A
palavra e o Verbo.
Minhas
senhoras e meus senhores,
Palavra
de honra que custa. Custa sempre. Arrancar da caneta ou do computador, da verve
de escrita ou da vontade ou obrigatoriedade de plasmar no papel algumas ideias
rascunhadas pelo cérebro, por vezes, é um trabalho hercúleo. Pelo menos nos
primeiros momentos.
Creiam
que é uma angústia. As palavras não coopera
m. Juntam-se contra nós num complot. Ameaçamo-las e empurramo-las, mas não saem. Por vezes parece que têm vontade própria. E têm, podem ter a certeza. Quem trabalha ao lado delas sabe-o muito bem Tornam-se fugidias e fugitivas. Apetece desancá-las com epítetos musculados, mas, no fim, no fim mesmo, compreendemos que elas gostam mesmo é de jogar. Quando deixamos de correr atrás delas, vêm de mansinho encostar-se no dengo ainda tenso do intelecto, para depois insinuosamente deslizarem para a ponta dos dedos e, depois para o papel. Caprichosas e atrevidas, diria alguém nesta sala acerca das palavras.
m. Juntam-se contra nós num complot. Ameaçamo-las e empurramo-las, mas não saem. Por vezes parece que têm vontade própria. E têm, podem ter a certeza. Quem trabalha ao lado delas sabe-o muito bem Tornam-se fugidias e fugitivas. Apetece desancá-las com epítetos musculados, mas, no fim, no fim mesmo, compreendemos que elas gostam mesmo é de jogar. Quando deixamos de correr atrás delas, vêm de mansinho encostar-se no dengo ainda tenso do intelecto, para depois insinuosamente deslizarem para a ponta dos dedos e, depois para o papel. Caprichosas e atrevidas, diria alguém nesta sala acerca das palavras.
Penso
que outros com mais competentes e clarividentes, chegaram há muito a esta
conclusão. É que isso vem fazendo história e se repetindo desde o início do
sonho dos tempos.
Sim.
No princípio era o verbo. Lembram-se?
Numa
tradução direta do grego para o português, “no início era a Palavra, e a
Palavra esta com (em direção a) (o) Deus, e Deus era a Palavra. Por outro lado,
traduzindo do latim para o português, “no princípio era o Verbo e o Verbo
estava com Deus (ao lado dele) e Deus era o Verbo.
Qual
nasceria em primeira instância? Sendo as duas sinónimas, uma conceitua, outra
conjuga-se para a dinâmica que há porvir das intenções, nos pensamentos
germinantes, nos anseios do que há de se escrever, de se materializar, no tempo
(verbal), com o olhar ou os sentidos no sincronismo ou diacronismos que o espaço
se lhe permitir na estrada desta vida.
No princípio criou Deus os céus e a terra.
O apóstolo
João inicia seu relato sobre a vida de Jesus Cristo com esta declaração: “No
princípio, era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus.
O VERBO é palavra que faz acontecer, é ação,
como na criação onde segundo Gn 1,3 é a Palavra de Deus, o VERBO, que tudo
cria: “Disse Deus: Haja luz; e houve luz”.
Esta forma de identificar Jesus como o VERBO é
encontrada no evangelho segundo João, cap. 1,1.10.14; e na Primeira Carta de
João cap.1,1.
No Inicio era o Verbo é a notória abertura presente no
primeiro capítulo do Evangelho de João, que nos seus versículos iniciais
retoma a criação do mundo, tema ainda do primeiro capítulo do Gênesis. Contudo, ao tratar o Deus cristão como o próprio "Verbo", «No princípio era o Verbo
e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus.» (João
1:1-4), João Evangelista incorpora à tradição cristã a concepção grega da oposição entre logos e caos, oposição esta que aparece desde de
textos como a Teogonia de Hesíodo, escrito por volta de 900 anos antes deste que é o quarto e
último evangelho, que, por sua vez, foi elaborado entre os anos 95 e 100 d.C.
Cabe notar que todo o Novo Testamento foi escrito em grego koiné a lingua franca da parte oriental do Império Romano nas primeiras décadas da era cristã.
Do Verbo à Palavra.
A expressão palavra, na língua portuguesa, teve origem
no latim vulgar paraula, sendo que essa vem do latim clássico parabola.
Muitas das histórias de Jesus Cristo são contadas por
parábolas, como ficaram conhecidas popularmente. Essas eram de cunho moral e
serviam para comparar determinada situação da vida real.
A frase “tirou a palavra da minha boca”
significa que alguém disse exatamente o que a pessoa estava expressando, ou
completou perfeitamente a ideia que ela iria expôr.
Trata-se também da representação gráfica da palavra
falada, a faculdade de falar/de se expressar/de dar a sua opinião, a aptidão
oratória e o direito ou a vez para falar em assembleias políticas e outras
corporações. Por outro lado, a palavra corresponde ao compromisso de alguém na
medida em que dá a sua honra e a promessa ou oferta (“Dou-lhe a minha palavra”
ou “Manuel é um homem de palavra”).
A palavra pode ser estudada a partir de diversas
perspetivas. Podemos analisá-las, dentro da sua enorme complexidade, mediante
os critérios: fonológico, formal ou morfológico, funcional e semântico.
Palavra é um termo, um vocábulo,
uma expressão. É uma manifestação verbal ou escrita
formada por um grupo de fonemas com uma significação. Dentro de todas essas
aceções, a função da palavra é representar partes do pensamento humano, e por
isso ela constitui uma unidade da linguagem humana.
Minhas
senhoras e meus senhores,
Qual
obra de vulto é uma construção sonhada, planificada, esboçada, com avanços e
recuos na escolha dos materiais, leia-se temáticas ou pontos escolhidos de
observação ou abordagem.
A
Palava e o Verbo, na perspetiva do autor “é um repositório do pensamento
cultural que o caraterizou num percurso que vai de 1990 até 2015. É fruto de
muitas reflexões culturais”. Outra coisa não seria de esperar, sendo ele um
homem “atravessado pela cultura”, dos pés à cabeça, com uma especial paragem
pela linguística. Outra vez a palavra a querer entrar novamente agora vestida
de termo.
Como
diz o autor, “através da magia da palavra se consegue recriar, compreender ou
interpretar o mundo que nos rodeia, o social que nos interpela e o cultural que
nos envolve e carateriza”.
Esta
é uma obra testemunhal.
Testemunho
costuma ser metonimicamente falando, a versão de uma dada experienticidade,
vivência ou observação.
Testemunho
também é legar, transmitir algo aos outros, como forma de prossecução e
consequente continuidade, porquanto a vida é sempre uma eterna caminhada para o
aperfeiçoamento, a estética, em que, há a transmissão sistemática do archote de
luz conducente a um hipotético sonho de vitória final.
Recebemos
dos outros e fazê-lo intuitivamente – não sei – deixando aos outros a nossa
visão, o espírito das coisas, que perpassaram por nós.
Neste
caso, a Palavra e o Verbo espelha a singularidade de uma vivência. Simboliza um
percurso. Deixa-nos antever a continuação do seu inestimável contributo, mas,
está aqui o… “eu fiz”, num orgulho comedido e disfarçado como é timbre dos
grandes homens, quando descobrem que, na cultura em particular, o “trabalho e a
luta continuam”.
A
vida é feita de projetos. Nela imbricam os desafios de vária índole.
Aceitamo-los ou adiamo-los. A escolha missionária deste percurso é sempre
nossa. E por vezes, ficamos com a sensação de missão cumprida.
As
datas, os projetos colocados de pé (não só na letra, palavra ou verbo), mas
materializados em prol do desenvolvimento do país, ou do encontro ou reencontro
consigo mesmo.
Há
um ror de “azáguas” e caminhos a serem descobertos, nestas 652 páginas.
O
autor optou por construir um edifício de três andares, mais um terraço com
vista para as ilhas. Os seus percursos variados assim o exigiam.
A
Palavra e o Verbo, aparece numa primeira instância numa linha de reflexões
culturais. Na segunda etapa aproveita-se de esmeradas apresentações feitas em
plenários, prefácios e dados biográficos. Fecha com chave especial (ouro ou
platina) com as intervenções na qualidade de Titular da Pasta da Cultura.
No
pensamento alinhavado de Manuel Veiga nesta obra “os textos testemunham a
oficina e a lavoura das minhas palavras e do meu verbo, em algumas “azáguas” do
meu quotidiano”.
Com
este laborioso trabalho de pesquisa, reflexão e compilação, Manuel Veiga
inaugura mais uma fase da sua vida cultural e académica.
As
histórias de vida têm e devem ser contadas. Nelas habitam verdadeiros tesouros
culturais e relacionais. Elas estão imbuídas de traços oníricos que nos impelem
numa espécie de movimento incessante de procura e ao mesmo tempo de transmissão
dos conhecimentos alcançados, observados, aferidos e consolidados em cada
estação das nossas vidas.
No
livro, o espaço dedicado à Cultura e Desenvolvimento de Cabo Verde, prendeu a
nossa atenção, pelo estilo, pela sagacidade e perspicácia na sua aturada
análise. Um trabalho de fôlego. Uma perspetiva angular, se me permitem
“humanamente científica”, em que se entrelaçam o olhar de quem já atravessou o
mundo, com um prisma técnico de quem augura legar um contributo ao
Desenvolvimento de Cabo Verde – que passa indubitavelmente pela sua cultura nas
suas várias vertentes – numa espécie de espírito missionário de quem tem que
ter um filho, plantar uma árvore e escrever um livro – tudo isso, passível de
ser pluralizado.
Aqui,
a problemática da Cultura e do Desenvolvimento alinham pelo mesmo diapasão.
Simbionizam-se salutarmente. A visão é tão sóbria que nos conduz a uma reflexão
sobre as nossas atitudes e comportamentos, convocando o nosso interior de cada
um a analisar responsavelmente os vários processos de desenvolvimento, as entregas,
fugas ou adiamentos, ou como melhorar o espelho do que queremos, sonhamos,
esboçamos, planificamos e ou que precisamos corrigir no rumo de algumas navegações.
Neste
ínterim, e no seu eterno afã visando a cultura, não poderia faltar um ponto que
referisse e reverenciasse – merece aplausos – uma certa emergência da Cultura
Caboverdiana. Por entre dados históricos, poesia, libertação e construção de
uma estrada para estes dez grãozinhos de terra, nasce o que ele desenha como
uma nova ordem em que se intercala, por vezes numa simbiose perfeita, o
crioulo, a música, a literatura, as tradições orais, a religião, a expressão
plástica, as festas populares, símbolos e valores tradicionais, numa análise em
que se entrecruzam forças, fraquezas, ameaças, oportunidades, perspetivas,
redireccionamentos, esperanças, fechando sub-repticiamente com o orgulho de se
ser cabo-verdiano.
Minhas
senhoras e meus senhores,
Quem
fez a travessia do séc. XX para o séc. XXI; quem viu Cabo Verde hastear a
bandeira da independência; quem seguiu na clandestinidade a luta de libertação;
quem como ele que da juventude até esta etapa da maturidade teve a oportunidade
de degustar esse honroso passeio pela história, não poderia esquecer-se num
livro deste quilate, da independência nacional, mais precisamente dos seus 30
anos. Manuel Veiga estava na Cultura, aliás, como sempre esteve e estará. E
traça uma visão prospetiva da Cultura, apresentando os desafios e as suas
visões do futuro.
Ora,
da Cultura no Estado da Nação, à mobilidade e identidade cultural, até chegar a
um novo sentir numa nova aurora, e passando pela economia da cultura, tudo se
junta para que este livro seja uma referência no futuro no que tange à Cultura.
Outros
temas interessantes que poderão aqui ser encontrados, são: do português ao
crioulo ou o processo de autonomização linguística conseguida; poética e ética
– que fronteiras; Cabo Verde - da diglossia à construção do bilinguismo. Nestes
momentos encontramos com várias incursões, não fosse ele uma das principais
referências como estudioso do crioulo de Cabo Verde.
Os
testemunhos são uma constante. Aliás, uma vida sem testemunhos, pontos de
vista, ou reflexões sobre os próprios percursos, não é uma passagem digna desse
nome. A luta com que diariamente enfrentamos os obstáculos, e degladiamo-nos
connosco mesmos numa procura de saídas ou numa de vitórias leva-nos a atingir,
por vezes, o estado de consciência de que os testemunhos são importantes, tanto
para darmos conta do que praticamos em termos de coisa pública, como no domínio
da experiência junto dos outros mais novos, com reflexões meditativas
provocadas por alguma sabedoria atribuída pelo suor do tempo.
A
segunda parte do livro é bafejada com um igual e extenso leque de profundas
apresentações públicas de obras, de prefácios diversos e de dados biográficos
de autores caob-verdianos, com uma argúcia e pertinências culturais e de cidadania
impressionantes pelo seu aturado conteúdo analítico.
A
terceira e última fase desta soberba obra encerra com uma compilação de algumas
das suas intervenções na qualidade de titular da Pasta da Cultura.
Minhas
senhoras e meus senhores
É
esta a esteira dos nossos homens. Homens que lavram do dealbar das manhãs à
boca da noite a intrinsecalidade dos momentos por construir, por solidificar,
por ressignificar, por tornar Cabo Verde uma terra de seres cultores da
verdadeira “cultura” nas várias aceções da palavra.
A
palavra e o verbo são construções. O processo iniciático é no interior de cada
um de nós.
Mas,
palavra de honra, que o verbo aqui colocado no presente, bastas vezes no
condicional, levou-me a matutar se terei tido o engenho suficiente para colocar
as minhas verborreias no indicativo desta apresentação. O futuro o dirá.
Confesso
que no início ao levantar a caneta em riste, numa espécie de ameaça ao papel
deitado preguiçosamente em cima da pequena secretária, hesitei com que palavra
ou verbo haveria de iniciar esta prosa escrita numa linguagem que fosse
escorreita e que fizesse jus à dimensão cultural e à grandeza desta obra. Os
pecados são confessados somente no fim. E no fim, só há uma certeza: obrigado
Manuel Veiga.
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