A Literatura Caboverdiana e o Sentido de pertença de cada
Época
Por Manuel Veiga
Por Manuel Veiga
A poética
de José Lopes está moldada em conformidade com o sentir da sua época e com os
constrangimentos sociais, culturais e ambientais do seu tempo.
Não há
nenhuma identidade literária que seja um muro fechado ou uma fortaleza blindada.
Isto seria uma pobreza que, particularmente no aspeto literário, é revelador de
um ostracismo sem a leveza, a projeção e a fecundidade da arte.
Na
história da nossa literatura, temos e continuaremos a ter vários momentos, cada
um com o seu sentir e a expressão da sua época, todos eles importantes e
reveladores da dinâmica cultural e criativa de um povo que sempre soube
manifestar a sua fome existencial e a sua ambição insaciável de ser mais e de
ter mais e melhor qualidade de vida e do ambiente, no campo cultural, no campo
humano, no campo social.
Acontece
que o sentir literário e a expressão artística, em Cabo Verde, nem sempre foram
interpretados com tolerância e espírito de inclusão crítica.
É assim
que a “claridade” foi quase que um “muro” em relação tanto à
geração literária antecedente (a dos ditos pré-claridosos) como, de alguma
maneira, a subsequente (a dos rotulados pós-claridosos), particularmente
aqueles que recusaram ler pela cartilha, única e exclusivamente, do telurismo étnico.
É por
isso que o poeta e ensaísta José Luís Hopffer[1], falando da identidade
literária caboverdiana, afirma que esta foi amiúde rotulada de evasionismo e de
inautenticidade. Eis o que ele diz:
“… os poetas e
escritores caboverdianos mais avessos (ou tão-somente indiferentes, ou temporariamente
indiferentes) à “monocultura identitária”, em parte ou na totalidade da sua
obra, têm sido amiúde acusados de inautenticidade e apatridia literárias, bem
como de sabida ancoragem num universalismo supostamente desenraizado, os quais,
por seu lado, são percepcionados como epifenómenos de uma espécie de novo
evasionismo na literatura caboverdiana”.
Na mesma linha, a Prof. Fátima
Fernandes[2] escreve:
“Se, antes da independência, fazia sentido uma “busca” da
identidade, a qual teria reflexo na afirmação da nacionalidade; após a
autonomia poderia ser questionada e considerada inoperante e desnecessária tal
procura.”
Reforçando o seu posicionamento,
Fernandes (op. cit. p. 152) cita BAUMAN Zygmunt para quem
“… O
‘pertencimento’ e a ‘identidade’ não têm a solidez de uma rocha, não são
garantidos para toda a vida, são bastante negociáveis e revogáveis (…) Em
outras palavras, a ideia de ‘ter uma identidade’ não vai ocorrer às pessoas
enquanto o ‘pertencimento’ continuar sendo o seu destino, uma condição sem
alternativa. (F. F., apud BAUMAN, 2005, p. 17-18) ».
A Nova
Literatura em Cabo Verde - segundo o poeta Filinto Elísio, citado por FF (p.
155 da sua tese de doutoramento) - é
[...] assumidamente
não Claridosa, isto é, … não tem a Claridosidade como seu eixo central e muito
menos seu fio condutor”.
Tudo
indica que para o novo sentir literário, em Cabo Verde, a literatura não tem
que ter, necessariamente, uma identidade de portas fechadas, nem ser uma
espécie de muro impenetrável. Naturalmente, ela tem que ter alguma identidade,
aquilo que Bauman interpreta como o sentimento de pertença, mas sem obedecer,
no dizer de Filinto Elísio, aos motes desta ou daquela época, sem se deixar
policiar pelos cânones nem dos nativistas, nem dos realistas, dos
neo-realisrtas, dos nacionalistas e no dizer de JLHA, sem incensar, ilegitimamente,
também, nem o telurismo e nacionalismo exacerbados, nem, exclusivamente, “a
arte pela arte”.
Nesta
perspetiva, a literatura caboverdiana - sem alcandorar a “Claridade” como centro (girando à sua volta a identidade ou
não-identidade dos pré e dos pós-claridosos), mas também sem catalogar nenhuma
das épocas como centro ou periferia, sem incensar nem o telurismo étnico, nem a arte pela arte - deve poder descobrir o
sentido de pertença de cada época e, criticamente, analisá-lo ou apreendê-lo,
de acordo com o sentir cultural, social e ambiental dessa mesma época. Esta
perspetiva, dizia, leva-nos a encarar a história da nossa literatura na sua
dinâmica, sendo todas as épocas importantes, por serem o retrato de um sentir,
de uma visão e de uma práxis, situados no tempo e no espaço.
A Época de José Lopes e a Busca de Referências: nasceu na Ribeira Brava, em S. Nicolau, a 15 de Janeiro
de 1872 e morreu em Mindelo a 2 de Setembro de 1962 (ver a sua biografia na
presente obra). Aos 15 anos viveu na Praia onde pôde conhecer Guilherme Dantas;
esteve também em Angola (1891) onde trabalhou numa fazenda; passou 6 anos na
Boavista onde contraiu o matrimónio. Passou algum tempo em Oeiras (Portugal).
De regresso a Cabo Verde foi transferido para Santo Antão onde exerceu docência
no magistério primário, de 1900-1928. A partir desta data, e até 1931, foi
professor no Liceu Infante Dom Henrique, em S. Vicente. Ainda, segundo Brito
Semedo e João Nobre de Oliveira foi agente consular do Brasil e da França, foi
condecorado pelo Ministro do Ultramar, Prof. Adriano Moreira, em 1962, com a
Ordem do Infante Dom Henrique; distinguido pela França com a Légion d’Honneur, pelo General De Gaule,
como reconhecimento pelo soneto “La
France”, escrito no quadro da Resistência, durante a 2ª Guerra Mundial. Foi
ainda reconhecido como Pupilo do Império Japonês pelo Imperador Hiro-Hito, na
sequência do poema heróico que exalta Japão na Guerra Russo-Japonesa de 1905.
Também a Academia Francesa aceitou-o como membro e a Suíça declarou como
património o seu poema “Helvétia”. A
sua obra em inglês foi inscrita na Biblioteca do Congresso nos EUA. Recebeu
menções honrosas do rei Alberto I da Bélgica e do rei Jorge VI da Inglaterra.
Em Cabo
Verde, nos idos de 1928, foi homenageado, durante a semana dos poetas,
juntamente com outros confrades. Em 1972, por ocasião do seu centenário de
nascimento, voltaria a ser homenageado pelas autoridades de então. Mais tarde,
no período pós-Independência, o então Presidente, Dr. António Mascarenhas
Monteiro, pelo decreto 3/95, de 2 de Fevereiro, a título póstumo, condecorou-o
com o Segundo Grau da Ordem do Dragoeiro e a 1ª Classe de Medalha de Mérito. Em
S. Vicente há uma praça que leva o seu nome e ostenta um busto em sua memória.
O mesmo foi apeado no seguimento dos acontecimentos violentos de 25 de Abril de
1974, mas o bom senso acabaria por mandar repô-lo, em 1985.
Pelos
dados acima referidos se pode concluir que José Lopes foi um intelectual
distinto, reconhecido particularmente no além-fronteira. A nível interno, a
partir da década de 1990 viria a ter reconhecimento oficial de maior destaque.
Este
reconhecimento tardio se deve à interpretação do sentir literário do tempo de
José Lopes em função dos cânones particularmente o de “fincar os pés no chão” (em exclusividade fronteiriço) e o do nacionalismo
literário um tanto-ou-quanto exacerbado do chamado período pós-claridoso,
particularmente com os defensores de uma literatura telúrica (concêntrica) e politicamente
mais engajada.
Acontece
que na época protagonizada por José Lopes, por Pedro Cardoso, Eugénio Tavares,
Luís Loff de Vasconcelos, entre outros, havia um sentir literário emergente num
contexto de pátria lusitana e de mátria africana, ligado mais ao ritmo e
estética romântica, grandiloquente e classizante, do que aos cânones do realismo,
do modernismo e do pós-modernismo protagonizados seja pelos claridosos, seja pelos escritores das
épocas subsequentes.
Na óptica
de JLHA citado por FF(op.cit. p. 93-94):
“… Um
alegado alheamento literário em relação à realidade caboverdiana injustamente
atribuído aos nativistas, aliado à utilização de uma linguagem de
tom grandiloquente e classicizante, dominante em Cabo Verde até à década de
trinta do século passado e persistentemente cultivado até à morte, em 1962, do
seu maior artífice nas ilhas, José Lopes, bem como por outras personalidades
proeminentes da cultura caboverdiana, como Pedro Cardoso (…) foram os alvos
principais da démarche modernista de fincar os pés na terra, protagonizada
pelos escritores claridosos …”.
Durante muito tempo, José Lopes - o patriarca
dessa poética “grandiloquente e classizante”,
onde os cânones do telurismo étnico e
do nacionalismo restrito não constituíam, rigorosamente, preocupação única, não
só foi esquecido nos meios literários (razão por que não consta da antologia No Reino
de Caliban, de Manuel Ferreira), como também foi acusado de evasionismo
telúrico e político e sua produção poética foi apoucada ou minimizada, sendo
antecessora da corrente literária subsequente, mas sem a dignidade de ser
precursora da mesma corrente, por não constituir nem elemento de referência,
nem de inspiração.
Vivendo
ele no período colonial, e numa altura em que o romantismo fazia escola, e
havia recurso à mitologia para explicar o que a realidade de então não
compreendia ou, então, não conseguia decifrar, José Lopes, mas também Pedro
Cardoso, lançaram mão do mito
hesperitano ou arsinário para interpretar o passado das nossas ilhas.
Numa página da Internet[3]
o autor de “O Mar na Poesia de Cabo
Verde” afirma):
“… As obras de José Lopes e de Pedro Cardoso, já nos
seus títulos (Hesperitanas, 1928, e Hespérides, 1929; Jardim das Hespérides,
1926, e Hespéridas, 1930, respectivamente) interpretam a origem [de Cabo Verde]
como: ilhas do velho Hespério – pai das Hespéridas – que abrigavam jardins
repletos de pomos de oiro, guardados pelo dragão de cem cabeças, morto por
Hércules (…)”.
Ao que tudo indica, tanto José
Lopes como Pedro Cardoso recorreram a esse passado mítico para denunciar a
situação de miséria e de abandono por que passavam as ilhas de Cabo Verde, na
época em que viveram.
A busca do passado de glória para
explicar o que a história não consegue ou não dispõe de elementos para explicar
era frequente na época de José Lopes e nas épocas anteriores. Basta recordar o
mito de Atlântica assim retratado[4]:
“Atlântida teria
sido um paraíso, uma lendária ilha cuja primeira menção conhecida remonta a
Platão”.
Porém, em
apenas uma noite, Atlântida foi engolida pelo mar. Este é o mito que,
provavelmente, inspirou tanto José Lopes de Hesperitanas e Jardim das Hespérides e Pedro Cardoso de Hespéridas e Jardim das Hespéridas. Ao que parece, o mito de Hespérides ou Hespéridas constitui o que da gloriosa
Atlântida sobrou.
Como terá
surgido o mito hesperitano? Tudo indica que, frente aos rigores de uma natureza
que, ciclicamente provocava a seca e a fome, bem como o colonialismo que
privava os caboverdianos da liberdade, justiça social e respeito pelos direitos
fundamentais, alguns intelectuais, como José Lopes e Pedro Cardoso sonharam e
arquitetaram o mito hesperitano, uma espécie de pasárgada do seu tempo, como
forma de exaltação da história das suas ilhas.
Assim
visto, o mito hesperitano teria por função a procura de equilíbrio (ainda que
apenas sonhado) num ambiente sufocado pela estiagem natural, cultural e
política.
José
Lopes, desiludido com o esquecimento das ilhas, por parte da então “Metrópole”,
estando na altura na Boavista (em 1899), proclama o desejo de as ver
independentes.
Do mesmo
modo, defendendo a pátria lusitana, Eugénio Tavares, em 1914, no n.º 176 d' A Voz de Cabo Verde lança estas interrogações:
Será «Crime o nativismo?
Crime amarmos mais o que é nosso do que é alheio? Será crime esse dulcíssimo
sentimento de amor à terra em que nascemos?».
É por
isso, ainda, que Pedro Cardoso, defendeu, com corpo e alma a dignificação do
crioulo e promoveu as tradições culturais de Cabo Verde (ver, entre outras
tomadas de posição, a conferência proferida em 1933, no Teatro Virgínia
Vitorino, na Praia, e o seu livro Folclore
Caboverdeano).
Ora, os
que assim agem não podem ser apodados de poetas alienados ou de evasionistas
telúricos, mesmo sendo defensores, ao mesmo tempo, da pátria lusitana e da mátria
caboverdiana, o que para muitos era uma posição dúbia e inaceitável.
O Húmus da Poética de José Lopes
O Soneto como Técnica: O autor de Jardim das Hespérides é
um cultor e amante do classissismo, tanto na forma, como, em algum sentido, no
conteúdo também. Na obra que a Academia Caboverdiana de Letra (ACL), em muito
boa hora, decidiu reeditar, em termos formais, escolheu o soneto como forma
poética de expressão. Segundo Emesrson Santiago[5]
“O soneto é composto por dois quartetos e dois
tercetos, ou seja, quatro estrofes (conjuntos de versos),
sendo que as duas primeiras devem conter quatro versos e as duas últimas três,
num total de catorze versos
Nos sonetos de Jardim das Hespérides,
temos sempre, ou quase sempre, duas quadras, dois tercetos e catorze versos, a
métrica de catorze sílabas (os chamados decassílabos), e as rimas estão
organizadas da seguinte maneira: a) nos quartetos, o primeiro verso rima com o
quarto e o segundo com o terceiro. Esta disposição é, formalmente, representada
por abba, designada por rima
interpolada (intercalada ou opostas)[6]. b)
Nos tercetos, o primeiro verso rima com o segundo e o terceiro verso do
primeiro terceto rima com o terceiro do segundo terceto, sendo a disposição
formalmente representada por aab.
Vejamos no poema Tributo Final, página 135 as
caraterísticas do soneto de JL, acima referidas:
“Ilhas
de Cabo-Verde ! — No meu verso
Eu quisera elevar-vos tanto, tanto,
Que transmitir pudesse no meu canto
Vossos nomes a todo o Universo!...
Terra da minha pátria!
onde disperso
Fica o meu ser, em átomos de pranto,
Amor e sofrimento!... Meu encanto,
Mesmo na dor o coração imerso!...
Eu te saúdo! Teu obscuro filho,
Se não te posso dar, do génio o brilho,
Contudo a um grande amor podes sorrir!
Recebe o coração do teu poeta.
Possa na morte, em lágrima discreta,
Levar n’alma a visão do teu porvir!...
Húmus da poética de
JL: O
chão da poesia de José Lopes é hesperitano[7].
Tanto no título desta obra (Jardim das Hespérides), como nas
várias referências feitas pelo autor, o ambiente
hespiritano é uma constante. Dir-se-ia que o poeta enraíza, poeticamente, a
identidade e a pátria crioulas nesse chão
hesperitano que outros chamam, também, “arsinário”.
Vejamos alguns exemplos, para além do título
da obra:
·
No poema “Batendo
à Porta”, p. 21 encontramos:
“Da
Torre de Marfim onde viveis, Poétas! / À porta, vem bater um que é da Hespéria oriundo”.
·
No poema “Hespérides”, p. 28, 2º quarteto e 1º
terceto, descreve o mito hesperitano:
“Lendas e velhos contos, são bonitos!
Tal o das três irmãs Hesperetusa
E as outras duas,
Egle e Aretusa –,
Vossas mães, — as Hespérides dos mitos –,
Descendeis delas,
que, de Héspero filhas,
Tinham no seu
jardim, as nossas ilhas,
Pomos de oiro, da guarda de um dragão...
Em
vários outros poemas encontramos referências ao mito hesperitano.
Ora,
a pergunta que se coloca é: porquê essa presença, quase que obsessiva, do “ mito
hesperitano”? Segundo Carmen
SECCO, atrás citada, as “ilhas do velho Hespério – pai das Hespéridas – que abrigavam jardins
repletos de pomos de oiro, guardados pelo dragão de cem cabeças, morto por
Hércules (…)”, é o mito de que tanto José Lopes como Pedro Cardoso se serviram para dar
corpo a uma pátria e a uma identidade que a então realidade das ilhas, flageladas
pela estiagem, esquecidas e abandonadas pelo poder central, não satisfazia ao sonho e ao ideário dos que prezavam o humanismo, a inclusão, a liberdade, a
dignidade e a igualdade de oportunidade para todos os caboverdianos.
José Lopes,
denunciando a situação degradante em que viviam os caboverdianos, afirma, em
1899, no número 14 da Revista de Cabo
Verde
“… dia virá em
que o povo há-de triunfar dos que ou o desprezam, ou o oprimem, ou o envenenam
(…) tenho anseios de que algum dia, embora no derradeiro momento da vida,
pudesse ter o prazer de ver estas pobres ilhas independentes”.
Na mesma
altura, um coevo de JL, o poeta Eugénio Tavares, denunciando a mesma situação,
em 1900, no jornal Alvorada, dizia
“Portugueses irmãos, sim;
portugueses escravos, nunca. Havemos de ter o nosso Monroe[8]:
A África para os Africanos”.
Também Pedro Cardoso, coevo de José Lopes, na sua “Ode à África”, de 1922, se insurge
contra os que em África ou em Cabo Verde vêm sugando o suor dos seus habitantes.
Vejamos a sua indignação:
“África minha, das esfinges berço/ já foste grande,
poderosa e livre (…)/ Mas hoje jazes sem poder sem nada/ (…)/ Sobre o teu
corpo, ó meu leão dormente/ vieram bárbaras nações pousar/ E, quais harpas
truculentas, feras/ Nele cevar…”.
Nessa mesma linha, já Luís Loff de Vasconcelos, em
1900, na sua obra A Perdição da
Pátria, referenciada por João Nobre de Oliveira (atrás citado),
proclama, ele também, a sua indignação perante os desmandos das autoridades da
então metrópole, para com Cabo Verde, nos seguintes termos:
“Temos inúmeras
razões, como filho de uma das colónias portuguesas, para graves ressentimentos
contra a mãe pátria, pela sua descuidada
tutela e desleixada administração
colonial, que não tem permitido o largo desenvolvimento moral e material
que a nossa terra, o nosso querido Cabo Verde, poderia ter. As leis que se
decretam para esta província, ou são inexequíveis ou atrofiadoras”.
Quem, como José
Lopes, Eugénio Tavares, Pedro Cardoso, Luís Loff de Vasconcelos, reclama a
cidadania inclusiva para Cabo Verde e para os caboverdianos, sejam eles vistos
como Jardim das Hesperides ou como hesperitanos, não pode ser considerado
alienado e desenraizado, mesmo defendendo, em uníssono, a pátria portuguesa e a mátria hesperitana
(entenda-se, caboverdiana).
A poética de
José Lopes e a sua intervenção cívica fazem coro com as reclamações dos
chamados “pré-claridosos”, acima referidos, sobretudo na denúncia que
encontramos no número 14 da Revista de Cabo Verde, acima referida.
Podemos, pois,
afirmar, que o chão da sua poética, para além do sonho hesperitano de ver as ilhas alcandoradas a um patamar mais alto de
dignidade e de desenvolvimento, expressa também um “telurismo” – não,
propriamente, o da valorização do crioulo ou da esconjuração da insularidade
madrasta (com o seu coro de fomes, secas e estiagem), mas um telurismo que se
confunde ou que dialoga com um humanismo de horizontes abertos. E isto porque,
na sua conceção, o mundo só seria hesperitano
quando passasse a ser uma aldeia global, de cidadania plena, de dignidade
reconhecida e vivida, de direitos respeitados e de deveres assumidos.
Um tal telurismo
de rosto humano e de janelas abertas para o mundo - a partir do chão das ilhas
(as suas hespérides) - não é, de
forma alguma, nem alienado, nem alienante. Com efeito, “Tempora Mutantur, Nos et Mutamur
in illis[9]”
(os tempos estão mudando e nós estamos mudando com eles), num sentir diferente,
é certo, mas sempre em defesa das hespérides
e dos hesperitanos (entenda-se Cabo
Verde e caboverdianos).
Ora,
um poeta “e pluribus unum” (plural e uno), com uma visão do global, sem
perder a geografia do local, defendendo (em português, inglês, francês e latim)
a cidadania do humanismo e a dignidade da sua mátria hesperitana, com pergaminhos de reconhecimento em vários pontos do
globo – um poeta, dizia, com esta dimensão, engrandece o nosso ser, fecunda e
vitaliza o nosso existir, quer nas ilhas hesperitanas, quer nas achadas,
cidades e ribeiras de Cabo Verde, quer em qualquer ponto do mapa, com todas as
cores e harmonia do arco-íris.
Há que entender e interpretar, de forma
crítica, a poética de José Lopes, de acordo com o sentir, com os valores e com
a estética e as preocupações da sua época. E se assim o fizermos, poderemos
dizer que a oração do poeta não foi em vão, quando, no poema “ Batendo à Porta”, p. 21, ele
suplica:
Da Torre de Marfim onde
viveis, Poetas!
À porta, vem bater um que
é da Hespéria oriundo.
Como vós naufragou no Mar
de Dôr do mundo
E sentiu o travor das
lágrimas secretas...
(…)
Ó Cisnes lmortais! dai-me uma sombra, à entrada
Venho de muito longe,
andei a Longa Estrada!
Abri!
Sou, como vós,— mendigo do Ideal!”
A poesia de José Lopes, esse gigante da arte de
Minerva e “da Hespéria oriundo”,
fez-me sentir a dor do seu tempo, “as secretas lágrimas vertidas”, a
universalidade e inclusão do seu pensamento, o sentido do seu verbo e da sua
sintaxe, o chão hesperitano
da sua mensagem e a grandeza de um ideal que, como um iluminado precoce, chegou
a antever a dignidade das suas ilhas respeitadas, como acontece no Jardim das Hespérides, ainda que
no derradeiro momento da sua vida.
Por isso, nós é que lhe pedimos para que nos deixeis
entrar na Torre de Marfim por si sonhado e arquitetado, “beijar o pórtico jucundo
e profundo do [vosso] Palácio Azul” e inclinar-nos, em profundo recolhimento e
reconhecimento, ao pé do Monumento literário que nos legou.
Obrigado José Lopes. Vós sois, seguramente, um dos nossos
Cines Imortais. Só que o humanismo da vossa arte não nada apenas no mar de
canal e nem somente no tão celebrado telurismo étnico, mas também aspira a
outros oceanos, para além da cortina que separa as hespérides do lado de lá, como que a querer ser compreendido
e confundido com a imensidão de um universo inconsútil, sem a exclusão das
ilhas, sem a fronteira entre os continentes.
Nota Final
Por tudo o que ficou dito, a poética de José Lopes
não só honra como engrandece a literatura caboverdiana e universal: pela beleza,
pela elevação, pela elegância, pela leveza, pela temática, pela cidadania, pela
universalidade, pelo humanismo, atributos estes que só uma poética de grande
envergadura pode ter.
Eu devo penitenciar-me por só agora, da minha
suposta “torre de marfim”, ter podido escutar o “bater à porta” do poeta da “Hespéria oriundo, sentir a sua poesia e
achar o seu pensamento”. Por isso, para mim, ele tem um lugar de destaque,
à sombra do grande PEDESTAL, do grande MONUMENTO que é a LITERATURA
CABOVERDIANA e UNIVERSAL.
Como eu, muitos se deixaram levar pela cantiga dos
que diziam que os pré-claridosos, com exceção de Pedro Cardoso e Eugénio
Tavares (cultores, respetivamente, do crioulo e da morna), eram alienados e
desenraizados.
Agradeço a Academia
Caboverdiana de Letras que, ao pedir-me para prefaciar a obra, deu-me a oportunidade,
não só de ouvir a “oração” de José Lopes, mas sobretudo de dar-me conta do
quanto a minha geração (e não só) foi prejudicada com a propaganda desinformada
de que os “pré-claridosos” eram desenraizados e não tinham a dignidade, sequer,
para serem os precursores das gerações literárias, a eles subsequentes, devendo
contentar-se apenas com o estatuto de antecessores.
Pelo encontro que tive com Jardim das Hespérides, ficou-me a certeza, sem nenhuma réstia
de dúvida, que a poética de José Lopes engrandece a nossa literatura,
engrandece a língua portuguesa e as literaturas nela moldadas. Por isso, peço
às instituições do ensino e às associações culturais de Cabo Verde que façam
tudo para que a geração anterior à claridade
e o sentir do seu tempo sejam conhecidos, interpretados e avaliados com justiça,
com conhecimento e com humanismo.
Março de 2017
Manuel Veiga
[1] “Que caminhos para a poesia caboverdiana? Antigos
e recentes debates e controvérsias sobre a identidade literária caboverdiana”
in Navegações,
Porto Alegre, v. 4, n. 1, p. 93, jan./jun. 2011
[2]
A expressão metafórica do sentido de
existir na Literatura Cabo-verdiana contemporânea: João Varela, Corsino Fortes e José Luís Tavares, Tese de doutoramento, 2013,
p.151.
SECCO Carmen L.T.R.
(org.), 1999. Antologia do mar na poesia
africana de Língua Portuguesa do séc. XX: Cabo Verde. Rios de Janeiro:
UFRJ.
[6] Existe m ainda as seguintes
rimas: cruzada ou alternada, quando o primeiro verso rima com o terceiro, e
o segundo com o quarto; emparelhada,
quando o primeiro verso rima com o segundo e o terceiro co o quarto; encadeada ou interna, quando palavras
que estão no fim rimam com as que estão no interior do verso; misturadas, quando não há uma ordem
determinada; versos brancos ou soltos,
quando não têm rima (cf. wikipédia).
[8] O Presidente James Monroe é um pan-americanista que, em 1823, no Congresso
dos EUA, se insurgiu contra a colonização do Continente americano pelos
europeus.
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