sábado, 17 de fevereiro de 2018

Homenagem a Luís Romano

A Fome: Um Apontamento a Partir de Famintos, de Luís Romano

Quando, há já algum tempo atrás, na década de 80, começámos a ler, pela primeira vez, a gesta dramática do “Povo das Ilhas sem Nome”, através da histórica obra de Luís Romano – Famintos - não tivemos a força suficiente nem a coragem necessária para aguentar o realismo nu e cru dos acontecimentos narrados, a evocação eloquente e agressiva da linguagem utilizada, a proliferação de imagens e de situações confrangedoras, em cada frase, em cada folha e em cada capítulo do livro.
Deveras impressionados, pusemos o livro de lado, na certeza de nunca mais voltar a reviver os quadros tristes e lúgubres dos capítulos lidos, dos capítulos que não fomos capazes de ler.
Porém, os anos passaram e, no nosso interior, a insatisfação de não termos podido “devorar” os “Famintos” ia ganhando corpo. De adiamento em adiamento, não havia forma de encontrar um pretexto suficientemente forte para vencer a inércia adquirida e as náuseas do primeiro contacto.
Eis, porém, que surge uma oportunidade: a comemoração do quadragésimo aniversário do chamado “Desastre de Assistência”, em 1989.
Com o coração apertado, e com a razão torturada, retomámos a leitura e, assim, podemos chegar ao fim de os “Famintos”. A mesma dificuldade que tivemos em fazer a sua leitura vamos ter agora em fazer a sua apresentação.
A todos pedimos compreensão e tolerância pelo realismo da linguagem que vamos reproduzir, e pelo reviver de acontecimentos dramáticos que tiveram por sujeito o povo destas Ilhas.
Na apresentação desse trabalho de Luís Romano, falaremos, essencialmente, do drama da fome, do despotismo da força e da ganância dos morgados e comerciantes.
Para começar, gostaríamos de chamar a vossa especial atenção para o desafio com que o autor termina a sua obra (p.340):    
      
Quero ser pedra/para não pensar/para não sentir…/ Desejo mais do que nunca/ montanhas vivas sem bocas deformadas dos aflitos”.

Este desabafo é deveras significativo, sobretudo se considerarmos que não há coração nem razão que possam resistir à crueldade dos factos que vão seguir.
Escrito na década de 1940, o seu autor pôde, clandestinamente, levar o manuscrito para um país do continente africano, o que possibilitou a sua publicação no Brasil em 1962 e em Portugal somente depois da “revolução dos cravos”, em 1975. Nele, “a negra bandeira da fome” flutua desde a primeira até a última página.
 Se a unidade literária do livro se dilui, como o próprio autor o admite através do encadeamento ou sobreposição dos diversos quadros da fome, o mesmo não acontece quanto ao seu conteúdo. Com efeito, desde a primeira até a última página, o drama da fome é uma constante. Uma fome que encontramos estampada na cara cadavérica do cabouqueiro Paulino, na miséria gritante do camponês Cosme, na situação humilhante da “mocrata” Rosenda, no desfecho desesperante da história de Nina de Tuda…
Paulino era um asmático que mal podia levantar a sua própria ferramenta de trabalho. Sufocado pela tosse que o torturava a cada instante e a cada golpe que desferia à terra, numa procura desesperada de agradar ao capataz Lúcio e de garantir o seu dia de trabalho, não era homem para facilmente se vergar diante do “destino”. Entretanto, a moléstia crónica que se apossara do seu corpo frágil e subalimentado era mais forte do que a sua tamanha vontade de poder garantir naquele dia aziago o tão escasso pão para a sua família. Assim (p. 16),

“…a tosse tapou-lhe a garganta. De novo, largou a picareta. Ninguém se atrevia a desviar o rosto ou apresentar-lhe auxílio. Lúcio (o capataz) observava. Paulino abriu o mais que pôde a boca e caiu, estorcendo-se, as calças manchadas de urina”.

Tentando recompor-se, o capataz-carrasco que interpretara o incidente como uma manifestação de malandrice não se fez esperar: com o punho em riste (p. 16),

“… bateu nos dentes do cabouqueiro. Sangue desceu-lhe em fios pelo pescoço, enodoando a camisa… Paulino. Sem opor resistência, deixou-se rolar ao pé, de borco, os dedos a enterrarem-se pela boca, num esforço de desentupir os pulmões”.

Não podendo resistir à força indomável desse pulmão que já se encontrava em estado adiantado de podridão, Paulino, impotente e desamparado, viu o seu dia de trabalho cortado. Porém, não se desanima e, na manhã seguinte, com uma fé inquebrantável, volta à azáfama de todos os dias, mas, novamente (p.41),  
     
“…tornou a cair sobre a terra, tomado de tremuras, a encolher-se, com as mãos apoiadas na ponta do umbigo. Novo ataque de asma veio… abriu a boca, os olhos fitaram o companheiro e depois vidraram-se. A urina molhou-lhe as calças para então Paulino ficar tranquilo, os olhos imenso”.

A história de Paulino era também a história de Pedro, Paulo, Manuel, João … todos eles condenados a única “liberdade” na vida, o de morrer antes do tempo, depois de tudo de tudo terem hipotecado, vendido ou sacrificado: a saúde, os amigos, a dignidade das filhas, os sentimentos, a casa, a terra…
É assim que o autor nos apresenta, por exemplo, o lavrador Cosme que, a troco do grão do milho para saciar a sua fome e a da família, sentiu-se obrigado a vender por três contos e duzentos o que lhe custara vinte e cinco contos de reis. Daí que esmagado pelo peso da situação em que se encontrava, dizia (p.47): 

      “Sr. Joãozinho comprou foi canseira de fábrica onde trabalhei anos sem conta. Ele comprou                minha casa onde nasceram meus meninos, tudo quanto ajuntei debaixo de suor e fadiga… Ele              não  comprou minha horta. Foi meu suor…” que ele adquiriu e por um preço irrisório.

Extremamente magoado com a ganância e a insensibilidade do comprador dos seus bens, Cosme, ao receber ordens do regedor para deixar a terra e a casa que doravante passariam a pertencer ao Sr. Joãozinho, não pôde aguentar tão duro golpe e só se curvou perante as ordens da autoridade, quando já se encontrava (48) “…envolto num pano onde as moscas vinham poisar”.
Igualzinha à história do lavrador Come é também a do camponês Agostinho. Também ele tinha a sua horta que era – dizia- (172)

“…como se fosse a minha (própria) filha fêmea. Tem muito suor meu caído nos regos e nas covas das plantinhas que semeei…Nenhum dinheiro é capaz de comprar aquele amor que a gente tem pelas coisas sem valor que criámos com a ideia num descanso para os últimos dias da vida”.

Entretanto, conhecendo o valor da Chã-de-Cinta onde nasceram todos os filhos de Agostinho e onde por cada umbigo do filho enterrado “…nasceu uma frondosa mangueira”, o comerciante da zona, frente a uma extrema miséria do camponês, aceitou por hipoteca aquilo que para Agostinho era a razão de existir.
Não satisfeito com a simples hipoteca, o comerciante que ia fornecendo milho para sustento da família de Agostinho resolveu pregar uma triste partida ao seu freguês, escondendo a carta do filho emigrante, com quinze contos de reis. Desejando não mais restituir a horta do camponês, chamou-o e convidou-o a dispor-se da sua loja como melhor entendia. Cego pela fome, o pobre Agostinho contraiu dívidas que os quinze contos que depois veio a receber já não chegavam para levantar a hipoteca e, deste modo, perdeu a sua hortinha, sem no entanto ter podido resolver o problema da fome e da miséria.
A inclemência do “destino” e a crueldade dos que detinham o poder administrativo e económico iam assim ceifando vidas inocentes e desamparadas; iam torturando o coração das mães desesperadas e dos pais impotentes; iam manchando e conspurcando a pureza nobre das donzelas pobres e abandonadas.
Com efeito, nessa aldeia da morte pintada pelo autor de “Famintos”, a crueldade da situação era tal que indescritível se torna a sua verdadeira caracterização. As imagens tristes e desoladoras sucediam-se sobrepunham-se: aqui, grupos de mendigos famintos e cadavéricos lutando contra a morte; acolá (p.27),

“… a dois passos, o corpo de um petiz esverdeando-se fora da cova que não foi concluída… Mais além, um velho, as gengivas à mostra, formigas entrando e saindo pelas narinas, pela boca, pelos ouvidos, os braços entre os joelhos, o ventre como um tambor”.

Frente a esse quadro de morte, onde para matar a fome tudo era possível, as donzelas vendiam ao desbarato as suas honras, os velhos não tinham pejo de catar piolhos para comer, os mendigos não hesitavam em retirar restos de comida da boca dos que acabavam de morrer.
São elucidativos alguns casos que passamos a apresentar. Comecemos com a história de um velho miserável que trocava telhas e pranchas de madeira da sua própria casa por litros de milho. Consumada a troca (p. 49),

A caminho do casebre ele sentava-se numa pedra e comia todo cru como se fosse um animal de engorda. Sem estômago, depois, inchava-se os gases fermentado. No dia seguinte, no mesmo sítio, o velho amanhecia morto com o bucho cheio e o corpo sequinho como papeira esmorecida. Da boca, posta de milho mastigada, a pender. Os mendigos que passam brigavam como se fossem cães; o mais forte corria para o morto, retirava-lhe os sobejos engolindo-os num instante”.

Comovedor é também o caso de Justina que depois de encontrar alguma migalha para o pai moribundo corre em seu socorro, mas já (p.138)

O velho tremia, aos arrepios, inconsciente quase. Justina encostou a porta, espalhou por cima desse corpo reduzido a ossos os farrapos que lhe serviam de enxerga; aos poucos, como um embriagado, o pai adormeceu, a cabeça apoiada ao regaço da filha, que cheirava a esperma”.

Indescritível é ainda a história da Nina de Tuda que ao ir para o trabalho sentiu dor de parto. De pernas inchadas, rosto sumido e olhos esverdeados, ficou abandonada na estrada, ela e o filho que mal apontava a cabeça, servindo-se de pasto para corvos e cães famintos.
Igualmente triste é a cena daquele agricultor que, desesperado por ter assassinado alguns miúdos que encontrara a roubar na sua horta (p. 30),

“…meteu a cabeça a pensar no que fizera. Os cabelos arrepiaram-se-lhe… um suor abundante molhou-lhe a testa. Ergueu de um pulo, abriu a mala das ferramentas, retirou a bolina, engatou-a nas vigas do sobrado, fez um laço, subiu na cadeira que afastou com um pé e ficou baloiçando, a língua de fora, os olhos escancarados”.
É, pois, toda essa angustiante situação que levou o poeta José Lopes a dizer:

Aos milhares, Senhor. Os meus irmão nativos/ vagueiam espectrais, exangues, mortos-vivos!/ Todo um povo agoniza! A fome invade os lares/ só é remédio a morte, e tombam aos milhares!

A tirania da fome, nesse mar de angústia, tornou-se tão desesperante que acabou com os sentimentos da esposa perante o marido morto, do filho diante do cadáver do pai e das filhas frente aos desejos libidinosos daqueles que só momentaneamente poderiam matar (ou enganar) a sua fome.
Para mulato, o agente do poder administrativo e colecionador das donzelas virgens para as suas orgias diárias, somente uma metralhadora era capaz de pôr ponto final àquela miséria humana: Eliminava dores e, sob o ponto de vista higiénico, o afastamento da ameaça da peste ou qualquer outra moléstia infeciosa. E por isso, segundo ele (p. 143),

“… a lei de selecção natural não admite sentimentalismos. Quem não pode sobreviver deverá desaparecer”.

Continuando, Mulato afirma descaradamente (p. 143-144):

Considero que o melhor é a morte rápida dessa marmalha, sob o ponto de vista higiénico, sob o ponto de vista humano até, visto o sofrimento e a penitência desapareceriam na morte… E cá para nós (continua ele) seria uma limpeza completa de tanta imundice pelo Povoado, doenças e esqueletos deambulando pelas ruas até que impressiona a gente-de-bem”.

É comovedora, é dramática mesmo a história contada pelos “Famintos”, a história dos que habitavam essas ilhas sem nome, porque esquecidas e abandonadas. E porquê? pode-se perguntar. Porque assim quiseram as repetidas estiagens; porque assim decidiram os que detinham o poder político e económico; porque assim era o “destino “dessa gente indefesa, mas um destino fabricado pelos inimigos dessa mesma gente.
Com letras de sangue, Luís Romano pintou um dos quadros mais trágicos da gesta do Povo de Cabo Verde, gesta esta que abriu caminho e fecundou o histórico dia em que as Ilhas passaram a ter um nome e um lugar no mapa, em que a liberdade radiante e vitoriosa passou a flutuar não na bandeira negra da fome, mas sim na bandeira vermelha, verde e amarela [hoje: vermelha, azul e branca], símbolos do sofrimento, da esperança, da luta e do progresso.
Com o 5 de Julho de 1975, a fome e a miséria passaram para a história, mas sem deixar de fecundar uma nova história: a do progresso, da liberdade e da dignidade para todos os filhos deste querido chão que o poeta chamou “a pátria do meio do mar”.

Notas: 1): Manuel Veiga, 1994. A Sementeira, Lisboa, ALAC, p. 111-116.

            2) Luís Romano, 1975. Famintos, Lisboa, Nova Aurora

1 comentário:

  1. Devo dizer que sinto-me profundamente reconhecido (creio que Cabo Verde, também) pelo inestimável contributo de Luís Romano às letras Caboverdianas. Esse reconhecimento é extensivo ao Brasil, às Universidades brasileiras, à Embaixada do Brasil em Cabo Verde, à Simone Caputo Gomes, à Marinha brasileira, a todos os académicos brasileiros que têm contribuído para a recuperação e devolução a Cabo Verde do rico acervo literário de Luís Romano, cuja custódia acabou de ser ontem, 16/2/2018, confiada à nossa Biblioteca Nacional.

    Esse reconhecimento, ainda, vai para todas as instituições e personalidades brasileiras que têm ajudado na promoção e divulgação das letras e da cultura caboverdianas nas terras de Vera Cruz.

    A Todos o nosso muito obrigado.

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