ALGUNS CASOS DE DISENSO, ASSISTEMATICIDADE E
DISCÓRDIA
A padronização da escrita nunca é algo pontual. Ela leva tempo, às vezes
mesmo, muito tempo. Nessa longa caminhada há que ter conta alguns parâmetros
fundamentais como: a ciência linguística, os aspetos sociolinguísticos e
pragmáticos pertinentes, a lei do menor esforço, a economia e a sistematicidade
linguísticas.
Temos que reconhecer que, na jornada da escrita, fez-se já uma caminhada
significativa: foi institucionalizado o alfabeto caboverdina em 2009, após onze
anos de pratica experimental do ALUPEC. Foram definidas seis regras de
acentuação (R1-R6). Surgiram estudos gramaticais, textos em prosa e poesia e
até algumas experiências romanescas, bem como ensaios linguísticos e sociolinguísticos
vários.
Se é certo que houve avanços consideráveis, é certo também que persistem
casos de dissenso, assistematicidade e, mesmo, de discórdia, no que tange à
prática da escrita. Esses casos se resumem a: existência de interfones
frequentes; representação do “s” implosivo
e do “e” mudo; utilização do “c”; a regra de acentuação 4d que
estipula que certas classes gramaticais fechadas dispensam a representação de
acento (ou diacrítico).
Vejamos cada um desse casos:
1)
INTERFONES
Em crioulo há vários casos de interfones: b/v: (baka/vaka); s/z:
(kasa/kaza); dj/lh: (midju/milhu); tx/x: (txuba/xuva).
É de se tolerar a existência de interfones pela simples razão que são
fonemas, embora instáveis. A prática acabará por padronizar uma das
representações. Até lá, não deve haver imposição de nenhuma. É tanto certo
escrever “baka” como escrever “vaka”.
2) REPRESENTAÇÃO DO “S” IMPLOSIVO
A pronúncia do “s” é explosiva
quando o som é direcionado para fora (sabe, présa, sinu, sukri). A pronúncia
do “s” é implosiva quando o som é
direcionado para dentro (raspira, riska, pissina = pis-si-na).
Em “pis-si-na” há dissenso. Há quem pense que se deve continuar a escrever
à maneira portuguesa (piscina). Note-se que a palavra “excelência”, em crioulo,
se escreve “exselénsia”. Aqui a escrita não só está de acordo com o ALUPEC, mas
também com a pragmática.
3) A REPRESENTAÇÕ DO “e” MUDO
A mesma verifica-se sobretudo em Barlavento onde aceita-se escrever “respirá”,
mas na expressão “dezê” há a preferência pela representação “dzê”, sem o “e” mudo.
Orá, a eliminação do “e” mudo complica a representação de palavras como “sóbede”
que, sem o “e” mudo ficaria “sóbd”, uma única sílaba. Além disso, por uma
questão de sistema, não se pode aceitar nuns caos e não em outros. Ora, a
pragmática linguística recomendaria o uso do “e” mudo. Aqui também deverá haver
tolerância. O tempo dirá se convém representar ou não o “e” mudo.
3) CASOS EM QUE SE PODE UTILIZAR O “C”
No ALUPEC, normalmente, não se usa o “C”.
Porém, a pragmática recomenda esse uso em nomes de pessoas (Cabral); nas siglas
(RCV, CPLP, TACV); nos símbolos internacionais (etc., cm, CC); em marcas
internacionais registadas (Vitamina C).
4) REGRA DE ACENTUAÇÃO 4d.
Há seis regras de acentuação (R1-R6). A regra mais complexa é a que
estipula a R4d. Segundo essa regra, as palavra agudas, de uma única ou mais
sílabas, que pertencem a uma classe gramatical fechada, não levam acento (ou diacrítico):
“nos,
anos, nhos, anhos, nho, nha, ami, abo, bo, anos, anhos”…). Essas
palavras são de um grande rendimento funcional (são usadas com frequência). O
não uso de diacrítico, nessas palavras, representa uma grande economia.
Considerando que a eliminação do diacrítico não provoca nenhuma confusão
linguística, por uma questão de pragmática, não se recomenda o uso de diacríticos
nesses casos.
Devo esclarecer que “classe gramatical fechada” são as categorias que pertencem
a determinada classe gramatical e contém um número fixo e limitado de
elementos. Por exemplo, os pronomes pessoais, os determinantes possessivos ou
demonstrativos.
Para terminar, diria que a escrita faz parte da representação simbólica da
língua cuja adoção deverá ter em conta um consenso alargado baseado em estudos linguísticos,
sociolinguíticos, bem como num pragmatismo racional e prático.
Muitos lamentam não saber escrever o crioulo. Naturalmente, quem não
aprendeu a escrever o crioulo não tem culpa de não dominar a sua expressão escrita.
E quem não sabe escrever o crioulo deve ter a humildade de fazer essa
aprendizagem e evitar a desinteligência de querer ser mestre e teórico (ou
opinião makers) daquilo que
desconhece, caso não queira ser ridículo.
Por outro lado, quem já sabe escrever, porque aprendeu e praticou, deve
saber que a padronização é um processo lento e moroso. Assim, há que ser
paciente e tolerante.
Com a devida vénia, ilustrei este post com a capa do livro do antigo Ministro da Educação, Dr. Carlos Reis. Penso que urge que a Educação, em Cabo Verde, tenha um outro olhar sobre o ensino do crioulo. De outro modo, não estará a cumprir o dispositivo constitucional que ordena a criação de condições para a construção da paridade entre as duas línguas da república. Ora, o papel da Educação na construção dessa paridade é insubstituível.
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