segunda-feira, 21 de maio de 2012

Dicionário Caboverdiano-Português (Introdução)



INTRODUÇÃO

1. Enquadramento

1.1 - O Contributo pretendido: Sempre pensei que o meu contributo para o desenvolvimento do crioulo caboverdiano (CCV) deveria situar-se na área da escrita e da gramática. Por isso, tomei parte no Colóquio Linguístico de 1979, onde surgiu uma proposta de escrita fonético-fonológica; escrevi o ensaio Diskrison Strutural di Língua Kabuverdianu, 1982, o romance Odju d’Agu, 1987 e O Crioulo de Cabo Verde - Introdução à Gramática, 1995; tomei ainda parte no Fórum de Alfabetização Bilingue, 1989, onde começou a ganhar consistência uma nova perspectiva para o alfabeto do CCV, a de harmonização do modelo fonológico com o etimológico; presidi a Comissão Consultiva criada no Fórum acima aludido, para aprofundar a problemática da mudança afabética que se impunha; presidi o Grupo de Padronização do Alfabeto e que deu corpo à harmonização acima referida, com a proposta do ALUPEC (Alfabeto Unificado para a Escrita do Cabo-verdiano), proposta esta avançada em 1994 e aprovada, a título experimental, em Dezembro de 1998 (ver Boletim Oficial n.º 48, suplemento); preparei e defendi uma tese de doutoramento sobre Le Créole du Cap-Vert, étude grammaticale descriptive et contrastive, 1998.
Porém, a patir dos anos 90, após dez anos de algum labor linguístico, dei-me conta de que o meu contributo para o desenvolvimento do CCV deveria ser um triângulo linguístico, abarcando a escrita, a gramática, mas também o dicionário.
Foi assim que, em 1995, após o estudo gramatical que culminou com a publicação acima referida, dei início a um novo projecto, o do Dicionário Elementar Crioulo de Cabo Verde-Português.
A área da lexicografia não é um terreno onde eu me sinto à-vontade. Porém, a carência de estudos nesse domínio, o perigo de descrioulização lexical que ameaça o CCV e ainda a necessidade de fixar a escrita das palavras, de acordo com o ALUPEC, convenceram-me a assumir um tal estudo. Tenho a consciência das limitações deste projecto que levou cinco anos a ganhar forma e conteúdo - a incompletude é a característica de todos os dicionários -, mas também tenho a consciência que o mesmo representa um contributo significativo para a afirmação de uma língua que, com tenacidade, tem resistido, e resistirá sempre, às ameaças da glotofagia.

1.2 - O estado em que se encontra a lexicografia do CCV: Os estudos linguísticos não abundam. E isto tanto na área da gramática como na da lexicografia. Quanto a este último aspecto, até ao século XIX, não conheço nenhuma referência significativa. A partir daí, e no decorrer do século XX, há algumas referências que, embora importantes, são ainda pouco expressivas. Pode-se referir aos seguintes trabalhos:  o vocabulário de A. de Paula Brito (4 páginas, modalidade crioulo-português) e que faz parte de «Apo ntamentos para a Gramática do Crioulo que se Fala na Ilha de Santiago de Cabo Verde», 1888; o Léxico do Dialecto Crioulo de Cabo Verde, de Armando Napoleão Fernandes, iniciado em 1920, cuja elaboração levou mais de 20 anos, com publicação póstuma, em 1991, e cujo conteúdo (179 páginas, crioulo-português), apesar de significativo, está ainda longe de cobrir o universo lexical do CCV; o léxico de Baltasar Lopes, português-crioulo, que integra o seu livro O Dialecto Crioulo de Cabo Verde, 1957, num total de 196 páginas, o qual apresenta apenas uma amostra do conjunto lexical caboverdiano; o glossário de Luís Romano, na variante de Santo Antão/português, com 43 páginas, integrado na sua obra Cabo Verde – renascença de uma civilização no Atlântico médio, 1970.
Mais recentemente, João Pires e John Hutchinson publicaram um trabalho intitulado Disionariu Preliminariu Kriolu, 1983, edição bilingue, crioulo-inglês, com um total de 85 páginas, o qual, como as outras, é também uma amostra daquilo que constitui o manancial lexical do CCV. Ainda mais recentemente, o francês Nicolas Abrial Quint publicou os seguintes trabalhos: Lexique Créole de Santiago-Français, 1996, com cerca de 1800 entradas; Dictionnaire Français-Capverdien, 1997; Dicionário Cabo-verdiano-Português, 1998 e Dictionnaire Capverdien-Français, 1999, o qual constitui um alargamento dos trabalhos anteriores, num total de mais de 4000 palavras. O mesmo, apesar de constituir o mais volumoso trabalho lexicográfico publicado em 1999[*], regista sobretudo as realizações do mundo rural da ilha de Santiago e, mesmo a este nível, não abarca toda a riqueza vocabular dos camponeses.
Face a esta situação, era necessário um trabalho lexicográfico mais abrangente, embora sem a pretensão de cobrir todo o universo lexicográfico do CCV.
Este Dicionário Elementar Crioulo de Cabo Verde - Português — num total de mais de 16 500 entradas (podendo estas ser uma palavra, os seus campos semânticos ou expressões gramaticais) — é uma tentativa de tornar a lexicografia do CCV um pouco mais abrangente, embora o mesmo se encontre ainda longe de cobrir o universo lexical da língua em questão. Seja como for, o trabalho abarca, de forma não exaustiva, as variedades de Santiago e de S. Vicente, com algumas incursões nas variedades do Fogo, Boavista e Santo Antão.
Quem vier a empreender um novo trabalho lexicográfico disporá já de um número significativo de referências, importando apenas aperfeiçoá-las, alargá-las e enriquecê-las.


2. Estrutura

2.1 - Estrutura de apresentação: A obra possui uma estrutura simples para poder facilitar a captação da forma das palavras, de acordo com o modelo de alfabeto propugnado pelo ALUPEC. Sendo este modelo de base fonético-fonológica (em regra, um só som para uma só letra ou dígrafo e vice-versa), entendi que era dispensável a transcrição fonética das palavras.
Organizei as “entradas” em colunas. Na primeira surge a matriz de Santiago, com a sigla ST. Segue-se a coluna destinada à variante de S. Vicente e a outras variantes do CCV.  coluna SV/OV, em primeiro lugar surgem as palavras de S. Vicente; as que não são de S. Vicente surgem em último lugar seguidas de siglas que as identificam: SA, F, Bv, Br, SN, simbolizando, respectivamente, Santo Antão, Fogo, Boavista, Brava e S. Nicolau. Na terceira coluna figura Obs, isto é: observação. Nela aparece a classe gramatical a que a entrada pertence ou então se diz que a entrada é uma expressão (idiomática ou gramatical). Finalmente, na quarta coluna vem o símbolo Port, que significa português.
Tudo isto significa que as “entradas” na matriz de Santiago têm sempre correspondência semântica na  variante de S. Vicente e no português. A correspondência relativamente às outras variantes do CCV é extremamente limitada. Ela surge quando o autor (que é nativo de Santiago) tem conhecimento da correspondência existente nessas outras variantes. Fundamentalmente, o estudo contrastivo diz respeito a Santiago, a S. Vicente e ao português.

2.2 - Estrutura científica: O projecto contou com um director-executivo, três assistentes e dois conselheiros.
A realização é da inteira responsabilidade do director-executivo, que, aliás, é quem figura como autor da obra. Os assistentes, dois de S. Vicente e um do Fogo, são pessoas muito próximas do autor e que à medida que o projecto avançava iam acompanhando o trabalho feito, dando sugestões ou respondendo às interrogações do director-executivo. Em alguns casos, houve apoio no levantamento terminológico junto dos dados existentes no INAC/INIC. Os conselheiros, sendo um de S. Vicente e outro de Santiago, tiveram por tarefa apurar, após a primeira versão do trabalho, se as correspondências semânticas eram adequadas e se as classes gramaticais atribuídas eram correctas. Podiam ainda, sem carácter vinculativo, dar sugestões para completar ou para melhorar o trabalho.

3. Metodologia

3.1 - Modus faciendi: Para a concretização do projecto, privilegiei a observação directa, nos mais diversos sectores de actividade sociocultural. Sendo locutor nativo, preferi o registo escrito à gravação. Por isso, adoptei o hábito de ter sempre no bolso da camisa um pedaço de lápis e uma folha de papel.
Na vida familiar e laboral, nos convívios de amigos, nas deslocações ao campo, frente a um palco de teatro ou de qualquer outra manifestação cultural, e até junto da diáspora caboverdiana, tinha sempre a preocupação de, discretamente, registar as realizações pouco frequentes, tanto as que conhecia como as que desconhecia. Tive ainda a preocupação de pedir a determinadas pessoas de registarem para mim os termos mais típicos ou pouco frequentes que o seu trabalho ou a sua vivência possibilitavam.
Procedi ainda a vários levantamentos a partir de: obras escritas em Crioulo, arquivos das tradições orais do INAC e do INIC, letras de música e de canções populares, glossários, léxicos e dicionários ligados ao CCV. Pude ainda consultar as cerca de 5000 fichas linguístico-etnográficas do historiador António Carreira, que se encontram depositadas no Arquivo Histórico Nacional. Tanto em casa como no trabalho tinha um caderno de registo.
O material recolhido era armazenado num banco de dados do programa Access, onde, periodicamente, realizava algum tratamento, sobretudo para a eliminação de repetições. Com medo de perder os dados, os mesmo eram gravados no computador da Instituição onde trabalho, no computador familiar e ainda numa disquete zip que adquiri para o efeito, já que as disquetes normais eram demasiadamente pequenas para armazenar tanto material.
A partir do registo feito, normalmente na matriz de Santiago, ia-se à procura da correspondência semântica na variante de S. Vicente e no português. Para tal, recorria com frequência à competência dos meus assistentes, como ainda à dos amigos ou colegas de trabalho que são nativos de S. Vicente. Não poucas vezes, tive também a necessidade de consultar o Léxico de Napoleão Fernandes, alguns locutores nativos de Santiago como também alguns dicionários portugueses, por exemplo o Dicionário Prático Ilustrado, edição actualizada e aumentada por José Lello e Edgar Lello, e ainda o Grande Dicionário da Língua Portuguesa, de Cândido de Figueiredo.

3.2 – Escrita utilizada: Adoptei o alfabeto e a escrita das bases do ALUPEC com algumas pequenas modificações*. Tal alfabeto é de base fonético-fonológica, na medida em que cada letra ou dígrafo representa apenas um som (ou fonema) e cada som é representado sempre pela mesma letra ou dígrafo.
Como se sabe, o ALUPEC é formado por vinte e três letras e quatro dígrafos, na seguinte ordem de apresentação:

A
B
[C]
D
E
F
G
H
I
J
L

M
N
Ñ

O
P
K
R
S
T

U
V
X
Y Z
a
b[c]
d

e
f
g
h
i
j
l

m
n
ñ

o
p
k
r
s
t

u
v
x y
z
Dígrafos: DJ, LH , NH, TX
As letras têm o mesmo valor dos símbolos do alfabeto fonético internacional (AFI), havendo algumas excepções: j tem o valor de [ʒ]; ñ é uma semi-constritiva, velar, nasal – [ŋ]: ñanhi (roer); x tem o valor de [ʃ].

O valor dos dígrafos, no AFI, é a seguinte:

alupec

afi

ex. alupec
ex. afi
port.
Dj
=
[ʤ]
:
djanta
['ʤãtɐ]
«jantar»
Lh
=
[ʎ]
:
pilha
['piʎɐ]
«pilha»
Nh
=
[ɲ]
:
nha
[ɲɐ]
«meu/minha»
Tx
=
[ʧ]
:
txuba
['ʧubɐ]
«chuva»

A nasalização é feita por n (ponba, pónta). Porém, a nasalização do ditongo é feita com til (pon, pãu). A conjunção copulativa e toma a forma de y («txuba txobe y agu kóre»). O pronome pessoal sujeito da primeira pessoa é representado sempre por N («N krê») e o mesmo pronome quando é complemento é representado por m, em Santiago, e por me, em S. Vicente (da-m, dá-me).

Regras de acentuação: Há seis regras de acentuação (R1 – R6), as quais retratam as cinco regras do ALUPEC, com ligeiras modificações em R2, R3, R4, R5:

R1 – A maior parte das palavras em Crioulo é paroxítona. Diz-se neste caso que a sílaba tónica é preditível, não havendo por isso necessidade de representá-la com um diacrítico.
Ex.: banda, fidju, povu, txuba / banda, fidje, pove, txuva.

R2 – Nas palavras paroxítonas em que a vogal tónica é um e ou um o semi-fechado ou semi-aberto (ê/é, ô/ó), o diacrítico é usado apenas sobre as vogais semi-abertas, cujo rendimento funcional parece ser menor. A ausência do diacrítico indicará a natureza vocálica oposta.
Ex.: béku / beke, féra, róda, fera/feira, roda / rodá.
Do mesmo modo, quando a sílaba tónica é uma vogal precedida de uma outra com que não forma sílaba, o diacrítico reaparece.
Ex.: saúdi / saúde, raínha, faíska, saída.

R3 – Todas as palavras proparoxítonas levam diacrítico, excepto alguns advérbios de modo terminados em menti.
Ex.: prátiku, sílaba, inplisitamenti / prátike, sílaba, inplisitamente.

R4 – As palavras oxítonas de mais de uma sílaba e as monossilábicas terminadas por e ou o, seguidas ou não de s, levam o diacrítico de acordo com a natureza vocálica.
Ex.: kafé, mamá, , krê, dipôs, purtugês / kafê, mamâ, , krê, despôs, purtugês.
Esta regra não se aplica aos adjectivos possessivos e aos pronomes pessoais, que não levam diacrítico, salvo bosê, de-bosê, nósa, de-nósa.
Ex.: bo, abo, anho, anos, ami.
Nos pares mínimos, a nível da acentuação, leva diacrítico a vogal mais aberta.
Ex.: mas/más, pa/.
As monossilábicas terminadas por a, i, u, seguidas ou não de s, não levam diacrítico, salvo quando se trata de palavras homófonas.
Ex.: pas, la, li, ti, dju, ku/, nu/.
Nas variedades de Barlavento, do Fogo e da Brava todos os verbos regulares são oxítonos e levam sempre o diacrítico, de acordo com a natureza vocálica.
Ex.: S. Vicente: falá, kemê, durmí, , lanbú.
       Fogo: papiâ, kumê, durmí, , lanbú
 
R5 - As palavras terminadas por l, n, r normalmente são oxítonas e, por isso, não levam diacrítico, já que este é preditível. O mesmo só aparece quando se torna necessário indicar a natureza vocálica da vogal semi-aberta (dór) ou então quando a palavra não é oxítona.
Ex.: profesor, amor, baril, sentral, kanson, jóven, inposível.

R6 – As palavras terminadas por um ditongo precedido de consoante são, normalmente, oxítonas, não precisando de diacrítico. Sempre que a regra não se verificar reaparece o diacrítico, de acordo com a natureza vocálica.
Ex.: balai, sabedoria, liseu, sirkunstánsia.
Quando, nas mesmas circunstâncias, o acento tónico cai na última vogal, e não na primeira, o diacrítico reaparece, de acordo com a natureza vocálica.
Ex.: luâ, buâ.

Obs.: Em txapéu o diacrítico indica a natureza vocálica e não a sílaba tónica que é preditível. Em patrísiu usa-se o diacrítico porque a palavra, embora termine por um ditongo, precedido de consoante, é paroxítona. Em praia e feiu segue-se a R1 já que terminam por ditongo que não é precedido de consoante, como estipula a R6.

Note-se que todas e cada uma das entradas do presente dicionário enquadram-se numa das seis regras de acentuação acima referidas.

4. Conteúdo

4.1 – Abrangência: O projecto inicial previa um total de dez mil entradas (ver o conceito de entrada em 1.2). Porém, acabei por atingir mais de dezasseis mil e quinhentas entradas, tendo ficado com a consciência de o trabalho ter ficado incompleto, já que cada dia que passa dou-me conta de que há termos que não cheguei a registar.
Também os nomes de plantas, frutas, peixes, categorias profissionais, objectos etnográficos, práticas religiosas e filosóficas, têm uma presença pouco representativa na obra. Do mesmo modo, as particularidades das ilhas, outras que não Santiago e S. Vicente, são exíguas. Os cinco anos de investigação - com a preparação de uma tese de doutoramento pelo meio e um financiamento externo que cobriu apenas um ano de investigação – não me permitiram ir mais longe, numa altura que não me faltavam nem forças, nem predisposição. Trata-se, pois, de um dicionário elementar, elementar quanto ao universo lexical do CCV, mas também elementar quanto à sua apresentação. O objectivo de fixar a palavra como conceito existente e como forma escrita, à base do ALUPEC – um modelo ainda desconhecido do grande público –, exigia uma apresentação simples, económica, directa e de grande expressão visual. Por ter usado uma escrita de base fonético-fonológica, achei que a transcrição fonética era dispensável. O dicionário é ainda elementar dado a insuficiência de descrição ou de contextualização dos diversos sentidos que uma mesma forma semântica pode ter.
Contento-me, pois, em ver este dicionário como uma espécie de «léxico fundamental» do CCV, isto é, um léxico reduzido, mas que satisfaz a comunicação corrente do dia-a-dia. Um léxico reduzido, mas que comporta um número significativo de palavras e de expressões que corriam o risco de desaparecer ou de perder a fonética e/ou a forma que a índole do CCV lhes imprimiu através dos tempos.

4.2 – Variedades contempladas: Em Cabo Verde, qualquer estudo linguístico e sociolinguístico nos leva a concluir que as actualizações do Crioulo com maior representatividade e com maior peso no processo de estandardização são a de Santiago (St) e a de S. Vicente (Sv). A matriz de Santiago é importante, pelas seguintes razões: é a mais antiga do Arquipélago, tendo a sua formação começado a processar-se desde os meados do século XV; sociolinguisticamente, é aceite em todas as ilhas do Sul, já que a sua estrutura é muito próxima da expressão linguística dessas ilhas; ela está ainda na base da formação de todas as outras expressões linguísticas do Arquipélago; linguisticamente, é a actualização com maior grau de autonomia gramatical, tanto a nível fonético, morfológico como sintáctico; demograficamente, cobre mais de metade da população residente no país; cientificamente, é a que neste momento possui mais estudos académicos, tanto de nacionais como de estrangeiros; literariamente, é a expressão linguística com mais trabalhos a nível de prosa, possuindo também vários trabalhos poéticos; culturalmente, é veículo e suporte das manifestações culturais mais típicas do Arquipélago, como o batuque, a tabanca  o funaná...  
Por outro lado, a variedade de S. Vicente, apesar de ser das mais recentes, já que o povoamento da ilha começou nos finais do século XVIII, mais de trezentos anos após o de Santiago, possui, apesar de tudo, um certo prestígio. Com efeito, ela é aceite em toda a zona Norte e isto decorre do facto de ela representar uma espécie de unificação das expressões linguísticas de Santo Antão, S. Nicolau e Boavista. Estas três ilhas contribuíram para a sua formação e é por isso que a variedade de S. Vicente é aí compreendida e aceite. A ilha do Sal, que se encontra na mesma zona, possui uma expressão mais recente que a de S. Vicente e o falar aí existente tem na sua origem os falares de S. Nicolau e da Boavista que, por sua vez, estiveram na origem do falar sanvicentino. Daí a razão por que também no Sal a variedade de S. Vicente é aceite.
É tendo em conta a importância das duas expressões linguistícas  do CCV com maior força e prestígio que, tanto no estudo gramatical como no lexical que tenho levado a cabo, quis privilegiar  matriz de Santiago e a variante de S. Vicente. Penso, no entanto, que essas duas expressões constituem apenas elementos de referência fundamental na estandardização do CCV, já que as particularidades significativas de todas as outras expressões dialectais devem ser tomadas em devida conta.
A representação Ov é pouco significativa, não porque assim deve ser, mas porque não tive tempo suficiente, nem meios disponíveis, para fazer o levantamento nas ilhas outras que não Santiago e S. Vicente. O projecto inicial previa esse levantamento, mas, infelizmente, falhou o financiamento. O facto ainda de existirem poucos trabalhos escritos nas variantes não tratadas ou deficientemente tratadas, dificultou o levantamento desejável. A ilha da Boavista, graças ao recente livro Perkurse de Sul d’Ilha, 1999, de Eutrópio Lima da Cruz, tem uma presença de mais de 500 “entradas” neste dicionário, o que não aconteceria se eu não tivesse acesso a uma tal obra, já na recta final do projecto.
Tudo isto para dizer que o meu dicionário, apesar de considerá-lo importante, e isto tendo em conta os objectivos propostos, contudo ele não me satisfaz. Mas quem faz o que pode,  a mais não lhe deve ser exigido.

4.3 – Procedência dos registos: Há quem pense, como por exemplo o linguista francês Nicolas Quint, que o verdadeiro crioulo caboverdiano é tão-somente o das zonas rurais, sobretudo o dos iletrados. Ora, eu penso que o crioulo caboverdiano é o que é falado pelo povo de Cabo Verde, letrado e iletrado, de Santo Antão à Brava, do campo à cidade. Este mesmo Crioulo, como é normal, tem variantes e tem expressões dialectais. Um dicionário, minimamente representativo, deve poder dar conta não só da prática como também do mosaico linguístico do CCV. Um dicionário que, com a preocupação de ser genuíno, se preocupar apenas com a realização dos camponeses iletrados não terá utilidade prática, e isto porque os iletrados não saberão fazer uso do mesmo e os letrados não se sentirão à-vontade no meio de termos e expressões que não conhecem ou que habitualmente não usam.
Pelo contrário, um dicionário que dá atenção ao mundo rural, sem desprezar a vivência urbana, estimula o intercâmbio e a aprendizagem dos dois mundos.
Estou consciente de que é preciso evitar a hipercorrecção (lusitanização abusiva do CCV) muito frequente nas zonas urbanas e junto dos letrados. Do mesmo modo, penso que não se deve impor formas ou práticas linguísticas em desuso ou em decadência só porque um punhado de camponeses as utiliza ou as utilizava. O dicionário, podendo, deve registar essas práticas, com a informação de que são arcaicas, como também deve registar as práticas de letrados e de citadinos, desde que elas tenham já entrado no léxico, na morfologia e na sintaxe do CCV, sem comprometer a sua autonomia.
É por isso que os registos do meu dicionário têm diversas procedências: o campo, a cidade, os letrados, os iletrados, os arcaísmos, os neologismos.
Não fiz nenhuma inovação. Assim como o Petit Robert não é um registo apenas do universo lexical dos camponeses franceses, assim também este meu dicionário não poderá ser apenas o registo lexical dos camponeses de Santiago. Alguém dirá que muitos registos são próximos do português e eu direi que isto é normal porque o português é uma das matrizes fundamentais do CCV, assim como o latim foi uma matriz fundamental para todas as línguas românicas e o inglês, hoje, no domínio tecnológico, tem sido uma fonte de enriquecimento de várias línguas.

5. Visão prospectiva

 A oficialização do CCV é o objectivo maior tanto da nossa Introdução à Gramática, como deste Dicionário. A verdadeira afirmação do CCV acontecerá no dia em que o mesmo for introduzido no sistema de ensino. A geração que vai dominar a ciência do CCV será aquela que vier a ter a sorte de estudá-lo formalmente nas estruturas da educação. E isto exige recursos humanos, materiais e didácticos. O presente dicionário é já um esforço de contribuir para a existência de algum material didáctico. Com esta obra e com as outras que tenho publicado até agora, nomeadamente a Diskrison Strutural di Lingua Kabuverdianu, o Odju d’Agu, a Introdução à Gramática e O Caboverdiano em 45 Lições, penso ter honrado o meu compromisso, isto é, o de contribuir para a afirmação de um triângulo linguístico que tem num dos lados a escrita, noutro a gramática e no terceiro o dicionário.
Tenho consciência, no entanto, que muito caminho resta ainda para ser andado. E o desbravar desses caminhos passa pela formação de linguistas e pela disponibilização de recursos. Os que decidem pelo futuro deste país têm que ser coerentes e consequentes, pelo menos com os documentos que aprovam e com as posições que assumem publicamente. A Resolução do Conselho de Ministros n.º 8/96, relativamente ao Programa governamental, diz, em matéria de língua nacional:

«O Governo pretende (…) com base em estudos científicos que vêm sendo desenvolvidos por técnicos competentes na matéria, fixar metas e determinar etapas, para a oficialização do crioulo (…) ao lado do português…»

Uma outra Resolução, n.º 8/98, publicada no BO n.º 10, dizia que

«Será valorizado, progressivamente, o crioulo cabo-verdiano, como língua de ensino».

Também em Julho de 1999, aquando da revisão da Constituição, frente ao posicionamento do maior Partido da Oposição, que reclamava a «oficialização em construção» do Crioulo, o Partido da Situação, que dispunha de uma maioria qualificada na Assembleia Nacional, mandou consagrar um dispositivo segundo o qual o Governo deve criar as condições necessárias para a oficialização da língua caboverdiana em paridade com a portuguesa[†].
Será que as «Resoluções» atrás referidas e o dispositivo constitucional serão respeitados? Espero e desejo firmemente que assim seja. Para além do meu desejo e do meu trabalho, nada mais posso fazer. A minha geração, como a dos meus filhos, não puderam, mesmo num Cabo Verde independente, há vinte e cinco anos, estudar o Crioulo nos bancos da escola. Se por ventura tiver a sorte de ver as gerações mais novas a terem este privilégio, considerarei que valeu a pena o trabalho feito e os sacrifícios consentidos.

                                                                                              Praia, Novembro de 2000.

                                                                                                          Manuel Veiga



[*] Jürgen Lang e a sua equipa virão a publicar, no ano 2000, o DICIONÁRIO do CRIOULO da ILHA de SANTIAGO, com oito mil “entradas”,  possivelmente  o mais completo trabalho lexicográfico existente até então.
* Modificações: a) a letra  passa a ser representado por ñ ; b) as regras de acentuação n.os 3, 4, e 5 passam a ter uma redacção ligeiramente diferente, como à frente se pode verificar.
[†] Em 2005, cinco anos após a elaboração desta Introdução, o Governo da VI Legislatura, através da Resolução 48/2005, de  14 de Novembro, virá a aprovar “As Linhas Estratégicas para a Afirmação e Valorização da Lingua
Língua
Caboverdiana” e que estipula, entre outras acções: que na Administração, o uso da  Lingua Caboverdiana seja livre; que as Instituições superiores e públicas de ensino devem introduzir o ensino da Língua Caboverdiana como matéria; que nas aeronaves, na literatura e na comunicação social se deve encorajar o uso da Língua Caboverdiana; que o estudoe a investigação sobre a língua caboverdiana  devem ser desenvolvidos e estimulados.

4 comentários:

  1. Gostaria de saber onde posso adquirir um dicionário de caboverdiano/português.
    O meu genro, apesar de ser português, é de origem caboverdiana, fala criolo e faz questão de fala-lo com o meu neto, de forma a que ele também aprenda a língua dos avós.
    Como tal, também gostaria de aprender a falar criolo, não só para os entender quando falam um com o outro, mas também para eu poder tentar também, falar com eles.
    Estive recentemente no Mindelo e procurei lá mas não encontrei nas livrarias

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  2. Nas livrarias da Biblioteca Nacional, na Praia e no Mindelo, encontrará o dicionário, em referência. Penso que um outro livro que lhe pode ser muito útil é O Caboverdiano em 45 Lições, da minha autoria.

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  3. Manoel, Sou Brasileiro e estudo Kabuvedianu há algum tempo, mas devido à falta de material percebo lacunas na minha competência com a língua. Existe a possibilidade de eu comprar esse dicionário e o eu livro "O Caboverdiano em 45 Lições" pela internete?

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    1. Ambos os livros estão disponíveis no Instituto da Biblioteca Nacional, na Cidade da Praia. Não sendo possível comprar esses livros através da Net, poderá fazê-lo através da embaixada do Brasil ou do Centro Cultural Brasileiro na Praia.

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