terça-feira, 22 de janeiro de 2013

METÁFORA DA JULINHA

Cabral e a Metáfora da Julinha

(no lançamento de obras escolhidas de A. Cabral pela Fundação A.C., 20.01.2013)

”... Do acto sexual celebrado entre o mar e a terra nasce uma nova vida, a qual terá um nome inconfundível de baptismo: INDEPENDÊNCIA, para uns; a tão esperada JULINHA, para outros.
Os baianos estavam radiantes. A chuva rara do mês de Julho lavou o sangue da esterilidade e fecundou a te.rra que passou a ser de liberdade e de fraternidade.
Porém, a tenra criança que acabara de nascer, para que cresça livremente, precisará sempre de vento brando e de chuva mansa. Esta, caindo esporadicamente em Julho, frequentemente em Agosto, abundantemente em Setembro, espaçadamente em Outubro, fará com que o ano agrícola seja ‘fadjadu’ e a colheita seja boa.
Mas, se a chuva setembrina costuma alagar, o mês de Outubro é malandro, preferindo, muitas vezes, morrer de sede ou então afogar os recém-nascidos.
A esperança dos baianos é imbatível. Esperaram cinco séculos para se verem livres dos alísios. Esperarão também o próximo e os subsequentes meses de Outubro para saberem se contam com o crescimento ou o estrangulamento da Julinha. Esta história continuará um dia a ser contada pelo Ali-Ben-Ténpu. De momento, contentemo-nos apenas com o nascimento da nova vida.
Não se trata de um milagre, mas depois de tantos abortos ou da impotência em gerar, Julinha podia não ter nascido. Mas nasceu. Então, a festa tem que ser rija e o baptismo não podia tardar.
Os baianos vestiram a sua menina com todo o primor: saia encarnada, blusa verde, pano amarelo em volta da cintura. No seu fio de ouro, à volta do pescoço, balançava uma estrela negra.
As cores das vestes da menina traziam a cumplicidade da sua história: o vermelho simbolizava a dor e o sangue derramado durante a sua gestação e parto; o verde representava a esperança, a certeza de que um dia havia de renascer; o amarelo do período de seca e da safra da colheita era a cor da sua terra, mas também a certeza de que não mais haveria a fome; a estrela negra dava-lhe o sentido de uma orientação de que ela não podia nunca se esquecer: as terras de baobá, uma das matrizes da sua história.
Vestida assim, com propriedade e elegância, a nossa menina apresentou-se para a cerimónia do baptismo acompanhada dos pais, padrinhos e convidados nacionais como estrangeiros.
De novo o clarim soou e os anjos cantaram: ‘Sol, suor, o verde e o mar. Séculos de dor e esperança. Esta é a nossa [querida Julinha]...”. No meio de toda essa euforia, os baianos lembraram-se de Abel, barbaramente assassinado; do Agostinho, cuja morte estimulou o parto da Julinha; de alguns alísios experimentando agora o sabor das grades da prisão.
Sem abandonar a festa, os baianos, recolhidos num canto, rezaram uma oração: Meu Deus!, perdoai os pecados dos nossos agressores e a maldade das suas hostes que, certamente desconheciam a lei da fraternidade e o direito à dignidade. Que o testamento de Agostinho seja lido e decorado em todas as escolas da ribeira e das Baías. Que o exemplo de Abel seja motivo de orgulho para com a nossa Luta e de respeito e admiração para com os intrépidos soldados. Que as vestes da Julinha e o cântico do seu baptismo sejam os símbolos maiores da nossa resistência e as marcas indeléveis da nossa História.
Profundamente recolhidos naqueles piedosos pensamentos, os baianos juraram acompanhar o crescimento e o desenvolvimento da recém-baptizada, por um lado, sem ódio, sem vingança e sem revanchismo; por outro lado, com trabalho, com escola, com cultura, com diálogo e com cifrão. Assim, uma nova página da história seria escrita. A seu tempo, o Ali-Ben-Ténpu disso dará conta. Até lá, deixemos que o futuro se faça presente e que este encontre um lugar nas galerias da nossa história”
(Cf. VEIGA Manuel, 1997, Diário das Ilhas ,pp.236-237, Spleen Edições, Praia)
Ver mais

Gosto ·



Sem comentários:

Enviar um comentário