A Doutora Fátima Fernandes (FF) é, seguramente, uma autoridade
académica, em Cabo Verde, tanto no domínio do magistério, como no da descodificação
e interpretação da literatura caboverdiana.
Gostaria de poder abordar o universo do trabalho de
investigação levado a cabo por ela. Porém a riqueza e a diversidade de uma tese
não se esgotam no limitado espaço e tempo de uma apresentação. Assim, optei por
abordar apenas uma parte do que para mim constitui um apreciável contributo às
letras e à cultura. Trata-se do capítulo em que ela aborda “A Construção
Identitária na Literatura Cabo-verdiana Contemporânea”, a partir de três
destacados escritores: João Varela, Corsino Fortes e José Luís Tavares.
Devo dizer que a defesa de uma tese de
doutoramento assinala o nascimento de uma obra, não uma qualquer, na medida em
que ela não pode ser apenas descritiva; tem que poder contribuir para o avanço
científico do objecto que analisa. Assim sendo, uma tese de doutoramento é uma
festa para o mundo académico, mas também para todos os que se interessam pela
matéria que constituiu o seu objecto.
Na academia, essa festa vai para além
do convívio de “comes e bebes”, em confraternização, para ser sobretudo um
prazer intelectual de partilha, de constatar e de socializar o avanço da
ciência que emerge do objecto estudado.
Será que a tese da FF é uma mais-valia
científica em termos da configuração ou desconfiguração para uma nova
configuração identitária da literatura caboverdiana? É esse o testemunho que vou
tentar apresentar.
A tese da Doutora Fátima não é para
ser lida apenas; é sobretudo para ser estudada. Por isso, não é minha intenção
fazer a exegese da obra no seu todo. Prefiro apresentar o testemunho da parte
que mais chamou a minha atenção.
Retomemos então a questão de “A Construção
Identitária na Literatura Cabo-verdiana Contemporânea”. Antes de apresentar
as análises feitas pela autora, vejamos qual é a inteligência da palavra “identidade”,
para depois aplicar o conceito à literatura caboverdiana contemporânea.
Escrevi algures que os contornos e, por vezes mesmo, a essência da
identidade de um povo (na circunstância, a identidade da literatura
caboverdiana) é algo de flutuante e de horizonte aberto.
Sobre
esta questão, e indo um pouco mais longe, Martine-Abdallah-Preteceille
acrescenta, de maneira inteligente
«... la valeur
polyssémique de l’identité culturelle [interdit] toute théorisation à valeur
normative, toute modélisation à partir d’une série d’attributs. Toute énumération, toute nomenclatura, même les
plus affinées possibles sur les plans quantitatif et qualitatif, des
composantes de l’identité culturelle, non seulement ne recouvrent pas la
réalité de l’objet, mais comportent un risque d’institutionalisation et
fixation d’un concepte dont, par ailleurs, une
des caractéristiques est justement la mouvance»[1].
A própria Fátima Fernandes (p. 52), citando BAUMAN
Zigmunt (2005), admite o seguinte :
“Tornamo-nos conscientes de que o
‘pertencimento’ e a ‘identidade’ não têm a solidez de uma rocha, não são
garantidos para toda a vida, são bastante negociáveis e revogáveis, e de que as
decisões que o próprio indivíduo toma, os caminhos que percorre, a maneira como
age – e a determinação de se manter firme a tudo isso – são fatores cruciais
tanto para o ‘pertencimento’ quanto para a ‘identidade’”.
Isto significa que a identidade é e não
é, porque está sempre em movimento, de acordo com as contingências do tempo, do
espaço e das situações em que é construída, sentida e vivida.
Não sendo a identidade cultural um
todo de horizontes fechados, e possuindo como uma das características
fundamentais a movimentação e o dinamismo, condicionados pelo contexto humano,
histórico, social, económico e geográfico que a enformam e projectam, a
análise da “Construção Identitária na Literatura Cabo-verdiana Contemporânea” abordada na tese da Doutora FF vai consistir
mais na procura do seu percurso do que na inefável definição da sua
essência.
Assim, o nosso testemunho vai incidir sobre o percurso dessa identidade,
referida pela autora, no horizonte temporal que vai de 1960 a 2004, tendo por
protagonistas os poetas João Vário, Corsino Fortes e José Luis Tavares.
Devolvamos a palavra à FF que, com a experiência do magistério exercido
por largos anos e a observação de uma estudiosa engajada com a “coisa literária
caboverdiana”, afirma assim:
“Desde a nossa graduação, há cerca de duas
décadas, os anos de aprendizagem, formação, pesquisa e ensino nesse domínio têm
assegurado e reforçado [a] nossa percepção de que a Literatura Cabo-verdiana,
notoriamente a partir da segunda metade do século passado, demarcou-se, no
conjunto das literaturas escritas em língua portuguesa, pelo percurso singular
de afirmação, assim como pelos processos de inovação e reorganização temática
que legitimam a reflexão atenta sobre tais questões e uma consequente (re) configuração
do seu sistema literário.”
Neste
percurso, o destaque vai para os três poetas já referidos e que para FF são
representativos do período estudado.
Num
outro trecho, a autora, continua:
“As
circunstâncias e a dinâmica que permitem compreender os percursos tomados pela Literatura Cabo-verdiana
a partir dos anos sessenta do século XX merecem um estudo atento que possa, em
primeiro lugar, identificar as linhas de atuação dessa produção, traduzindo-se
em opções com que se demarcam os autores na busca concreta de uma viragem que
acabará por legitimar a afirmação dessa Literatura e, por outro lado, (re) definir um solo teórico mais
adequado e pertinente a essa procura”.
Fátima Fernandes elege a poética de João Vário, de Corsino
Fortes e de José Luís Tavares para caracterizar a identidade movediça da
literatura caboverdiana contemporânea, circunscrita entre 1960 e 2004. A mesma é peremptória quando diz (na página 16):
“... ao definir
os marcos periodológicos da série literária cabo-verdiana em pré e pós
claridosa, estaremos apresentando uma visão limitada que, de certo modo, não dá
conta da matriz identitária cabo-verdiana e de como as várias manifestações
dela se apropriaram.
Pela sua pertinência e atualidade, tais afirmações vêm
ao encontro da necessidade de definir critérios e parâmetros que, do ponto de
vista teórico e metodológico, permitam organizar a série literária
cabo-verdiana a partir de um novo paradigma, diferente daquele que toma a Claridade como manifestação literária
e orientação determinante de uma perspectiva periodológica que situa
o conjunto de mais de século de produções (desde a metade do século XIX à
contemporaneidade) em pré e pós claridosa”.
A novidade da tese de FF está, precisamente,
no novo paradigma de periodização da
literatura caboverdiana que preconiza, diferente daquela que mais tem
vigorado até aos dias de hoje, isto é: pré-claridosa, claridosa e
pós-claridosa. Esse novo paradigma evidencia-se:
“pelo recurso à metáfora para
traduzir um modo próprio de sentir o mundo, no contexto em que ocorrem algumas
das principais transformações identitárias e suas consequências no sistema
mundial: o fenômeno das independências das ex-colônias africanas, que veio
oferecer novos espaços de análise e reorientar as perspectivas de abordagem,
sobretudo no contexto
acadêmico, ao lado do fenômeno da globalização e seus efeitos econômicos,
sociológicos, culturais, e, evidentemente, literários”.
Segundo a autora
“...as obras poéticas de João Varela
(através do seu heterônimo João Vário) e
Corsino Fortes estabelecem referências
identitárias para uma nova forma de produção literária
cabo-verdiana, compondo os vértices de um triângulo de percurso que se completa
com a obra de José Luís Tavares”.
É essa nova
forma de produção literária recusando o paraíso da passargada colonial que
encontramos nos poetas acima referido. Eles e os seus contemporâneos demonstram,
através das suas liras, que
“..a trajetória do povo cabo-verdiano
tem sido assinalada por lutas constantes, travadas nas malhas de trocas,
dádivas e infortúnios que a história dos Homens e o destino ditaram. Vencidas
as batalhas contra a força colonial, entre as palavras de sonho e a utopia de
uma liberdade que se tornou hino na certeza dos seus homens, Cabo Verde, um
pequeno arquipélago do Oceano Atlântico, conheceu, no seu itinerário histórico,
graças à mestria dos seus trovadores e poetas, a transformação do canto das
saudades e da separação em hino de beleza, coragem e crença num amanhã livre e
de horizontes promissores” (p. 148).
Continuando, FF reafirma que
“A realidade das ilhas, impactada por
vários ciclos de seca e de fome... deu fruto às inquietações de toda uma
geração de escritores que constituiu, sem dúvida, o primeiro projeto de
afirmação literária na história da então jovem literatura” (p.153).
Se a leitura
rápida e parcial do texto da Doutra Fátima não me trai, a designação de
pós-claridosa para a literatura contemporânea não colhe, pelo que teríamos que
encontrar uma outra designação mais funcional e mais objectiva em que Claridade
não desaparece, porque também importante, mas deixa de ser o centro de todas as
referências literárias em Cabo Verde.
Sabendo da
percepção que existe, até este momento, sobre o brilho de Claridade que, se não
encobre, pelo menos ofusca outras luzes da cena literária caboverdiana, a
interpretação que agora nos traz FF não deixa de ser ousada.
É por isso que diz:
“...no início dos anos sessenta,
outras vozes se levantam em defesa de uma nova “identidade” literária, fundada num cenário de engajamento explícito do qual
fizeram parte autores como Ovídio Martins (1928-1997) e o próprio herói nacional
Amílcar Cabral (1924-1973)”.
Segundo a autora, esta nova identidade
literária é, “[...] assumidamente não
Claridosa, isto é, ... não tem a Claridosidade como seu eixo central e muito
menos seu fio condutor”. Continuando,
acrescenta que
“ é tão
complexa a abordagem da questão do ‘pós-colonial’ [ ou então do pós-claridade],
sendo ingrata a significação do prefixo ‘pós’, por não se revelar eficaz falar
dela em termos de um depois,
quando há uma continuidade, o continuum
que prevalece, tanto num escritor com produção
iniciada há mais de meio século, como Corsino Fortes, como num outro mais
recente, José Luís Tavares”.
Mais para
frente acrescenta que
“...ao propor um novo discurso e uma
orientação africana no ideário da novíssima geração, Onésimo Silveira dá voz a
uma inquietação emergente, antes exposta por Manuel
Duarte (1999) no ensaio ‘Caboverdianidade e Africanidade’, publicado pela
primeira vez em 1954, em acérrima oposição à opção identitária claridosa,
clamando por novos tempos que seriam uma consequência de mudança de atitudes”.
Concluindo
diz que, na sua abordagem,
“...a
escolha do plural ‘identidades’ não se apresenta aleatória, antes pelo
contrário, obedece a um refletir
sobre um processo de análise, discussão e comparação do modo como o perfil identitário dos escritores [
que estudou] determinou a emergência de novas
subjetividades” no campo da literatura, o que poderá significar também o surgimento de novas identidades literárias
com um “discurso marcadamente metafórico, onde se assinalam conceitos que não
são compreendidos pelo regime anterior”(p.191).
Para a autora,
“... a construção de novas
identidades, dos anos setenta a esta parte, processa-se em ausência de
localizações sólidas, entre fronteiras menos definidas e reveladoras de que não existe mais um centro
ou, se existe, configura-se em outros moldes”.
Se é que compreendi
bem as palavras da autora, uma das conclusões que se pode tirar da análise das
produções literárias de João Vário, Corsino Fortes, José Luís Tavares e outros
autores contemporâneos, é que a Claridade, sem desaparecer, porque também
importante, deixou de ser o centro de referência na periodização da literatura
caboverdiana para passar a ser um modo de sentir literário, entre os anos 30 e
60 do século XX, assim como os escritores estudados marcam um outro modo de
sentir literário próprio dos constrangimentos da época vivida por cada um
deles. Assim, não temos a identidade literária caboverdiana, mas sim várias
identidades literárias caboverdianas, sendo a Claridade uma delas. Todas essas
manifestações compõem o mosaico das identidades plurais caboverdianas.
Tudo leva a
crer que a riqueza literária caboverdiana está precisamente na pluralidade do
sentir literário das diversas épocas e dos diversos protagonistas. É isto que
pude apreender da breve leitura feita da tese de FF.
Não pretendo
fazer nenhum julgamento porque o meu papel consiste em testemunhar o que
apreendi. Ficam, pois, alinhavadas as pistas para quem quiser fazer uma leitura
mais profunda e mais integral, talvez mesmo um estudo mais rigoroso da tese de FF.
Quem fizer este estudo apreenderá e poderá até sintetizar a questão da identidade
literária através da periodização apresentada por Manuel Ferreira, em 1985
(pré-claridosa, claridosa e pós-claridosa); a concebida por Pires Laranjeira,
em 1995: 1. Iniciação, que vai
das origens a 1925; 2. Hesperitana, que vai de 1926 a 1935; 3. Caboverdianidade,
que vai de 1936 até 1957; 4. Caboverdianitude (com a influência da
corrente da negritude, que vai de 1958 a 1965; 5. Universalismo que vai
de 1966 a 1982; 6. Consolidação que vai de 1983 até aos
dias de hoje.
Outra
periodização, referida por FF, é a de Manuel Brito Semedo que na sua tese
(2006), defende uma periodização consubstanciada na da geração de Eugénio Tavares; na da geração de Baltasar Lopes e na da geração de Amílcar Cabral, sendo certo que os três poetas
estudados, em termos literários, pertenceriam à última geração.
A Douta Fátima
Fernandes quis, também, sintetizar, para nós a sua própria proposta de
periodização da nossa literatura quando afirma:
“Mesmo considerando a reflexão em aberto, se
nos fosse possível adiantar uma proposta, esta deveria poder atender ao estado
de desenvolvimento da Literatura Cabo-verdiana, concentrando nossa atenção
sobre o período pós-independência”.
Assim, teríamo”:
1º Período de Fátima Fernandes (FF): o Iniciático, entre 1850 e 1936. Na
nomenclatura de Manuel Ferreira, esse período corresponderia a Pré-claridade. Na de Pires Laranjeira corresponderia a dois períodos, o
da Iniciação e o Hesperitano. Na nomenclatura de Brito
Semedo corresponderia à Geração de
Eugénio Tavares.
2º Período de FF:
o da Caboverdianidade, entre 1936 e 1962. Este período, na nomenclatura de
Manuel Ferreira, corresponde ao da Claridade.
No de Pires Laranjeira corresponderia também ao de Caboverdianidade. Enquanto na nomenclatura de Brito Semedo
corresponderia à Geração de Baltasar Lopes.
3º Período de FF: o da Modernidade propriamente dita que vai
de 1960 a 1980; e o da Modernidade Tardia, que vai de 1980 a 2001. Este terceiro
período de FF corresponderia a Pós-claridade
em Manuel Ferreira. Na nomenclatura de Pires Laranjeira seria: o de Caboverdianitude que vai de 1958 a 1965
e o de Universalismo que vai de 1966
a 1982. Na nomenclatura de Brito Semedo, este terceiro período de FF
corresponderia à Geração de Cabral.
4º Período de FF: o da Consolidação (ou do processo de
consolidação) que vai de 2001 à actualidade. Para Manuel Ferreira
continuaria a ser o Pós-claridade. Na
nomenclatura de Pires Laranjeira este período é também de Consolidação e na de Brito Semedo continuaria a ser o da Geração de Amílcar Cabral.
Como estamos a
ver, a doutora FF equaciona a questão da periodização da nossa literatura em
quatro períodos, demarcando-se, sobretudo da que toma Claridade como tutela ou
centro de referência. Sem subestimar as diferentes tentativas de periodização e
de percepção do sentir literário das diversas épocas, FF perspectiva uma nova
periodização, sem centro e sem tutela e com espírito aberto na procura da
periodização que seja a mais pertinente e a mais funcional, de acordo com as
manifestações da expressão e do sentir literários das diversas épocas.
O projecto da
história da literatura caboverdiana que já está em incubação não ignorará os
diversos contributos quanto à percepção e periodização das diversas identidades
literárias em Cabo Verde. Não tenho dúvidas que a tese cujo testemunho estou
proferindo vai ser um contributo valioso na definição dessa periodização de
horizontes abertos e na apreensão do sentir plural das diversas épocas e dos
diversos momentos que configuram o nosso ser e estar na literatura.
Agradeço à
Doutora Fátima Fernandes pela mais-valia que esta tese representa, mas também
pelo seu longo magistério literário. Todos nós ficamos e ficaremos atentos ao
contributo dado, mas também ao contributo que, certamente vai continuar a dar, nas
diversas azáguas e sementeiras da palavra, a palavra que forma e enforma o ser,
o estar e o sentir literário das ilhas, ontem, hoje e amanhã.
Obrigado
Manuel Veiga
Novembro de 2016
[1] Martine ABDALLAH-PRETCEILLE, «Identité
Culturelle et Stéréotype de l’Identité Culturelle», in Recherche, Pédagogie et Culture, nº62, avril/juin/83,
p.72
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