quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Entrevista no jornal A Nação

Manuel Veiga alerta: a escrita do “crioulo precisa de sair da academia para a sociedade”
A luta de Manuel Veiga pela paridade do crioulo com a Língua Portuguesa não é nova, mas ganhou novos contornos ao assumir a coordenação do mestrado em Crioulística e Língua Cabo-verdiana, da Universidade de Cabo Verde (Uni-CV). O desafio serviu para potenciar o conhecimento do crioulo no país, mas o linguista alerta que urge aprofundar a metodologia de ensino e os aspectos gramaticais, “para que o crioulo saia da academia para a sociedade”.
Em breve, 15 alunos do mestrado em Crioulística e Língua Cabo-verdiana deverão apresentar as suas dissertações, o que representa o culminar do curso, iniciado em Setembro de 2010. Segundo Manuel Veiga, coordenador desse mestrado, se por um lado, as teses darão um contributo importante para potenciar o conhecimento da língua cabo-verdiana no país, por outro, esses alunos estarão capacitados para ensinar o crioulo cientificamente, falado e escrito.

“Contam-se nos dedos de uma mão os professores devidamente capacitados para ensinar o crioulo em Cabo Verde”, diz Veiga que espera que alguns destes mestrandos possam seguir a via ensino, mas também a investigação.
INVESTIGAR PARA O ENSINO
É que se faltam professores cientificamente habilitados, também tem faltado investigação sobre a Língua Cabo-verdiana. “Estamos num país em que as pessoas falam a Língua Cabo-verdiana, mas não conhecem essa língua de forma escrita. Não conhecem as normas, nem as regras de como escrever”, alerta.
Por isso, este professor universitário, linguista e romancista (autor do primeiro romance escrito em crioulo, o Oju d’agu) considera que é urgente desenvolver “estudos aprofundados sobre os aspectos diferentes da gramática, para serem socializados”.
Veiga justifica que os estudos feitos até então são, sobretudo, “académicos, de teses”, pouco adequados para o ensino, sendo crucial investigar “a metodologia e os materiais didácticos adequados de ensino” para que o crioulo possa transpor as barreiras da Academia e possa ser levado à sociedade.
As dissertações são variadas. De acordo com aquele docente, há uma tese sobre a variante do crioulo do Maio, “que nunca ninguém estudou”, outra sobre a variante do Fogo e uma sobre o crioulo de Santo Antão. A nossa fonte destaca também a dissertação de um aluno que vai analisar a influência do português nos discursos em crioulo de uma Sessão Legislativa da Assembleia Nacional, e outra que incide na tradução da obra literária “Os dois irmãos”, de Germano Almeida.
Teses essas que Veiga considera importantes para potenciar a língua cabo-verdiana, “no sentido de alcançar o tal estatuto previsto na Constituição de Cabo Verde, que é da paridade entre o português e o cabo-verdiano”.
INFLUÊNCIAS NO CRIOULO
Durante o mestrado, os alunos aprenderam tudo o que diz respeito ao funcionamento gramatical da língua, desde a fonética a morfologia e a sintaxe da língua, mas também sobre as evidências da influência das línguas africanas e do português no crioulo.
As influências do português são notórias. “Ao falarem o português, que na altura compreendiam mal, as pessoas procuravam suprir as palavras com o substrato da sua própria língua. Ou seja, por exemplo, no português temos as flexões verbais. Eu digo eu como, tu comes, eu comia, tu comias. Mas, no crioulo, não há flexões verbais e a unidade verbal não muda”, explica.
Em vez das flexões verbais, o crioulo tem “actualizadores” verbais, como acontece nas línguas africanas que serviram de base ao crioulo. São esses actualizadores que nos dizem se o verbo está no imperfeito, no conjuntivo, no futuro, etc. “Por exemplo, o actualizador Ta que marca nos verbos de acção o futuro próximo ou o habitual. O ‘ta’ dá-nos duas funções: ou diz que é um futuro, como “manhã N ta kumi”, mas pode dar também o que é habitual, que não tem tempo, como Bana ta canta. Ou seja, quer dizer que ele é cantor, intemporal. Mas também posso dizer N kumeba midju na anu pasadu, o “ba”, dá-nos o passado anterior”, explica o docente.
CONTRIBUTO DO WOLOF
Há também o actualizador “al”, que deixa transparecer influências portuguesas, mas também do Wolof. É o caso de “Dios al da-nu txuba. Eu não sei se vai dar chuva ou não, mas é um eventual que eu quero que se realize”, exemplifica.
O “al” tem assim dupla origem do português, “há-de” e do Wolof “ial”. Mas, tal como o crioulo, também o Wolof, o Mandinga, e o Manjaco têm actualizadores.
Até há bem pouco tempo, Manuel Veiga confessa que pensava que o Mandiga era a língua que mais tinha influenciado o crioulo, mas agora não. “Pelos trabalhos de Jürgen Lang que ando a ler, ele demonstra que o crioulo tem muita influência do Wolof. Por exemplo, “tene” e “tem” correspondem a “am” e “ame” em Wolof. “Ten” e o seu correspondente “am” significam ter no sentido permanente, “N ten dinheru”, enquanto “teni” e “ame”significa ter no sentido temporário, “N teni dinheru, oji”, explica.
Em português tal diferença não existe. Assim, ainda que se seja claro que o verbo Ter do crioulo descende do mesmo verbo português, fica claro também que a sua semântica nada tem a ver com o português, mas sim com o Wolof.

1 comentário:

  1. Corrijo: «.... mas não conhecem essa língua de forma escrita», por: «... mas não conhecem essa língua de forma explícita».

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