quinta-feira, 9 de fevereiro de 2023

 

PROPOTA DE UMA ESTRATÉGIA EFICIENTE E EFICAZ

PARA A PEDAGOGIA DA LÍNGUA MATERNA CABOVERDIANA[1] 

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Introdução

 

A abordagem do tema, em título, leva-me a debruçar sobre os seguintes aspetos:

 

§  A atualização do crioulo caboverdiano em variantes e variedades, a partir das matrizes africana e lusitana: uma riqueza e um património a preservar;

§  Como ensinar, com eficiência e eficácia, numa perspetiva de padronização sustentável que integra e dialoga, sem sobrecarregar, nem complexificar desnecessariamente a pedagogia; sem encarecer demasiadamente a economia doméstica, nem discriminar as classes menos favorecidas;

§  Uma pedagogia que encoraja o conhecimento dos dois modelos de escrita que fizeram já história em Cabo Verde: o de base etimológica e o de base fonológica;

§  Uma pedagogia que dê conta do bilinguismo caboverdiano, das interferências existentes, da especificidade mantida e da importância cultural, económica e social desse mesmo bilinguismo;

§  Conclusão;

§  Referências Bibliográficas.

 

1. Atualização do Crioulo Caboverdiano (CCV) em Variantes e Variedades,

a partir de Matrizes Lusitana e Africana

 

O CCVé resultado do encontro, já desde o longínquo século XV, entre a língua portuguesa e algumas outras línguas da Costa Ocidental africana, particularmente o mandinga e o wolof (Veiga, 2019). A influência do português se verifica particularmente no léxico, enquanto a das línguas africanas particularmente na morfologia e sintaxe.

Primeiramente, formou-se um pidgin, uma estrutura linguística simples e pouco complexa, a qual foi complexificando-se até alcançar o estatuto de crioulo (língua mista, estruturalmente mais complexificada), já desde o dealbar do século XVII.

Sabe-se que que o crioulo nasceu nas ilhas de Santiago e no Fogo, do relacionamento estabelecido desde o século XV, entre o colono branco e os escravos negros. No século XVII, com o povoamento de algumas ilhas do Norte, nomeadamente Boavista, S. Nicolau e Santo Antão, começaram a surgir variantes do crioulo com o relacionamento sobretudo de mestiços (escravizados) e colonos brancos.

Com o povoamento de S. Vicente, desde o final do século XVIII, surge uma nova variante a partir das expressões linguísticas de Santiago, Fogo e das ilhas do Norte povoadas no século XVII (Boavista, S. Nicolau e Santo Antão). A construção do Porto Grande de S. Vicente em 1850 provocou uma grande mobilidade social ao Norte e, do mosaico de variantes linguísticas em contacto, surgiu uma variedade que não é totalmente igual, mas também não é completamente indiferente às variantes matrizes, razão por que em todo o Norte de Cabo Verde a expressão de S Vicente é satisfatoriamente entendida, utilizada e apreciada, o que faz dela não apenas uma variante local, mas uma variedade regional.

Do mesmo modo, a expressão de Santiago, devido à frequente mobilidade com as outras ilhas do Sul (Fogo, Brava e Maio), sofreu alguma influência dessas outras ilhas que a aceitam sem nenhuma resistência, podendo utilizá-la, e mesmo defendê-la. Esta a razão por que a expressão de Santiago pode ser, ela também, considerada como uma variedade regional, ao Sul.

Tendo em conta o acima exposto, fica claro que em Cabo Verde há sete variantes locais e duas variedades regionais. Esta situação leva-me a propor uma estratégia de desenvolvimento linguístico que, sem subestimar as sete variantes, toma por basa as duas variedades: ao Norte, a expressão de S. Vicente; e ao Sul, a de Santiago.

No ponto dois da minha exposição apresentarei uma proposta de pedagogia com base nas duas variedades, em permanente diálogo com as outras variantes, e na busca incessante de uma padronização linguística que integra, dialoga e unifica.

Contrariamente ao que alguns pensam, a existência de variantes e de variedades é para nós antes uma riqueza do que uma dor de cabeças. Efetivamente, elas não só fazem com que tenhamos uma expressão linguística rica e diversificada, como também levam a nossa crioulidade a perpetuar a mestiçagem de cultura, de pensamento e de expressão artística.

Creio que todos concordarão comigo se disser que, em parte, é devido à morfologia e à sintaxe do nosso crioulo (em constante mestiçagem) que a Cidade Velha, como a Morna, ascenderam ao estatuto de Património da Humanidade. Com efeito, a gramática do crioulo confere às nossas ilhas, à nossa cultura (tradicional, musical, literária e patrimonial) uma especificidade que só se encontra em Cabo Verde.

E se o crioulo caboverdiano é a nossa marca identitária, das mais fortes e representativas, urge estudá-lo e valorizá-lo, não apenas como uma opção, mas como um dever cívico, uma obrigação social e cultural.  Há que convir comigo que quem não sabe escrever o crioulo, que quem desconhece o seu funcionamento gramatical e lexical é um analfabeto da crioulidade, é um analfabeto de uma das marcas identitárias mais representativas do nosso estar no mundo.

Se assim é, há que saudar a decisão governamental de introduzir o ensino do crioulo no décimo ano de escolaridade. Apenas é de se estranhar que esse ensino seja opcional, o que contraria o dispositivo Constitucional (artigo 9º.2) que ordena a construção da paridade entre as duas línguas da República (a portuguesa e a caboverdiana). Ora, sendo o ensino do português obrigatório, o do caboverdiano, por imperativo Constitucional, deveria sê-lo também[2].

Tendo em conta a escassez, neste momento, de docentes capacitados, e de material didático, o melhor caminho seria a criação de dois ou de três polos de ensino piloto, o que levaria o sistema de ensino equacionar os problemas existentes e traçar a estratégia para os debelar, e só depois globalizar esse ensino.

Não tendo sido este o caminho escolhido, só nos restar augurar sucesso ao ensino opcional adotado no décimo ano de escolaridade e a partir do ano escolar de 2022.

 

2. Como ensinar com eficiência e eficácia, numa perspetiva de padronização sustentável que integra e dialoga, sem sobrecarregar, nem complexificar desnecessariamente a pedagogia; sem encarecer, demasiadamente, a economia doméstica, nem discriminar as classes menos favorecidas

 

Culturalmente, não é aconselhável a marginalização do ensino de qualquer das variantes do CCV.

Pedagogicamente, não é sustentável, nem praticável, o ensino, numa mesma sala de aula e na mesma sessão pedagógica, de todas as variantes do CCV.

Face a tudo isto, qual poderá ser a pedagogia que, de forma sustentável, eficiente e eficaz, seja capaz de promover o ensino da língua materna caboverdiana, de forma pragmática, com base numa estratégia integradora e dialogante, do estilo da composição “doce guerra”, do vate salense (Antero Simas), sem discriminar nenhuma das variantes do CCV e com resultados satisfatórios, em termos de defesa e valorização de um dos elementos mais significativos da identidade cultural caboverdiana: a língua crioula?

Na análise que segue, vou tentar dar resposta à essa interrogação.

Partindo do princípio que todas as variantes são importantes; tendo presente a existência de duas variedades regionais do CCV, a do Norte, com o seu epicentro em S. Vicente; a do Sul, com o seu epicentro em Santiago, a pedagogia mais consentânea seria aquela que toma por base as duas variedades (uma em cada zona geográfica respetiva), estabelecendo a ponte, em análise comparativa e contrativa, em cada sala de aula, com a variante local da respetiva sala de aula.

Isto significa que em todo o Norte de Cabo Verde, a variedade de S. Vicente é tomada como referência básica. O professor, em cada uma das ilhas do Norte, é aconselhado a ensinar a variedade de S. Vicente e a realizar o estudo comparativo e contrastivo com a respetiva variante local.

Ao Sul de Cabo Verde a estratégia é idêntica: parte-se da variedade de Santigo e, em cada sala de aula, faz-se a análise comparativa e contrastiva com a respetiva variante local.

Por exemplo, se as duas salas de aula se situam na Brava e na Boavista, no primeiro caso o professor tem de ser capaz de fazer a análise comparativa e contrastiva entre a estrutura gramatical da variedade de Santiago e a da Brava; no segundo caso, a análise comparativa e contrastiva deve ser feita entre a variedade de S. Vicente e a variante da Boavista.

Porém, se as duas salas de aula se sitarem em S. Vicente em Santiago, a análise comparativa e contrastiva, na primeira salsa de aula, seria entre S. Vicente e Santiago, e na segunda sala de aula, entre Santago e S. Vicente.

A economia dessa pedagogia reside no facto do Ministério da Educação poder investir apenas no material didático das duas variedades. O estudo comparativo e a análise contrastiva serão da responsabilidade do professor e dos educandos.

 

Naturalmente, a estratégia proposta vai favorecer a valorização e a padronização escolar tanto ao Norte como ao Sul.

Terá que haver uma outra valorização e uma outra padronização, sendo estas de conteúdo social e cultural. O uso das variantes e das variedades através da mobilidade humana (turismo interno, negócios, comunicação social, produção artística musical e literária) vai favorecer tanto a padronização escolar como a social.

Isto significa que quanto mais uma diterminada variante ou variedade forem usadas na Rádio, na Televisão, nas redes sociais, na produção artístico-literária; quanto maior for o uso de uma variedade ou de uma determinada variante pelas “rabidantes” ou pelos homens e mulheres de negócios, a padronização social será reforçada e a padronização escolar será desenvolvida e o surgimento do crioulo-padrão nacional acontece.

Exemplificando: as expressões “diazá, benita pa frónta, feiu pa xuxú…” têm origem na variedade de S. Vicente. Porém, devido à mobilidade social, não causa estranheza que em Santiago se diga, hoje: “diazá N ka odja-u; Kel minina la é bunita pa frónta; mar sta brabu pa xuxú”.

Mais: sabe-se que o termo “gerrotxóde” pertence à variante de Santo Antão. Entretanto, não causa grande estranheza se, em Santigo, alguém disser: “el mada-m un abrasu garotxadu” em vez de “el manda-m un abrasu pertadu”.

O “gerrotxóde” pode ainda ser traduzido por “rotxadu”: “gerrotxóde na kenpanher/ rotxadu na kunpanheru”.

O termo “mantxuadu” tem origem na variante do Fogo. Porém, pode-se ouvir um santiaguês a dizer “mantxuadu na kunpanheru”, em vez de “ rotxadu na kunpanheru, karapatidu na kunpanheru, lapidu na kunpanheru, lanbuxadu na kunpanheru”.

Concluindo este ponto, constata-se que a “padronização escolar” é da responsabilidade do sistema escolar, enquanto a “padronização social” é da responsabilidade da sociedade. Quanto maior for o investimento em cada uma dessas modalidades, melhor será desenvolvida ou reforçada a padronização escolar e a social, da padronização nacional.

A longo prazo, como resultado da padronização escolar e da padronização social surgirá uma terceira variedade, a que podemos designar Variedade Norte/Sul, com epicentros em S. Vicente e em Santiago. Pode-se perguntar quando é que isto vai acontecer. Não saberei responder. Só sei que vai levar muito tempo e que é a melhor estratégia para um desenvolvimento linguístico harmonioso, integral e unificador. Com esta etapa concluída, Cabo Verde passaria a contar com uma única variedade, a Variedade Norte/Sul. Naturalmente, esta última será uma Variedade Nacional, aquela onde melhor se espelha a alma caboverdiana, com a representatividade do todo nacional.

Os custos: para a valorização e padronização escolar há que ter professores, há que ter salas de aula equipadas, há que ter algum material didático. Ora, para a variedade de S. Vicente, recomenda-se as obras Vangêle Conód d’Nos Móda, de Sergio Frusoni e Biblia na Prugrese de Tradusãu pa Linga Kabeverdiane-Sonsente, de “Asosiasãu Kabeverdiane pa Tradusãu de Biblia”.

Para a variedade de Santiago, recomenda-se Lukas – Notísias Sábi di Jizus, de “Kumison pa Traduson di Biblia”; os romances Odju d’Agu e Jornada Sen Ratornu, de Manuel Veiga; Katikati pa Gran Bira Spiga e O Caboverdiano em 45 Lições, do mesmo autor; Noti, de Kaoberdiano Dambará.

Complementarmente, o professor, eventualmente, pode utilizar trabalhos de tradição oral, levados a cabo pela equipa de T.V. da Silva e  obras em crioulo desse mesmo autor; trabalhos em crioulo de Eugénio Tavares, Ovídio Martins, Anu Nobu, Corsino Fortes, Manuel d’Novas, Antero Simas; de Donaldo Macedo, de José Luis Tavares, de Princesito, de Dany Spínola, de José-Luis Hopffer Almada, de Mana Guta, de N’Gossi Nelly, de Manuel Gonçalves, de Nicola Quint; Dicionário de Jürgen Lang, de Napoleão Fernandes e de Manuel Veiga; trabalhos outros em crioulo de compositores, de poetas e ficcionistas caboverdianos ou estrangeiros; Diklarason Universal di Direitus Umanu, de Lurdes Lima e revisão de Adelaide Monteiro; livros em crioulo das Testemunhas de Jeová; Compilação de Stórias di Nhu Lobu ku Xibinhu, de associação IMAJEM; a coletânea Karlus Magnu, de Humberto Lima; a coletânea musical  Hora di Bai, de P. José Maria de Sousa; As Stórias Ilustradu di Nobu Testamentu pa Jóvens  e pa Pais, Na Língua Kabuverdianu di Santiagu, da “Komison pa Traduson di Bíblia”.

 

3. Uma pedagogia que encoraja o conhecimento dos dois modelos de alfabeto que fizeram já história em Cabo Verde: o de base etimológica e o de base fonológica

Da pedagogia do CCV devem constar tanto o modelo de base etimológica como o de base fonológica. Ambos os modelos entraram já na história da escrita em Cabo Verde. O primeiro modelo foi praticado desde todo o sempre pelos clássicos da nossa literatura, como Eugénio Tavares, Pedro Cardoso, Napoleão Fernandes, entre outros. Já na época claridosa, encontrou eco junto de escritores como Baltasar Lopes, Sérgio Frusoni, Teixeira de Sousa. Mais tarde, continuou sendo utilizado por vários outros escritores como Kaoberdiano Dambará, Ovídio Martins, Corsino Fortes etc.

O segundo modelo, o de base fonológica, surgiu em Cabo Verde a partir de 1979 num Colóquio Linguístico sobre a Problemática do Crioulo Caboverdiano, realizado em Mindelo pela então Direção-Geral da Cultura.

Manuel Veiga e Tomé Varela da Silva foram, entre outros, os principais impulsionadores desse modelo de alfabeto, o primeiro com o estudo gramatical Diskrison Strutural di Língua Kabuverdianu, com o romance Odju d’Agu e várias outras obras. O segundo com várias obras de tradição oral caboverdiana, nomeadamente a coletânea Na Bóka Noti, em vários volumes.

Este segundo modelo somente viria a ser oficialmente aprovado em 1998 por proposta de uma Comissão de Padronização criada em 1994. A partir dessa aprovação, esse modelo encontrou eco junto de todos os estudos académicos realizados no país e no exterior, sobre o crioulo caboverdiano. Estudiosos e escritores vários passaram a utilizar esse modelo de escrita, tendo em conta a sua funcionalidade, economia e sistematicidade.

 

O Que Carateriza os dois modelos de alfabeto acima referidos:

Modelo de Base Etimológica – Orientando-se pelo étimo e pela história das palavras, é pouco económico e pouco sistemático. Com efeito, um mesmo som se atualiza de forma diferente, conforme o étimo da palavra onde está inserido. Por exemplo, o fonema /s/ pode atualizar de várias formas: s, ss, ç, c (sábi, massa, poço, cimento). No português pode ainda atualizar-se em x (trouxe).

Ora, tratando-se do mesmo fonema, a atualização em quatro grafemas, não sendo nada económico, representa um peso linguístico desnecessário. O mesmo se pode dizer com os fonemas /z, k, j, x/.

O /z/ pode atualizar-se em “z, s, x” (cozinha, casamento, exame).

O /k/ pode atualizar-se em “k, c, q” (km2, casa, quintal).

O /j/ pode atualizar-se em “j, g”(jaro, gesso).

O /x/ é representado por “x”e por “ch” (xadrez, chato).

Podia-se continuar a apresentar outros casos de falta de economia do modelo de alfabeto de base etimológica. Porém, penso que os exemplos acima apresentados ilustram essa falta de economia.

 

Modelo de Base Fonológica

Neste modelo, sistematicamente, para cada fonema existe um único grafema, o que confere à escrita uma economia assinalável, não havendo a necessidade de decorar a forma gráfica das palavras, por exemplo “coser roupa e cozer comida”:

/z/ = “z” (kuzinha, kazamentu, izami);

/k/ = “k” (km2, kasa, kintal).

/j/ = “j” (jaru, jésu).

/x/ = “x” (xadres, xatu).

 

Ora, é essa economia e sistematicidade que granjearam simpatia para com este modelo de alfabeto junto de académicos, escritores e utilizadores vários.

O modelo de base etimológica continua a ser defendido pelos que tem uma grande simpatia para com a história da língua caboverdiana. Porém, se tomarmos em conta o parque editorial em Cabo Verde, neste momento, os estudos académicos levados a cabo após a aprovação, em 1998, do modelo fonológico, a escrita nas redes sociais, contata-se que a escrita de base fonológica ultrapassa, de longe, a prática etimológica.

Considerando, no entanto, que os dois modelos fazem parte da história da escrita do crioulo caboverdiano e contam com defensores de ambos os lados, o sistema de ensino não pode ignorar esse facto.

Assim sendo, é desejável que na sala de aula o professor leve os seus alunos a assimilarem o funcionamento dos dois modelos, deixando a cada um a liberdade de adotar, em atividades de cunho pessoal, o modelo que achar mais conveniente.

Para as atividades académicas, seria desejável o modelo mais económico e sistemático, o qual foi instituído, desde 2009, como alfabeto caboverdiano (Decreto-Lei 8/2009, de 16 de Março). Porém, se o aluno fizer questão de utilizar o modelo de base etimológica, convém que o professor seja tolerante.

 

4. Uma pedagogia que dê conta do bilinguismo caboverdiano, das interferências existentes e da especificidade mantida, como da importância cultural, económica e social desse mesmo bilinguismo

Num livro da minha autoria – A Construção do Bilinguismo – e que, num concurso promovido em 2000 pelo Fundo Bibliográfico da Língua Portuguesa, ganhou o primeiro lugar, escrevi o seguinte (p.5):

Ninguém pode ignorar que tanto a língua portuguesa como a caboverdiana, embora de formas diferentes, corporizam a nossa história, enformam a nossa cultura e moldam o nosso modo de estar no mundo. A afirmação e a valorização dessas duas línguas, mais do que um dever cívico, é uma exigência cultural e uma necessidade ambiental”.

Também no artigo 9.2 da Constituição da República se estabelece que o “Estado promove as condições para a oficialização da língua materna caboverdiana, em paridade com a língua portuguesa”, e em 9.3 determina: “Todos os cidadãos nacionais têm o dever de conhecer as línguas oficiais e o direito de usá-las”.

De igual modo, os artigos 7º i) e 79º.3 f) ordenam que se deve “Promover a defesa, a valorização e o desenvolvimento da língua materna caboverdiana e incentivar o seu uso na comunicação escrita”.

Mais: O Decreto-Legislativo 2/2010, de 7 de Maio, sobre Bases do Sistema Educativo, determina: “O Sistema educativo deve valorizar a língua materna, como manifestação privilegiada da cultura”.

Tendo em conta o acima exposto, há que convir que a construção do bilinguismo, em Cabo Verde se nos impõe não apenas como um dever e um direito constitucional, mas também  como uma exigência constitucional e cultural, como  uma necessidade ambiental. Assim sendo, a pedagogia de ensino de qualquer uma dessas duas línguas tem que ser algo de complementar e nunca de concorrência desleal ou destrutiva.

Para Cabo Verde, é uma bênção a existência dessas duas línguas, o que permite aos caboverdianos uma maior interação e interculturalidade no espaço da CPLP, num laboratório humano com aproximadamente 270 milhões de locutores, sendo nove os países membros (Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Guiné Equatorial, Moçambique, Portugal, S. Tomé e Príncipe e Timor Leste).

Não há dúvida que é invejável esse mercado linguístico, cultural, económico, social e político.

Daí que a política de bilinguismo, em Cabo Verde, seja uma exigência ambiental e uma necessidade cultural, económica, política e social.

Assim sendo, o aprendiz da língua caboverdiana deve poder relacionar-se, harmoniosa e interessadamente, com a língua portuguesa. O estudo do crioulo caboverdiano nunca deverá ser em oposição ao da língua portuguesa, mas sempre em complementaridade com essa outra língua oficial da República. Isto significa que a metodologia de ensino do português, que conta com uma experiência de vários séculos, deve, sem tentativa glotofagista, inspirar, positivamente, a metodologia de ensino do crioulo caboverdiano.

Tendo em conta, porém, que as duas línguas, do ponto de vista formal, estrutural e semântico se organizam de modo diferente, o professor do CCV deve poder levar os seus alunos a descobrirem as diferenças, as particularidades e especificidades matriciais existentes.

Levando ainda em consideração que uma das matrizes do CCV é o português, o professor deverá estar capacitado para levar os alunos a descobrir as possíveis interferências estruturais, tanto do ponto de vista gramatical como semântico. Há que evitar a influência elitista, glotofagista ou demasiadamente arcaizante, de uma língua em relação a outra.

A análise comparativa e contrastiva entre os dois modelos, sob o signo da ciência, da verdade e tipicidade linguísticas poderão ser de grande utilidade. Isto só será possível se o professor do CCV possuir conhecimento gramatical e lexical das duas línguas.

 

5. Em Jeito de Conclusão

Sendo o CCV um dos elementos mais significativos da nossa identidade; constituindo a defesa e valorização do CCV um dever cívico e uma exigência cultural; determinando o artigo 9º.2 da Constituição que “o Estado deve criar as condições para a oficialização da língua materna caboverdiana em paridade com a portuguesa”; considerando o estipulado no artigo 79º.3 f) que ordena a valorização da língua caboverdiana e o incentivo à sua utilização na escrita;

tendo em conta o exposto, o ensino do CCV deixa de ser uma simples opção para passar a ser um dever e uma obrigação.

Ora, possuindo o CCV 7 variantes locais consolidadas e duas variedades regionais emergentes; havendo da parte dos cidadãos um forte apego à respetiva variante e respeito quanto às duas variedades (Norte e Sul) existentes, impõe-se que seja traçada uma pedagogia de ensino sustentável e inclusivo.

Na minha perspetiva, essa pedagogia deveria ter as seguintes características:

a)      Ao Norte, tendo em conta que a variedade existente, com epicentro em S. Vicente, é um constructo a partir das variantes do Norte, em cada sala de aula se procederá à análise comparativa e contrastiva entre a variante local e a variedade Norte. Em S. Vicente, epicentro dessa variedade, haverá uma pedagogia centrada na análise comparativa e contrastiva ente a variedade/Norte e a variedade/Sul (ou seja entre a variedade de S. Vicente e a de Santiago).

b)      Ao Sul, considerando que as variantes das ilhas todas foram e continuam sendo fontes de enriquecimento da variedade cujo epicentro é Santiago, a pedagogia em cada sala de aula deveria proceder à análise comparativa e contrastiva entre a variante local e a variedade/Sul. A nível de Saiago a pedagogia seria centrada na análise comparativa e contrastiva entre a variedade/Sul e a variedade/Norte (ou seja, entre a variedade de Santiago e a de S.Vicente).

c)      Havendo dois modelos de escrita, com legitimidade histórica e social, o que é baseado no alfabeto etimológico, e o que é baseado no alfabeto fonológico, a pedagogia devia dar conta destes dois modelos. Sendo o modelo fonológico mais económico e mais sistemático, o mesmo deveria ser encorajado; deve-se, no entanto, tolerar a prática do modelo etimológico, por parte dos alunos que fizerem questão dessa prática.

d)      Tendo presente que a construção do bilinguismo e da paridade entre a língua cabo-verdiana e o português é uma necessidade ambiental e um dever constitucional, o professor do CCV deve levar os seus educandos a descobrirem a vantagem do bilinguismo funcional, em Cabo Verde.

Uma pedagogia baseada nesses quatro pontos leva à valorização de todas as variantes e variedades do CCV, com uma estratégia sustentável e inclusiva em que em cada sala de aula apenas se estuda a respetiva variante local e variedade regional. Com essa pedagogia, ainda, fica valorizada a história da escrita do CCV, a defesa e valorização do bilinguismo caboverdiano e padronização, paulatinamente, acontecerá.

 

6. Referência Bibliográfica

 

Dambará, Kaoberdiano (1964). Noti, Edição PAIGC, Paris.

Fernandes, Napoleão (sd). Léxico do Dialecto Crioulo de Cabo Verde, Editado pela filha Ivone Fernandes Ramos, Gráfica do Mindelo.

Frusoni, Sérgio (1979). Vangêle Contód d’Nos Móda,Edição, Terra Nova, S. Filipe, Fogo.

Lang, Jürgen (2002). Dicionário do Crioulo da Ilha de Santiago, Gunter Narr Verlag Tübingen, Alemanha.

Veiga, Manuel (2004). A Construção do Bilinguismo, Instituto da Biblioteca Naciona e do Livro, Praia.

Idem (2012). Dicionário Caboverdiano-Português, Instituto da Biblioteca Nacional e do Livro, Praia.

Idem (2016). A Palavra e o Verbo, Acácia Editora, Praia.

Idem (2019). Odju d’Agu, 2ª Ed, Livraria Pedro Cardoso, Praia.

Idem (2019). Formação do Crioulo – Matrizes Originária, Acácia Editora, Praia.

Idem (2021). O Caboverdiano em 45 Lições, Acácia Editora, Praia.

Idem (2022). Katikati pa Gran Bira Spiga, Acácia Editora, Praia.

Idem (2022). Jornada Sen Ratornu, Odjud’aguBlogspot.com.

Kumison Kabuverdianu pa Traduson di Bíblia (2004). Lukas, Notísias Sábi di Jizus, Praia.

Idem (2009). Biblia – Na Prugrésu di Traduson pa Língua Kabuverdianu, Praia.

Idem (2013). Biblia na Prugrese de Tradusãu pa Linga Kabeverdiane – Sonsente.

 

 

Manuel Veiga

Fevereiro de 2023



[1] Ver as razões por que escrevo “caboverdiano” sem hífen, em VEIGA Manuel, 2016.   A Palavra e o Verbo, Acácia Editora, p. 7. Devo ainda informar que o presente trabalho foi publicado pela primeira vez, em Novembro de 2022, na revista «Direito, Política e Sociedade» da Uni-Mindelo.

[2] Note-se que um estudo do Afrobarómetro, realizado em 2022, apurou que « 78% dos caboverdianos é favorável ao uso do crioulo como meio oficial de instrução; 78% apoia o crioulo como disciplina obrigatóra em todas as escolas; 64% concorda com a sua elevação à língua oficial como o português».

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