domingo, 30 de agosto de 2020

ESCRITA DO CRIOULO

 


ALGUNS CASOS DE DISENSO, ASSISTEMATICIDADE  E  DISCÓRDIA

 

A padronização da escrita nunca é algo pontual. Ela leva tempo, às vezes mesmo, muito tempo. Nessa longa caminhada há que ter conta alguns parâmetros fundamentais como: a ciência linguística, os aspetos sociolinguísticos e pragmáticos pertinentes, a lei do menor esforço, a economia e a sistematicidade linguísticas.

Temos que reconhecer que, na jornada da escrita, fez-se já uma caminhada significativa: foi institucionalizado o alfabeto caboverdina em 2009, após onze anos de pratica experimental do ALUPEC. Foram definidas seis regras de acentuação (R1-R6). Surgiram estudos gramaticais, textos em prosa e poesia e até algumas experiências romanescas, bem como ensaios linguísticos e sociolinguísticos vários.

Se é certo que houve avanços consideráveis, é certo também que persistem casos de dissenso, assistematicidade e, mesmo, de discórdia, no que tange à prática da escrita. Esses casos se resumem a: existência de interfones frequentes; representação do “s” implosivo e do “e” mudo; utilização do “c”; a regra de acentuação 4d que estipula que certas classes gramaticais fechadas dispensam a representação de acento (ou diacrítico).

Vejamos cada um desse casos:

 

 1)   INTERFONES

Em crioulo há vários casos de interfones: b/v: (baka/vaka); s/z: (kasa/kaza); dj/lh: (midju/milhu); tx/x: (txuba/xuva).

É de se tolerar a existência de interfones pela simples razão que são fonemas, embora instáveis. A prática acabará por padronizar uma das representações. Até lá, não deve haver imposição de nenhuma. É tanto certo escrever “baka” como escrever “vaka”.

2)  REPRESENTAÇÃO DO  “S”  IMPLOSIVO

A pronúncia do “s” é explosiva quando o som é direcionado para fora (sabe, présa, sinu, sukri). A pronúncia do “s” é implosiva quando o som é direcionado para dentro (raspira, riska, pissina = pis-si-na).

Em “pis-si-na” há dissenso. Há quem pense que se deve continuar a escrever à maneira portuguesa (piscina). Note-se que a palavra “excelência”, em crioulo, se escreve “exselénsia”. Aqui a escrita não só está de acordo com o ALUPEC, mas também com a pragmática.

 

3)  A REPRESENTAÇÕ DO “e” MUDO

A mesma verifica-se sobretudo em Barlavento onde aceita-se escrever “respirá”, mas na expressão “dezê” há a preferência pela representação “dzê”, sem o “e” mudo. Orá, a eliminação do “e” mudo complica a representação de palavras como “sóbede” que, sem o “e” mudo ficaria “sóbd”, uma única sílaba. Além disso, por uma questão de sistema, não se pode aceitar nuns caos e não em outros. Ora, a pragmática linguística recomendaria o uso do “e” mudo. Aqui também deverá haver tolerância. O tempo dirá se convém representar ou não o “e” mudo.

 

3)  CASOS EM QUE SE PODE UTILIZAR O “C

No ALUPEC, normalmente, não se usa o “C”. Porém, a pragmática recomenda esse uso em nomes de pessoas (Cabral); nas siglas (RCV, CPLP, TACV); nos símbolos internacionais (etc., cm, CC); em marcas internacionais registadas (Vitamina C).

 

4) REGRA DE ACENTUAÇÃO 4d.

Há seis regras de acentuação (R1-R6). A regra mais complexa é a que estipula a R4d. Segundo essa regra, as palavra agudas, de uma única ou mais sílabas, que pertencem a uma classe gramatical fechada, não levam acento (ou diacrítico): “nos, anos, nhos, anhos, nho, nha, ami, abo, bo, anos, anhos”…). Essas palavras são de um grande rendimento funcional (são usadas com frequência). O não uso de diacrítico, nessas palavras, representa uma grande economia. Considerando que a eliminação do diacrítico não provoca nenhuma confusão linguística, por uma questão de pragmática, não se recomenda o uso de diacríticos nesses casos.

Devo esclarecer que “classe gramatical fechada” são as categorias que pertencem a determinada classe gramatical e contém um número fixo e limitado de elementos. Por exemplo, os pronomes pessoais, os determinantes possessivos ou demonstrativos.

Para terminar, diria que a escrita faz parte da representação simbólica da língua cuja adoção deverá ter em conta um consenso alargado baseado em estudos linguísticos, sociolinguíticos, bem como num pragmatismo racional e prático.

Muitos lamentam não saber escrever o crioulo. Naturalmente, quem não aprendeu a escrever o crioulo não tem culpa de não dominar a sua expressão escrita. E quem não sabe escrever o crioulo deve ter a humildade de fazer essa aprendizagem e evitar a desinteligência de querer ser mestre e teórico (ou opinião makers) daquilo que desconhece, caso não queira ser ridículo.

Por outro lado, quem já sabe escrever, porque aprendeu e praticou, deve saber que a padronização é um processo lento e moroso. Assim, há que ser paciente e tolerante.

 


1 comentário:

  1. Com a devida vénia, ilustrei este post com a capa do livro do antigo Ministro da Educação, Dr. Carlos Reis. Penso que urge que a Educação, em Cabo Verde, tenha um outro olhar sobre o ensino do crioulo. De outro modo, não estará a cumprir o dispositivo constitucional que ordena a criação de condições para a construção da paridade entre as duas línguas da república. Ora, o papel da Educação na construção dessa paridade é insubstituível.

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