sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

INSULARIDADE FECUNDA NAS LETRAS CABOVERDIANAS


 

Arquitetada no tempo e no espaço das nossas ilhas atlânticas - que o poeta chamou «a pátria  do meio do mar» -, a crioulidade de que hoje nos orgulhamos é produto e é também projeto de uma insularidade que acabou sendo fecunda.

Com efeito, de um certo caos inicial, emergiu e emerge um logos social; de um determinado vazio cultural se processou uma ordem antropológica, cada vez mais rica e polifacética; das cinzas do anseio afogado e da angústia que tortura nasceu e nasce a esperança libertadora; do estatuto de dominado o nosso povo passou a ser senhor do seu próprio destino.

Nesse longo caminhar da nossa história tivemos por companheira inseparável uma insularidade madrasta que, forçada pelas circunstâncias, acabaria por compreender e aceitar o papel de uma mãe, exigente embora, mas sem deixar de, algumas vezes, ser carinhosa também. Caprichosa ou acolhedora, a insularidade das nossas ilhas manifesta-se de múltiplas maneiras: ela é geográfica como climática, histórica como política, antropológica como existencial.

Note-se que o universo da insularidade extravasa o sentimento de solidão e nostalgia, emergente do acanhado espaço geográfico das ilhas, para incorporar outros aspetos resultantes tanto da dialética entre a imensidade do mar arquipelágico e a pequenez das ilhas retalhadas que as ondas «afogam e afagam», como também entre a grandeza do sonho ilhéu que não se conforma com a medida da ilha e os problemas sociais, políticos e culturais de que a mesma tem sido vítima.

Aliás, a fome existencial do ilhéu ultrapassa os limites da estreita fronteira contornada pelo mar para se projetar na procura do mais além. O visível não lhe chega, ele tem a necessidade do imaginário. Este, por sua vez, não sacia totalmente a sua sede, ele se sente atraído pelo real existente ... que transborda a medida da ilha.

A insularidade islenha é, pois, o resultado da luta e dos desafios que nascem no próprio chão das ilhas; ela é também um projeto inacabado cujos traços ganham forma e conteúdo no confronto e reencontro da água com a terra, do homem com o mar.

Com efeito, a pequenez territorial, a falta de água e a exiguidade de recursos naturais estão na base de flagelos como a seca periódica, a fome, as epidemias (anteriormente sem solução) e o subdesenvolvimento, de uma maneira geral. Por outro lado, a imensidade do mar «que  ... dilata sonhos e ... sufoca desejos», com o seu « ... cântico /estranho / ... / que não se cala em nós!» [1].

Ora, se nós vencemos é porque, no dizer de Corsino Tolentino, “aprendemos a fintar o destino”. E nesse jogo resiliente, construímos e estamos construindo uma grande civilização que só não é ainda reconhecida como tal, e nem devidamente publicitada, devido a pequenez territorial e a escassez de recursos naturais. Porém, como metaforicamente dizia Corsino Fortes, no dia em que tomarmos consciência da nossa verdadeira força cultural e antropológica, consignadas na riqueza da nossa crioulidade, plural na expressão e unificada na compreensão, poderá ser possível “um golpe de Estado no Paraíso”.

Voltando insularidade tão peculiar das ilhas, vejamos como ela é magnificamente retratada pelo poeta Ovídio Martins quando, em plena época colonial escreve:

     «Árvores/ sem carne/ terra/ de Fogo/ Homens bloqueados / (espantosamente                      bloqueados) /  Irmãos no cataclismo periódico/ de falta de água / Já sem forças/ para          mandarem/ calar o mar» [2].

 Esse desespero do poeta, porém, um dia, no pós-independência, se transformará em esperança e, avançando «ilha a ilha», é o mesmo vate que vem segredar-nos que, afinal, «O nosso destino estamos a cumpri-lo: Dar a Cabo Verde outro mar, outro céu, outro homem». E  para exorcizar os flagelos da insularidade, tornando-a fecunda, com estrumes e fertilizantes trazidos de longe ou recriados no próprio chão do Arquipélago, um outro poeta da esperança, com toda a força do seu estro telúrico, proclama, como que jurando à Bandeira da Dignidade, já no céu das ilhas flutuando:

«Mesmo que o céu não chova / E o sol e a lua/ Sejam cordas partidas no violão da  ilha / ... Mesmo que o vento / Vergue / No eixo da terra e nos mastros da alma / Os   ossos e séculos de sangue e secura / Mesmo sendo! já não somos / Os flagelados do Vento leste»[3].

 Este poema faz lembrar o desabafo e a ousadia de um outro poeta da insularidade que, em plena dominação colonial - quando a Bandeira da Liberdade ainda estava à distância -, com convicção, proclamava:

         «Somos os flagelados do vento leste! / Morremos e ressuscitamos todos os anos /             para  desespero dos que nos impedem / a caminhada/ Teimosamente continuamos             de pé / num desafio aos deuses e aos homens / E as estiagens já não nos metem             medo / Porque descobrimos a origem das coisas»[4].


Este é o segredo da peculiaridade da nossa insularidade. Por mais dura que ela seja, o nosso povo aprendeu a driblá-la, a fintá-la, a fazê-la fecunda, mesmo quando a chuva tarda em chegar, ou as ondas do mar teimam em querer afogar, em vez de afagar.

 Vista desta maneira, a insularidade é geográfica e climática, é histórica e política, é onírica e criativa.

Com efeito, não podia ser fácil a formação de uma sociedade a partir de mundos e de universos tão diferentes como os que no recuado século XV, e no chão do arquipélago, se confrontaram. Esses condicionalismos histórico-culturais corporizaram uma nova forma de insularidade que é política, mas também é antropológica e é existencial. A este propósito, Pierre Rivas afirma que, para o ilhéu cabo-verdiano, 

«.... l'insularité géographique devient insularité existentielle, qu'on peut lire comme métaphore de la négritude, lieu d'exil loin de la patrie africaine, prison coloniale ou idiossyncrasie ilienne»[5]. 

É, pois, esse drama que levou o poeta do Ambiente a pintar a insularidade das ilhas com letras de sangue vertido de milhares de pedras feridas no deserto da história e com a seiva de algumas árvores apenas, fintando a seca e resistindo ao flagelo das lestadas. Esse sofrimento e essa resistência são reais e é deles que emerge a crioulidade insuflada de sonhos, calejada na convivência com os tentàculos do pelourinho, mas regorgitando a vida. A grandeza  do caboverdiano está na sua resiliência existencial, na pluralidade da sua expressão crioula e na unidade da sua compreensão antropológica. Ora, no dia em os caboverdianos se derem conta que o seu segredo está sobretudo nessa resiliência de, com sucesso, fintar o destino e na grandeza e especificidade da sua crioulidade, poderá com facilidade levar o mundo compreender que a sua contribuição para o humanismo é, deveras, significativa.

Devo dizer que o ilhéu existe, pois, porque resiste. E nisto consiste o seu drama, mas também o seu mérito.

E, resistindo sempre, o homem caboverdiano acabaria por dar-se conta de que, no ambiente das ilhas, tornava-se necessário e inevitável o «Conflito numa alma só / de [múltiplas] almas contrárias / buscando-se, amalgamando-se / numa secular fusão»[6].

 Relacionado com a criatividade literária, o tema da insularidade ganha expressão particularmente através do sentimento e desejo de evasão experimentados pelos «claridosos», como também pelo ideário programático de «fincar os pés no chão» que sintetiza o seu programa literário e o ideário telúrico que os acompanharia pela vida fora. Posteriormente, a literatura caboverdiana, embora reconhecendo o elevado sentido do «projeto claridoso», acabaria por alargar o horizonte com um novo ideário programático, o da ilha dentro da ilha, concebido pelo poeta Aguinaldo da Fonseca, abraçado por Amílcar Cabral, defendido e praticado pelos escritores da geração Certeza, pelos Movimentos literários subsequentes, pelos da geração da Independência e pós-Idependência.

A fecundidade da nossa insularidade literária e antropológica consubstancia-se em cinco metáforas, a saber: a do mar, a da saudade, a do crioulo, a do milho, a da morna.

Analisando essas metáforas, somos levados a admitir que,  se Cabo Verde é pequeno, territorialmente, constituído por dez grãozinhos de terra, ele é grande espiritual e culturalmente. Tem a dureza das suas rochas  e a suavidade do sonho criativo; tem  a grandeza do Mar imenso que o envolve e o carinho da mamãe-terra que o embala; tem a força e a riqueza da Crioulidade que o caraterizam e a sabedoria do Milho e da Morna que o alimentam; tem a tolerância de um Povo resiliente e  a plasticidade de uma Nação diasporizada.

  Tudo isto para concluir, dizendo:

 

·        O Mar é a metáfora da prisão e da liberdade; de dificuldades e possibilidades; da partida e do regresso, com mais milho, mais água, mais luz, mais ferramentas para lavrar a terra e empoderar a mente. Ele pode representar sonhos realizados, umas vezes; mas também sonhos abafados, outras vezes. Simboliza o lado virtual da nossa identidade.

 

·        O Crioulo é a metáfora da alma, da plasticidade, da singularidade, do diálogo crítico e do efeito assumido de globalização, no ser, no estar e no sentir do ilhéu caboverdiano. Simboliza a sua tolerância e o sentido de complementaridade presentes no seu humanismo.

 

·        O Milho é a metáfora do trabalho árduo, da resistência contínua, do sofrimento resiliente, da tenacidade permanente, da relação de esperança entre o céu, a terra e o mar. Simboliza, sobretudo, o lado material da nossa identidade.

 

·        A Morna é filha da cultura do Milho, da tragédia e epopeia do Mar. Ela é um ser crioulo, resultante de vários cruzamentos. É a metáfora da nossa cultura crioula e simboliza a nossa identidade espiritual.

 

·        A Nação Diasporizada é a fonte onde a nossa alma, em busca do conhecimento, sedenta do ter e do ser, inventa o reencontro onde o nosso humanismo globalizado se dessedenta, se fortalece e se revigora, recriando-se, criticamente, através da Saudade que faz da partida uma condição para o Regresso e um caminho para recriar uma nova autenticidade.

Assim sendo, podemos afirmar que O Mar e o Crioulo, o Milho,  a Morna e a Saudade constituem o DNA da nossa identidade, uma identidade sofrida, uma identidade lutadora, uma identidade amada, uma identidade construída e em construção, uma identidade formada, uma identidade em rede e no processo de uma nova formatação; uma identidade aberta, realizada e no processo de realização.

Tudo isso para significar que Cabo Verde, geograficamente, são apenas dez grãozinhos de terra, mas, cultural e antropologicamente, pode-se afirmar que é um arco-íris que abraça e acolhe o humanismo de todas as cores e latitudes, com sentido crítico, é certo, mas também com um sorriso aberto e uma capacidade resiliente de fintar sempre o destino que afoga ou sufoca. É por isso que "... Teimosamente continuamos de pé / Num desafio aos deuses e aos homesns / E as estiagens já não nos metem medo / Porque descorimos a origem das coisas", no dizer do poeta Ovídio Martins.

 

17 de Dezembro de 2020, Manuel Veiga

(Texto apresentado em Webnar e que participaram, também, a escritora Vera Duarte e a Professora Fátima Fernandes, tendo o evento contado com a organização da Uni-CV, ACL e o Instituto Canões)



[1] Jorge Barbosa, «O Mar», Poesia I, ICL, Praia, 1989, p. 72. Publicado pela 1ª vez em O Arquipélago, 1935.

[2] Ovídio Martins, «A Seca» Caminhada, 1962. Retomado em 100  Poemas, p. 15.

[3] Corsino Fortes, «A Lestada de Lés a Lés» Árvore & Tambor, ICL, Praia, 1986, p. 121.

[4] Idem 2, Ibidem

[5] Pierre Rivas, «Insularité et Déracinement dans la poesie cap-verdienne», in colóquio de Literaturas Africanas de Expressão Oficial Portuguesa, Paris, Fundação C.Gulbenkian, 1984.

[6] Idem 1, «Povo», Poesia I, ICL, Praia, 1989, p. 71. Publicado pela 1ª vez no livro Arquipélago, 1935.

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