segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

A CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA NA LITERATURA CABOVERDIANA CONTEMPORÂNEA




A Doutora Fátima Fernandes (FF) é, seguramente, uma autoridade académica, em Cabo Verde, tanto no domínio do magistério, como no da descodificação e interpretação da literatura caboverdiana.
Gostaria de poder abordar o universo do trabalho de investigação levado a cabo por ela. Porém a riqueza e a diversidade de uma tese não se esgotam no limitado espaço e tempo de uma apresentação. Assim, optei por abordar apenas uma parte do que para mim constitui um apreciável contributo às letras e à cultura. Trata-se do capítulo em que ela aborda “A Construção Identitária na Literatura Cabo-verdiana Contemporânea”, a partir de três destacados escritores: João Varela, Corsino Fortes e José Luís Tavares.
          Devo dizer que a defesa de uma tese de doutoramento assinala o nascimento de uma obra, não uma qualquer, na medida em que ela não pode ser apenas descritiva; tem que poder contribuir para o avanço científico do objecto que analisa. Assim sendo, uma tese de doutoramento é uma festa para o mundo académico, mas também para todos os que se interessam pela matéria que constituiu o seu objecto.
          Na academia, essa festa vai para além do convívio de “comes e bebes”, em confraternização, para ser sobretudo um prazer intelectual de partilha, de constatar e de socializar o avanço da ciência que emerge do objecto estudado.
          Será que a tese da FF é uma mais-valia científica em termos da configuração ou desconfiguração para uma nova configuração identitária da literatura caboverdiana? É esse o testemunho que vou tentar apresentar.
          A tese da Doutora Fátima não é para ser lida apenas; é sobretudo para ser estudada. Por isso, não é minha intenção fazer a exegese da obra no seu todo. Prefiro apresentar o testemunho da parte que mais chamou a minha atenção.
          Retomemos então a questão de “A Construção Identitária na Literatura Cabo-verdiana Contemporânea”. Antes de apresentar as análises feitas pela autora, vejamos qual é a inteligência da palavra “identidade”, para depois aplicar o conceito à literatura caboverdiana contemporânea.

Escrevi algures que os contornos e, por vezes mesmo, a essência da identidade de um povo (na circunstância, a identidade da literatura caboverdiana) é algo de flutuante e de horizonte aberto.
Sobre esta questão, e indo um pouco mais longe, Martine-Abdallah-Preteceille acrescenta, de maneira inteligente
«... la valeur polyssémique de l’identité culturelle [interdit] toute théorisation à valeur normative, toute modélisation à partir d’une série d’attributs. Toute énumération, toute nomenclatura, même les plus affinées possibles sur les plans quantitatif et qualitatif, des composantes de l’identité culturelle, non seulement ne recouvrent pas la réalité de l’objet, mais comportent un risque d’institutionalisation et fixation d’un concepte dont, par ailleurs, une des caractéristiques est justement la mouvance»[1].

A própria Fátima Fernandes (p. 52), citando BAUMAN Zigmunt (2005), admite o seguinte :
“Tornamo-nos conscientes de que o ‘pertencimento’ e a ‘identidade’ não têm a solidez de uma rocha, não são garantidos para toda a vida, são bastante negociáveis e revogáveis, e de que as decisões que o próprio indivíduo toma, os caminhos que percorre, a maneira como age – e a determinação de se manter firme a tudo isso – são fatores cruciais tanto para o ‘pertencimento’ quanto para a ‘identidade’”.

        Isto significa que a identidade é e não é, porque está sempre em movimento, de acordo com as contingências do tempo, do espaço e das situações em que é construída, sentida e vivida.
          Não sendo a identidade cultural um todo de horizontes fechados, e possuindo como uma das características fundamentais a movimentação e o dinamismo, condicionados pelo contexto humano, histórico, social, económico e geográfico que a enformam e projectam, a análise da “Construção Identitária na Literatura Cabo-verdiana Contemporânea” abordada na tese da Doutora FF vai consistir mais na procura do seu percurso do que na inefável definição da sua essência.
Assim, o nosso testemunho vai incidir sobre o percurso dessa identidade, referida pela autora, no horizonte temporal que vai de 1960 a 2004, tendo por protagonistas os poetas João Vário, Corsino Fortes e José Luis Tavares.
Devolvamos a palavra à FF que, com a experiência do magistério exercido por largos anos e a observação de uma estudiosa engajada com a “coisa literária caboverdiana”, afirma assim:

Desde a nossa graduação, há cerca de duas décadas, os anos de aprendizagem, formação, pesquisa e ensino nesse domínio têm assegurado e reforçado [a] nossa percepção de que a Literatura Cabo-verdiana, notoriamente a partir da segunda metade do século passado, demarcou-se, no conjunto das literaturas escritas em língua portuguesa, pelo percurso singular de afirmação, assim como pelos processos de inovação e reorganização temática que legitimam a reflexão atenta sobre tais questões e uma consequente (re) configuração do seu sistema literário.”

          Neste percurso, o destaque vai para os três poetas já referidos e que para FF são representativos do período estudado.
Num outro trecho, a autora, continua:
As circunstâncias e a dinâmica que permitem compreender os percursos tomados pela Literatura Cabo-verdiana a partir dos anos sessenta do século XX merecem um estudo atento que possa, em primeiro lugar, identificar as linhas de atuação dessa produção, traduzindo-se em opções com que se demarcam os autores na busca concreta de uma viragem que acabará por legitimar a afirmação dessa Literatura e, por outro lado, (re) definir um solo teórico mais adequado e pertinente a essa procura”.

          Fátima Fernandes elege a poética de João Vário, de Corsino Fortes e de José Luís Tavares para caracterizar a identidade movediça da literatura caboverdiana contemporânea, circunscrita entre 1960 e 2004. A mesma é peremptória quando diz (na página 16):

“... ao definir os marcos periodológicos da série literária cabo-verdiana em pré e pós claridosa, estaremos apresentando uma visão limitada que, de certo modo, não dá conta da matriz identitária cabo-verdiana e de como as várias manifestações dela se apropriaram.
Pela sua pertinência e atualidade, tais afirmações vêm ao encontro da necessidade de definir critérios e parâmetros que, do ponto de vista teórico e metodológico, permitam organizar a série literária cabo-verdiana a partir de um novo paradigma, diferente daquele que toma a Claridade como manifestação literária e orientação determinante de uma perspectiva periodológica que situa o conjunto de mais de século de produções (desde a metade do século XIX à contemporaneidade) em pré e pós claridosa”.

          A novidade da tese de FF está, precisamente, no novo paradigma de periodização da literatura caboverdiana que preconiza, diferente daquela que mais tem vigorado até aos dias de hoje, isto é: pré-claridosa, claridosa e pós-claridosa. Esse novo paradigma evidencia-se:

“pelo recurso à metáfora para traduzir um modo próprio de sentir o mundo, no contexto em que ocorrem algumas das principais transformações identitárias e suas consequências no sistema mundial: o fenômeno das independências das ex-colônias africanas, que veio oferecer novos espaços de análise e reorientar as perspectivas de abordagem, sobretudo no contexto acadêmico, ao lado do fenômeno da globalização e seus efeitos econômicos, sociológicos, culturais, e, evidentemente, literários”.

          Segundo a autora
“...as obras poéticas de João Varela (através do seu heterônimo João Vário)  e Corsino     Fortes estabelecem referências identitárias para uma nova forma de produção          literária cabo-verdiana, compondo os vértices de um triângulo de percurso que se completa com a obra de José Luís Tavares”.

          É essa nova forma de produção literária recusando o paraíso da passargada colonial que encontramos nos poetas acima referido. Eles e os seus contemporâneos demonstram, através das suas liras, que

“..a trajetória do povo cabo-verdiano tem sido assinalada por lutas constantes, travadas nas malhas de trocas, dádivas e infortúnios que a história dos Homens e o destino ditaram. Vencidas as batalhas contra a força colonial, entre as palavras de sonho e a utopia de uma liberdade que se tornou hino na certeza dos seus homens, Cabo Verde, um pequeno arquipélago do Oceano Atlântico, conheceu, no seu itinerário histórico, graças à mestria dos seus trovadores e poetas, a transformação do canto das saudades e da separação em hino de beleza, coragem e crença num amanhã livre e de horizontes promissores” (p. 148).

Continuando, FF reafirma que

“A realidade das ilhas, impactada por vários ciclos de seca e de fome... deu fruto às inquietações de toda uma geração de escritores que constituiu, sem dúvida, o primeiro projeto de afirmação literária na história da então jovem literatura” (p.153).

          Se a leitura rápida e parcial do texto da Doutra Fátima não me trai, a designação de pós-claridosa para a literatura contemporânea não colhe, pelo que teríamos que encontrar uma outra designação mais funcional e mais objectiva em que Claridade não desaparece, porque também importante, mas deixa de ser o centro de todas as referências literárias em Cabo Verde.

          Sabendo da percepção que existe, até este momento, sobre o brilho de Claridade que, se não encobre, pelo menos ofusca outras luzes da cena literária caboverdiana, a interpretação que agora nos traz FF não deixa de ser ousada.

É por isso que diz:

“...no início dos anos sessenta, outras vozes se levantam em defesa de uma nova “identidade” literária, fundada num cenário de engajamento explícito do qual fizeram parte autores como Ovídio Martins (1928-1997) e o próprio herói nacional Amílcar Cabral (1924-1973)”.

          Segundo a autora, esta nova identidade literária é, “[...] assumidamente não Claridosa, isto é, ... não tem a Claridosidade como seu eixo central e muito menos seu fio condutor”.  Continuando, acrescenta que

“ é tão complexa a abordagem da questão do ‘pós-colonial’ [ ou então do pós-claridade], sendo ingrata a significação do prefixo ‘pós’, por não se revelar eficaz falar dela em termos de um depois, quando há uma continuidade, o continuum que prevalece, tanto num escritor com produção iniciada há mais de meio século, como Corsino Fortes, como num outro mais recente, José Luís Tavares”.

          Mais para frente acrescenta que
“...ao propor um novo discurso e uma orientação africana no ideário da novíssima geração, Onésimo Silveira dá voz a uma inquietação emergente, antes exposta por Manuel Duarte (1999) no ensaio ‘Caboverdianidade e Africanidade’, publicado pela primeira vez em 1954, em acérrima oposição à opção identitária claridosa, clamando por novos tempos que seriam uma consequência de mudança de atitudes”.

Concluindo diz que, na sua abordagem,

“...a escolha do plural ‘identidades’ não se apresenta aleatória, antes pelo contrário,           obedece a um refletir sobre um processo de análise, discussão e comparação do modo      como o perfil identitário dos escritores [ que estudou] determinou a emergência de           novas subjetividades” no campo da literatura, o que poderá significar também o       surgimento de novas identidades literárias com um  “discurso marcadamente metafórico, onde se assinalam conceitos que não são compreendidos pelo regime       anterior”(p.191).

Para a autora,
“... a construção de novas identidades, dos anos setenta a esta parte, processa-se em ausência de localizações sólidas, entre fronteiras menos definidas e   reveladoras de que não existe mais um centro ou, se existe, configura-se em outros moldes”.

          Se é que compreendi bem as palavras da autora, uma das conclusões que se pode tirar da análise das produções literárias de João Vário, Corsino Fortes, José Luís Tavares e outros autores contemporâneos, é que a Claridade, sem desaparecer, porque também importante, deixou de ser o centro de referência na periodização da literatura caboverdiana para passar a ser um modo de sentir literário, entre os anos 30 e 60 do século XX, assim como os escritores estudados marcam um outro modo de sentir literário próprio dos constrangimentos da época vivida por cada um deles. Assim, não temos a identidade literária caboverdiana, mas sim várias identidades literárias caboverdianas, sendo a Claridade uma delas. Todas essas manifestações compõem o mosaico das identidades plurais caboverdianas.

          Tudo leva a crer que a riqueza literária caboverdiana está precisamente na pluralidade do sentir literário das diversas épocas e dos diversos protagonistas. É isto que pude apreender da breve leitura feita da tese de FF.

          Não pretendo fazer nenhum julgamento porque o meu papel consiste em testemunhar o que apreendi. Ficam, pois, alinhavadas as pistas para quem quiser fazer uma leitura mais profunda e mais integral, talvez mesmo um estudo mais rigoroso da tese de FF. Quem fizer este estudo apreenderá e poderá até sintetizar a questão da identidade literária através da periodização apresentada por Manuel Ferreira, em 1985 (pré-claridosa, claridosa e pós-claridosa); a concebida por Pires Laranjeira, em 1995:  1. Iniciação, que vai das origens a 1925; 2. Hesperitana, que vai de 1926 a 1935; 3. Caboverdianidade, que vai de 1936 até 1957; 4. Caboverdianitude (com a influência da corrente da negritude, que vai de 1958 a 1965; 5. Universalismo que vai de 1966 a 1982; 6. Consolidação que vai de 1983 até aos dias de hoje.

          Outra periodização, referida por FF, é a de Manuel Brito Semedo que na sua tese (2006), defende uma periodização consubstanciada na da geração de Eugénio Tavares; na da geração de Baltasar Lopes e na da geração de Amílcar Cabral, sendo certo que os três poetas estudados, em termos literários, pertenceriam à última geração.

          A Douta Fátima Fernandes quis, também, sintetizar, para nós a sua própria proposta de periodização da nossa literatura quando afirma:

          “Mesmo considerando a reflexão em aberto, se nos fosse possível adiantar uma proposta, esta deveria poder atender ao estado de desenvolvimento da Literatura Cabo-verdiana, concentrando nossa atenção sobre o período pós-independência”.

Assim, teríamo”:

1º Período de Fátima Fernandes (FF): o Iniciático, entre 1850 e 1936. Na nomenclatura de Manuel Ferreira, esse período corresponderia a Pré-claridade. Na de Pires Laranjeira corresponderia a dois períodos, o da Iniciação e o Hesperitano. Na nomenclatura de Brito Semedo corresponderia à Geração de Eugénio Tavares.
2º Período de FF: o da Caboverdianidade, entre 1936 e 1962. Este período, na nomenclatura de Manuel Ferreira, corresponde ao da Claridade. No de Pires Laranjeira corresponderia também ao de Caboverdianidade. Enquanto na nomenclatura de Brito Semedo corresponderia à Geração de Baltasar Lopes.
3º Período de FF: o da Modernidade propriamente dita que vai de 1960 a 1980; e o da Modernidade Tardia, que vai de 1980 a 2001. Este terceiro período de FF corresponderia a Pós-claridade em Manuel Ferreira. Na nomenclatura de Pires Laranjeira seria: o de Caboverdianitude que vai de 1958 a 1965 e o de Universalismo que vai de 1966 a 1982. Na nomenclatura de Brito Semedo, este terceiro período de FF corresponderia à Geração de Cabral.
4º Período de FF: o da Consolidação (ou do processo de consolidação) que vai de 2001 à actualidade. Para Manuel Ferreira continuaria a ser o Pós-claridade. Na nomenclatura de Pires Laranjeira este período é também de Consolidação e na de Brito Semedo continuaria a ser o da Geração de Amílcar Cabral.

          Como estamos a ver, a doutora FF equaciona a questão da periodização da nossa literatura em quatro períodos, demarcando-se, sobretudo da que toma Claridade como tutela ou centro de referência. Sem subestimar as diferentes tentativas de periodização e de percepção do sentir literário das diversas épocas, FF perspectiva uma nova periodização, sem centro e sem tutela e com espírito aberto na procura da periodização que seja a mais pertinente e a mais funcional, de acordo com as manifestações da expressão e do sentir literários das diversas épocas.

          O projecto da história da literatura caboverdiana que já está em incubação não ignorará os diversos contributos quanto à percepção e periodização das diversas identidades literárias em Cabo Verde. Não tenho dúvidas que a tese cujo testemunho estou proferindo vai ser um contributo valioso na definição dessa periodização de horizontes abertos e na apreensão do sentir plural das diversas épocas e dos diversos momentos que configuram o nosso ser e estar na literatura.

          Agradeço à Doutora Fátima Fernandes pela mais-valia que esta tese representa, mas também pelo seu longo magistério literário. Todos nós ficamos e ficaremos atentos ao contributo dado, mas também ao contributo que, certamente vai continuar a dar, nas diversas azáguas e sementeiras da palavra, a palavra que forma e enforma o ser, o estar e o sentir literário das ilhas, ontem, hoje e amanhã.

                                                                           Obrigado

                                                                       Manuel Veiga
                                                                   Novembro de 2016





[1] Martine ABDALLAH-PRETCEILLE, «Identité Culturelle et Stéréotype de l’Identité Culturelle», in Recherche,   Pédagogie et Culture, nº62, avril/juin/83, p.72

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