista mais robusta da sua liberdade e dignidade, e com um dos seus poetas[1], entoou um novo hino:
“Canta, irmão / Canta, meu irmão / Que a liberdade é hino / E o homem a certeza // Com dignidade, enterra a semente/No pó da ilha nua / No despenhadeiro da vida / A esperança é do tamanho do mar / Que nos abraça / Sentinela de mares e ventos / Perseverante / Entre estrelas e o atlântico / Entoa o cântico da liberdade

É assim que o Diário das Ilhas, através do verbo e da palavra, procurou preencher, ainda que de forma incompleta, algumas zonas de silêncio que a narrativa dos “cronistas de serviço” não conseguiram ou não desejaram preencher. E isto é “exposição”, mas também é “reencarnação” do mundo crioulo, pela palavra, pelo pensamento e pelo sentimento.
Quem quiser ir mais além que leia a obra na sua integridade.

                                                                                                           Manuel Veiga









[1] Amílcar Spencer Lopes

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