sábado, 10 de março de 2012

Cidade Velha:
 Nascimento e Configuração de um Novo Mundo

O poeta caboverdiano Jorge Barbosa, perplexo diante da cosmogonia das ilhas de Cabo Verde, se interroga: «Destroços de que continente, / de que cataclismos, / de que sismos, de que mistérios? …/»

E ao tentar responder a questão colocada, ainda em plena época  colonial, o poeta descreve essa estranha cosmogonia dizendo tratar-se de: «Ilhas perdidas no meio do mar/esquecidas num canto do mundo/ que as ondas embalam, / maltratam, / abraçam…»

E prosseguindo a configuração da cosmogonia islenha, diz-nos o vate da crioulidade que na hora zero em que tudo começou só havia: «Praias abertas/… onde naufragaram/navios/aonde aportaram/ caravelas, / onde saltaram/marinheiros queimados, / corsários, escravos, aventureiros/ condenados, fidalgos, negreiros, / donatários das ilhas, / Capitães-Mores…»

Ora, a Cidade Velha, berço da caboverdianidade, laboratório de miscigenação e da emergência de um mundo novo, foi também ponte que ligou a África à Europa, às Américas e ao Oriente, particularmente nos longínquos e conturbados séculos XV e  XVI da era cristã.

O sítio histórico cuja memória secular transparece e se configura em cada ruína, em cada pedra carcomida e em cada traço dos equipamentos militares, religiosos e sociais, resultou, na percepção do poeta, de «destroços, de cataclismo, de sismo e de mistério

Às ilhas perdidas, esquecidas, maltratadas e, curiosamente, acariciadas pelas ondas, aportaram caravelas, chegaram também fidalgos, escravos, condenados, aventureiros, corsários e negreiros.

Todos juntos, no confronto e no reencontro, fizeram das ilhas um canto privilegiado de experimentação e de configuração de um novo humanismo e de um novo eco-sistema.

O laboratório antropológico e ecológico que enformou e configurou o sítio histórico da Cidade Velha teve assim a cumplicidade de negros e de brancos, de escravos e de senhores, de soldados e de religiosos, de piratas e de mercadores, deportados e capitães-mores.

Do confronto inicial nasceu o logos actual, emergiu uma nova cosmologia, depurada e vivificada,  onde nenhuma das partes pode ficar indiferente e cujo nomes de baptismo é Cidade Velha, é Cabo Verde, é caboverdianidade, mas também é diversidade cultural celebrada umas vezes  na dor e, outras vezes, no abraço e na cumplicidade entre todas as partes envolvidas.

Tudo isto significa que o caminho andado e partilhado é um património comum que merece ser conhecido, que merece ser reconhecido.
A Nação caboverdiana não tem nenhuma dúvida quanto ao estatuto da Cidade Velha, berço da caboverdianidade, laboratório de experimentação civilizacional, ponte que ligou a África ao mundo. Resta agora  ao mundo levantar o véu ténue da memória para enxergar a verdade histórica, a verdade antropológica, a verdade verdadeira.

Espero que esse encontro sobre o «Futuro do Passado da Cidade Velha» seja um exercício para levantar o véu que, eventualmente, poderá estar a esconder o brilho do diamante que o  património em causa representa.

Mas voltemos ao mundo nascido da globalização de civilizações, cuja responsabilidade maior de criação esteve nas mãos dos crioulos gerados umas vezes pelo estupro e, outras vezes, pelo acasalamento entre a mãe escrava e o pai escravocrata.

O ensaísta Gabriel Mariano fala do mundo que o  crioulo criou, um crioulo que é filho gerado muito mais na dor do que no amor e que nasceu de um parto difícil, mas nem sempre fatal.

Esse mundo é a Cidade Velha, mas também é a caboverdianidade. A humanidade antes de 1460, data da descoberta das ilhas, e depois dessa data histórica, até aos nossos dias, não foi, não é, a mesma coisa. A aventura dos «descobrimentos» transformou-se na aventura da crioulidade e da diversidade cultural. E, consequentemente, o património da humanidade acabou ficando mais rico com as duas aventuras, umas vezes amarguradas e, outras vezes reelaboradas, temperadas e criativas.

Mais do que nunca, o que hoje nos interessa  é o produto elaborado, é o lado temperado e criativo dessas aventuras. O sabor dessa recriação é tão intenso quando sabemos que ele resulta, em várias estações de percurso, de situações limites que o poderiam ter estrangulado à nascença. Porém, a tenacidade do povo das ilhas não o permitiu. A escravatura, a colonização, a estiagem saheliana, a emigração forçada, o analfabetismo generalizado são algumas dessas situações limites. Contudo, na fibra dos caboverdianos estiveram sempre presentes a esperança e a tenacidade contra as adversidades da história como também as do ambiente geográfico e social.

O resultado está à vista. Hoje, da aldeia da desgraça, cujos símbolos eloquentes são o Pelourinho da Cidade Velha, o ex- Campo de Concentração do Tarrafal e a triste memória da emigração forçada para São Tomé, passamos a ter a graça de um Estado independente e democrático, de uma  economia  de livre concorrência, de procura turística  e de investimento externo.

Hoje, ainda, de uma cultura proibida e subjugada, passamos a semear a semente da liberdade, do progresso, da educação e da cultura, com orgulho e determinação, por tudo quanto é canto do País. Até no exterior vimos semeando a nossa história e cultura não só através da diáspora como também através da diplomacia política e artística.

E se tudo isto acontece hoje é porque ontem existiu a Cidade da Ribeira Grande de Santiago, a nossa querida Cidade Velha cujos marcos históricos queremos que sejam conhecidos e reconhecidos para que a memória não se apague, para que o passado possa, positivamente, influenciar os trilhos do futuro, da tradição e da inovação, os trilhos da cultura e da diversidade cultural, do progresso e da democracia, numa palavra, os trilhos de um  humanismo ousado, integrado, equilibrado e civilizado.

 E por falar de humanismo, vejamos como é que a Cidade Velha configurou e temperou o humanismo caboverdiano.

Restringirei a minha abordagem, particularmente, à antropologia cultural.

Tanto no aspecto da cultura em geral, como no da língua, em particular, o humanismo caboverdiano resultou de uma miscigenação plúrima, dinâmica  e fecunda. Na dureza do ambiente social, político e geográfico, o homem crioulo plasmou e esculpiu, palmo a palmo, passo a passo, um novo rosto, um novo modo de estar e de ser, com base na abertura e na tolerância diante das riquezas e conquistas de outros humanismos, como uma atitude crítica frente aos valores e contra-valores, com humildade para aprender, mas também com ousadia para transformar o humanismo importado num humanismo endógeno e enraizado.

É  por isso que o nosso modo de ser e de estar tem a marca das nossas ilhas, a cumplicidade da nossa história, a resistência das nossas rochas, a têmpera do nosso chão, a força do nosso mar e a sinergia do nosso sonho. Dizia um grande trovador caboverdiano, o nosso imortal Ildo Lobo, que ele «tinha de nascer numa terra de rocha, de mar e de morna». A rocha simboliza os trilhos difíceis do nosso calvário e da nossa resistência como povo e que configuram uma «endurance» própria e fecunda do nosso humanismo, durante as diversas etapas e as diversas azáguas da nossa aventura crioula. O mar, pelo seu lado, é a ponte de ligação que traz o mundo às ilhas e que leva as ilhas ao mundo. Poderá representar também a cortina que nos separa do lado de lá, uma espécie de prisão existencial, mas também uma espécie de protecção natural. A morna simboliza a nossa cultura, o mundo que criamos com a têmpera das nossas rochas, com a água da nossa ribeira, com o barro e húmus do nosso chão. Ela, a morna, é ritmo, é movimento, é poesia e é o amplexo do masculino com o feminino, como que num acto de amor e de procriação.

Antes da Cidade Velha a morna não existia, como também não existia a coreografia e o conteúdo da coladeira, do funaná, do colá S. Jon. Também a cachupa, a relação profana e religiosa ao mesmo tempo com o transcendente, a morabeza islenha, o crioulo caboverdiano, as tradições orais, as colheitas e as azáguas das nossas fainas antropológicas pós-1462, o ano do povoamento, não existiam.

É caso para se dizer que, com a Cidade Velha, o mundo renasceu e ficou mais rico. Do mesmo modo, o chão do humanismo universal ficou mais diversificado, mais plural, mais representativo.

Tudo isto para dizer que o futuro do passado da Cidade Velha chama-se Cabo Verde, chama-se caboverdianidade, chama-se também diálogo cultural e tolerância civilizacional, chama-se produto e projecto de interculturalidade.

Como não podia deixar de ser, temos uma visão da gestão desse futuro que hoje já tem um rosto a ser reconhecido e preservado, mas que amanhã, sem perder os traços, a memória e a simbologia que já tem, poderá ter novas expressões, novos contornos.

E tudo isto é devedor da força anímica, física, virtual e espiritual da Cidade Velha, da história que a informou e a configurou.

Por isso, agradecemos ao mundo que nos ajudou a a semear,  a cultivar e a cuidar da Cidade berço, da Cidade cúmplice, da Cidade objecto e  da Cidade projecto do nosso humanismo. Por isso, assumimos o compromisso diante de nós mesmos e da comunidade internacional para que o futuro do passado da Cidade Velha seja sempre  uma fonte de energia para a preservação da memória histórica e para os desafios da modernidade que se  inspiram e se deixam influenciar pelos ensinamentos e pela sabedoria da história, das tradições e do património que a Cidade Velha simboliza, significa e veicula.

Para terminar, em nome do Governo de Cabo Verde, queria agradecer toda a Comunidade Internacional que participou na aventura criativa da Cidade Velha, na sua gestação,  na sua preservação, no seu reconhecimento e projecção.

Gostaria ainda de lançar um vivo apelo a todos os que se dignaram aceitar o convite para a reflexão sobre a Cidade Velha,  este nosso santuário de histórias, de civilizações, de dores de um parto difícil, mas também de sementeiras do futuro; aos patrocinadores do evento, com especial destaque para a Cooperação Espanhola; aos promotores   da recuperação do sitio histórico, com destaque para a Espanha e Portugal; a todos quantos não estão aqui presentes, mas que reconhecem o valor patrimonial e civilizacional da Cidade Velha; a todos, em nome do Governo de Cabo Verde, peço que usem do seu conhecimento e da sua influência positiva para congregar a Comunidade Internacional à volta do projecto de reconhecimento da Cidade Velha como Património da Humanidade. Cabo Verde já analisou, já escolheu, já decidiu. Da Comunidade Internacional se espera: o conhecimento e a análise apropriados do bem patrimonial; a coerência e a propriedade na avaliação; a responsabilidade e a justiça na decisão.

A todos muito obrigado

                                                Convento de S.Francisco na «Cidade Velha»,  
                                             aos 03 de Outubro de 2007,

                                                                         Manuel Veiga
                                                                                    Ministro da Cultura

NB:  por ocasião da declaração da Cidade Velha como Património da Humanidade

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