quarta-feira, 29 de março de 2017

O Sentir Literário da Época de José Lopes E o Húmus da sua Poesia




A Literatura Caboverdiana e o Sentido de pertença de cada Época

                                                                                          Por Manuel Veiga

A poética de José Lopes está moldada em conformidade com o sentir da sua época e com os constrangimentos sociais, culturais e ambientais do seu tempo.
Não há nenhuma identidade literária que seja um muro fechado ou uma fortaleza blindada. Isto seria uma pobreza que, particularmente no aspeto literário, é revelador de um ostracismo sem a leveza, a projeção e a fecundidade da arte.
Na história da nossa literatura, temos e continuaremos a ter vários momentos, cada um com o seu sentir e a expressão da sua época, todos eles importantes e reveladores da dinâmica cultural e criativa de um povo que sempre soube manifestar a sua fome existencial e a sua ambição insaciável de ser mais e de ter mais e melhor qualidade de vida e do ambiente, no campo cultural, no campo humano, no campo social.
Acontece que o sentir literário e a expressão artística, em Cabo Verde, nem sempre foram interpretados com tolerância e espírito de inclusão crítica.
É assim que a “claridade” foi quase que um “muro” em relação tanto à geração literária antecedente (a dos ditos pré-claridosos) como, de alguma maneira, a subsequente (a dos rotulados pós-claridosos), particularmente aqueles que recusaram ler pela cartilha, única e exclusivamente, do telurismo étnico.
É por isso que o poeta e ensaísta José Luís Hopffer[1], falando da identidade literária caboverdiana, afirma que esta  foi amiúde rotulada de evasionismo e de inautenticidade. Eis o que ele diz:
“… os poetas e escritores caboverdianos mais avessos (ou tão-somente indiferentes, ou temporariamente indiferentes) à “monocultura identitária”, em parte ou na totalidade da sua obra, têm sido amiúde acusados de inautenticidade e apatridia literárias, bem como de sabida ancoragem num universalismo supostamente desenraizado, os quais, por seu lado, são percepcionados como epifenómenos de uma espécie de novo evasionismo na literatura caboverdiana”.

Na mesma linha, a Prof. Fátima Fernandes[2] escreve: 
Se, antes da independência, fazia sentido uma “busca” da identidade, a qual teria reflexo na afirmação da nacionalidade; após a autonomia poderia ser questionada e considerada inoperante e desnecessária tal procura.”
Reforçando o seu posicionamento, Fernandes (op. cit. p. 152) cita BAUMAN Zygmunt para quem
“… O ‘pertencimento’ e a ‘identidade’ não têm a solidez de uma rocha, não são garantidos para toda a vida, são bastante negociáveis e revogáveis (…) Em outras palavras, a ideia de ‘ter uma identidade’ não vai ocorrer às pessoas enquanto o ‘pertencimento’ continuar sendo o seu destino, uma condição sem alternativa. (F. F., apud BAUMAN, 2005, p. 17-18) ».
A Nova Literatura em Cabo Verde - segundo o poeta Filinto Elísio, citado por FF (p. 155 da sua tese de doutoramento) - é
[...] assumidamente não Claridosa, isto é, … não tem a Claridosidade como seu eixo central e muito menos seu fio condutor”.
Tudo indica que para o novo sentir literário, em Cabo Verde, a literatura não tem que ter, necessariamente, uma identidade de portas fechadas, nem ser uma espécie de muro impenetrável. Naturalmente, ela tem que ter alguma identidade, aquilo que Bauman interpreta como o sentimento de pertença, mas sem obedecer, no dizer de Filinto Elísio, aos motes desta ou daquela época, sem se deixar policiar pelos cânones nem dos nativistas, nem dos realistas, dos neo-realisrtas, dos nacionalistas e no dizer de JLHA, sem incensar, ilegitimamente, também, nem o telurismo e nacionalismo exacerbados, nem, exclusivamente, “a arte pela arte”.
Nesta perspetiva, a literatura caboverdiana - sem alcandorar a “Claridade” como centro (girando à sua volta a identidade ou não-identidade dos pré e dos pós-claridosos), mas também sem catalogar nenhuma das épocas como centro ou periferia, sem incensar nem o telurismo étnico, nem a arte pela arte - deve poder descobrir o sentido de pertença de cada época e, criticamente, analisá-lo ou apreendê-lo, de acordo com o sentir cultural, social e ambiental dessa mesma época. Esta perspetiva, dizia, leva-nos a encarar a história da nossa literatura na sua dinâmica, sendo todas as épocas importantes, por serem o retrato de um sentir, de uma visão e de uma práxis, situados no tempo e no espaço.

A Época de José Lopes e a Busca de Referências: nasceu na Ribeira Brava, em S. Nicolau, a 15 de Janeiro de 1872 e morreu em Mindelo a 2 de Setembro de 1962 (ver a sua biografia na presente obra). Aos 15 anos viveu na Praia onde pôde conhecer Guilherme Dantas; esteve também em Angola (1891) onde trabalhou numa fazenda; passou 6 anos na Boavista onde contraiu o matrimónio. Passou algum tempo em Oeiras (Portugal). De regresso a Cabo Verde foi transferido para Santo Antão onde exerceu docência no magistério primário, de 1900-1928. A partir desta data, e até 1931, foi professor no Liceu Infante Dom Henrique, em S. Vicente. Ainda, segundo Brito Semedo e João Nobre de Oliveira foi agente consular do Brasil e da França, foi condecorado pelo Ministro do Ultramar, Prof. Adriano Moreira, em 1962, com a Ordem do Infante Dom Henrique; distinguido pela França com a Légion d’Honneur, pelo General De Gaule, como reconhecimento pelo soneto “La France”, escrito no quadro da Resistência, durante a 2ª Guerra Mundial. Foi ainda reconhecido como Pupilo do Império Japonês pelo Imperador Hiro-Hito, na sequência do poema heróico que exalta Japão na Guerra Russo-Japonesa de 1905. Também a Academia Francesa aceitou-o como membro e a Suíça declarou como património o seu poema “Helvétia”. A sua obra em inglês foi inscrita na Biblioteca do Congresso nos EUA. Recebeu menções honrosas do rei Alberto I da Bélgica e do rei Jorge VI da Inglaterra.
Em Cabo Verde, nos idos de 1928, foi homenageado, durante a semana dos poetas, juntamente com outros confrades. Em 1972, por ocasião do seu centenário de nascimento, voltaria a ser homenageado pelas autoridades de então. Mais tarde, no período pós-Independência, o então Presidente, Dr. António Mascarenhas Monteiro, pelo decreto 3/95, de 2 de Fevereiro, a título póstumo, condecorou-o com o Segundo Grau da Ordem do Dragoeiro e a 1ª Classe de Medalha de Mérito. Em S. Vicente há uma praça que leva o seu nome e ostenta um busto em sua memória. O mesmo foi apeado no seguimento dos acontecimentos violentos de 25 de Abril de 1974, mas o bom senso acabaria por mandar repô-lo, em 1985.

Pelos dados acima referidos se pode concluir que José Lopes foi um intelectual distinto, reconhecido particularmente no além-fronteira. A nível interno, a partir da década de 1990 viria a ter reconhecimento oficial de maior destaque.
Este reconhecimento tardio se deve à interpretação do sentir literário do tempo de José Lopes em função dos cânones particularmente o de “fincar os pés no chão” (em exclusividade fronteiriço) e o do nacionalismo literário um tanto-ou-quanto exacerbado do chamado período pós-claridoso, particularmente com os defensores de uma literatura telúrica (concêntrica) e politicamente mais engajada.
Acontece que na época protagonizada por José Lopes, por Pedro Cardoso, Eugénio Tavares, Luís Loff de Vasconcelos, entre outros, havia um sentir literário emergente num contexto de pátria lusitana e de mátria africana, ligado mais ao ritmo e estética romântica, grandiloquente e classizante, do que aos cânones do realismo, do modernismo e do pós-modernismo protagonizados seja pelos claridosos, seja pelos escritores das épocas subsequentes.
Na óptica de JLHA  citado por FF(op.cit. p. 93-94):
“… Um alegado alheamento literário em relação à realidade caboverdiana injustamente atribuído aos nativistas, aliado à utilização de uma linguagem de tom grandiloquente e classicizante, dominante em Cabo Verde até à década de trinta do século passado e persistentemente cultivado até à morte, em 1962, do seu maior artífice nas ilhas, José Lopes, bem como por outras personalidades proeminentes da cultura caboverdiana, como Pedro Cardoso (…) foram os alvos principais da démarche modernista de fincar os pés na terra, protagonizada pelos escritores claridosos …”.
Durante muito tempo, José Lopes - o patriarca dessa poética “grandiloquente e classizante”, onde os cânones do telurismo étnico e do nacionalismo restrito não constituíam, rigorosamente, preocupação única, não só foi esquecido nos meios literários (razão por que não consta da antologia No Reino de Caliban, de Manuel Ferreira), como também foi acusado de evasionismo telúrico e político e sua produção poética foi apoucada ou minimizada, sendo antecessora da corrente literária subsequente, mas sem a dignidade de ser precursora da mesma corrente, por não constituir nem elemento de referência, nem de inspiração.
 Vivendo ele no período colonial, e numa altura em que o romantismo fazia escola, e havia recurso à mitologia para explicar o que a realidade de então não compreendia ou, então, não conseguia decifrar, José Lopes, mas também Pedro Cardoso, lançaram mão do mito hesperitano ou arsinário para interpretar o passado das nossas ilhas.
Numa página da Internet[3] o autor de “O Mar na Poesia de Cabo Verde” afirma):
“… As obras de José Lopes e de Pedro Cardoso, já nos seus títulos (Hesperitanas, 1928, e Hespérides, 1929; Jardim das Hespérides, 1926, e Hespéridas, 1930, respectivamente) interpretam a origem [de Cabo Verde] como: ilhas do velho Hespério – pai das Hespéridas – que abrigavam jardins repletos de pomos de oiro, guardados pelo dragão de cem cabeças, morto por Hércules (…)”.
Ao que tudo indica, tanto José Lopes como Pedro Cardoso recorreram a esse passado mítico para denunciar a situação de miséria e de abandono por que passavam as ilhas de Cabo Verde, na época em que viveram.
A busca do passado de glória para explicar o que a história não consegue ou não dispõe de elementos para explicar era frequente na época de José Lopes e nas épocas anteriores. Basta recordar o mito de Atlântica assim retratado[4]:
 “Atlântida teria sido um paraíso, uma lendária ilha cuja primeira menção conhecida remonta a Platão”.
Porém, em apenas uma noite, Atlântida foi engolida pelo mar. Este é o mito que, provavelmente, inspirou tanto José Lopes de Hesperitanas e Jardim das Hespérides e Pedro Cardoso de Hespéridas e Jardim das Hespéridas. Ao que parece, o mito de Hespérides ou Hespéridas constitui o que da gloriosa Atlântida sobrou.
Como terá surgido o mito hesperitano? Tudo indica que, frente aos rigores de uma natureza que, ciclicamente provocava a seca e a fome, bem como o colonialismo que privava os caboverdianos da liberdade, justiça social e respeito pelos direitos fundamentais, alguns intelectuais, como José Lopes e Pedro Cardoso sonharam e arquitetaram o mito hesperitano, uma espécie de pasárgada do seu tempo, como forma de exaltação da história das suas ilhas.
Assim visto, o mito hesperitano teria por função a procura de equilíbrio (ainda que apenas sonhado) num ambiente sufocado pela estiagem natural, cultural e política.
José Lopes, desiludido com o esquecimento das ilhas, por parte da então “Metrópole”, estando na altura na Boavista (em 1899), proclama o desejo de as ver independentes.
Do mesmo modo, defendendo a pátria lusitana, Eugénio Tavares, em 1914, no n.º 176 d' A Voz de Cabo Verde lança estas interrogações:
Será «Crime o nativismo? Crime amarmos mais o que é nosso do que é alheio? Será crime esse dulcíssimo sentimento de amor à terra em que nascemos?».
É por isso, ainda, que Pedro Cardoso, defendeu, com corpo e alma a dignificação do crioulo e promoveu as tradições culturais de Cabo Verde (ver, entre outras tomadas de posição, a conferência proferida em 1933, no Teatro Virgínia Vitorino, na Praia, e o seu livro Folclore Caboverdeano).
Ora, os que assim agem não podem ser apodados de poetas alienados ou de evasionistas telúricos, mesmo sendo defensores, ao mesmo tempo, da pátria lusitana e da mátria caboverdiana, o que para muitos era uma posição dúbia e inaceitável.







O Húmus da Poética de José Lopes

O Soneto como Técnica: O autor de Jardim das Hespérides é um cultor e amante do classissismo, tanto na forma, como, em algum sentido, no conteúdo também. Na obra que a Academia Caboverdiana de Letra (ACL), em muito boa hora, decidiu reeditar, em termos formais, escolheu o soneto como forma poética de expressão. Segundo Emesrson Santiago[5]
O soneto é composto por dois quartetos e dois tercetos, ou seja, quatro estrofes  (conjuntos de versos), sendo que as duas primeiras devem conter quatro versos e as duas últimas três, num total de catorze versos
Nos sonetos de Jardim das Hespérides, temos sempre, ou quase sempre, duas quadras, dois tercetos e catorze versos, a métrica de catorze sílabas (os chamados decassílabos), e as rimas estão organizadas da seguinte maneira: a) nos quartetos, o primeiro verso rima com o quarto e o segundo com o terceiro. Esta disposição é, formalmente, representada por abba, designada por rima interpolada (intercalada ou opostas)[6]. b) Nos tercetos, o primeiro verso rima com o segundo e o terceiro verso do primeiro terceto rima com o terceiro do segundo terceto, sendo a disposição formalmente representada por aab.
Vejamos no poema Tributo Final, página 135 as caraterísticas do soneto de JL, acima referidas:

“Ilhas de Cabo-Verde ! — No meu verso
 Eu quisera elevar-vos tanto, tanto,
 Que transmitir pudesse no meu canto
 Vossos nomes a todo o Universo!...


 Terra da minha pátria! onde disperso
 Fica o meu ser, em átomos de pranto,
 Amor e sofrimento!... Meu encanto,
 Mesmo na dor o coração imerso!...
 Eu te saúdo! Teu obscuro filho,
 Se não te posso dar, do génio o brilho,
 Contudo a um grande amor podes sorrir!

 Recebe o coração do teu poeta.
 Possa na morte, em lágrima discreta,
 Levar n’alma a visão do teu porvir!...
 Húmus da poética de JL: O chão da poesia de José Lopes é hesperitano[7]. Tanto no título desta obra (Jardim das Hespérides), como nas várias referências feitas pelo autor, o ambiente hespiritano é uma constante. Dir-se-ia que o poeta enraíza, poeticamente, a identidade e a pátria crioulas nesse chão hesperitano que outros chamam, também, “arsinário”.
 Vejamos alguns exemplos, para além do título da obra:
·       No poema “Batendo à Porta”, p. 21 encontramos:

Da Torre de Marfim onde viveis, Poétas! / À porta, vem bater um que é da Hespéria oriundo”.

·      No poema “Hespérides”, p. 28, 2º quarteto e 1º terceto, descreve o mito hesperitano:

“Lendas e velhos contos, são bonitos!
 Tal o das três irmãs Hesperetusa
 E as outras duas, Egle e Aretusa –,
 Vossas mães, — as Hespérides dos mitos –,

 Descendeis delas, que, de Héspero filhas,
 Tinham no seu jardim, as nossas ilhas,
 Pomos de oiro, da guarda de um dragão...

Em vários outros poemas encontramos referências ao mito hesperitano.

Ora, a pergunta que se coloca é: porquê essa presença, quase que obsessiva, do “ mito hesperitano”? Segundo Carmen SECCO, atrás citada, as “ilhas do velho Hespério – pai das Hespéridas – que abrigavam jardins repletos de pomos de oiro, guardados pelo dragão de cem cabeças, morto por Hércules (…)”, é o mito de que tanto José Lopes como Pedro Cardoso se serviram para dar corpo a uma pátria e a uma identidade que a então realidade das ilhas, flageladas pela estiagem, esquecidas e abandonadas pelo poder central, não satisfazia  ao sonho e ao ideário dos que prezavam  o humanismo, a inclusão, a liberdade, a dignidade e a igualdade de oportunidade para todos os caboverdianos.

José Lopes, denunciando a situação degradante em que viviam os caboverdianos, afirma, em 1899, no número 14 da Revista de Cabo Verde
“… dia virá em que o povo há-de triunfar dos que ou o desprezam, ou o oprimem, ou o envenenam (…) tenho anseios de que algum dia, embora no derradeiro momento da vida, pudesse ter o prazer de ver estas pobres ilhas independentes.

Na mesma altura, um coevo de JL, o poeta Eugénio Tavares, denunciando a mesma situação, em 1900, no jornal Alvorada, dizia

Portugueses irmãos, sim; portugueses escravos, nunca. Havemos de ter o nosso Monroe[8]: A África para os Africanos”.

Também Pedro Cardoso, coevo de José Lopes, na sua “Ode à África”, de 1922, se insurge contra os que em África ou em Cabo Verde vêm sugando o suor dos seus habitantes. Vejamos a sua indignação:
“África minha, das esfinges berço/ já foste grande, poderosa e livre (…)/ Mas hoje jazes sem poder sem nada/ (…)/ Sobre o teu corpo, ó meu leão dormente/ vieram bárbaras nações pousar/ E, quais harpas truculentas, feras/ Nele cevar…”.
Nessa mesma linha, já Luís Loff de Vasconcelos, em 1900, na sua obra A Perdição da Pátria, referenciada por João Nobre de Oliveira (atrás citado), proclama, ele também, a sua indignação perante os desmandos das autoridades da então metrópole, para com Cabo Verde, nos seguintes termos:
“Temos inúmeras razões, como filho de uma das colónias portuguesas, para graves ressentimentos contra a mãe pátria, pela sua descuidada tutela e desleixada administração colonial, que não tem permitido o largo desenvolvimento moral e material que a nossa terra, o nosso querido Cabo Verde, poderia ter. As leis que se decretam para esta província, ou são inexequíveis ou atrofiadoras”.

Quem, como José Lopes, Eugénio Tavares, Pedro Cardoso, Luís Loff de Vasconcelos, reclama a cidadania inclusiva para Cabo Verde e para os caboverdianos, sejam eles vistos como Jardim das Hesperides ou como hesperitanos, não pode ser considerado alienado e desenraizado, mesmo defendendo, em uníssono, a pátria portuguesa e a mátria hesperitana (entenda-se, caboverdiana).

A poética de José Lopes e a sua intervenção cívica fazem coro com as reclamações dos chamados “pré-claridosos”, acima referidos, sobretudo na denúncia que encontramos no número 14 da Revista de Cabo Verde, acima referida. 

Podemos, pois, afirmar, que o chão da sua poética, para além do sonho hesperitano de ver as ilhas alcandoradas a um patamar mais alto de dignidade e de desenvolvimento, expressa também um “telurismo” – não, propriamente, o da valorização do crioulo ou da esconjuração da insularidade madrasta (com o seu coro de fomes, secas e estiagem), mas um telurismo que se confunde ou que dialoga com um humanismo de horizontes abertos. E isto porque, na sua conceção, o mundo só seria hesperitano quando passasse a ser uma aldeia global, de cidadania plena, de dignidade reconhecida e vivida, de direitos respeitados e de deveres assumidos.

Um tal telurismo de rosto humano e de janelas abertas para o mundo - a partir do chão das ilhas (as suas hespérides) - não é, de forma alguma, nem alienado, nem alienante. Com efeito, “Tempora Mutantur, Nos et Mutamur in illis[9]” (os tempos estão mudando e nós estamos mudando com eles), num sentir diferente, é certo, mas sempre em defesa das hespérides e dos hesperitanos (entenda-se Cabo Verde e caboverdianos).


Ora, um poeta “e pluribus unum” (plural e uno), com uma visão do global, sem perder a geografia do local, defendendo (em português, inglês, francês e latim) a cidadania do humanismo e a dignidade da sua mátria hesperitana, com pergaminhos de reconhecimento em vários pontos do globo – um poeta, dizia, com esta dimensão, engrandece o nosso ser, fecunda e vitaliza o nosso existir, quer nas ilhas hesperitanas, quer nas achadas, cidades e ribeiras de Cabo Verde, quer em qualquer ponto do mapa, com todas as cores e harmonia do arco-íris.

 Há que entender e interpretar, de forma crítica, a poética de José Lopes, de acordo com o sentir, com os valores e com a estética e as preocupações da sua época. E se assim o fizermos, poderemos dizer que a oração do poeta não foi em vão, quando, no poema “ Batendo à Porta”, p. 21,  ele suplica:

Da Torre de Marfim onde viveis, Poetas!
À porta, vem bater um que é da Hespéria oriundo.
Como vós naufragou no Mar de Dôr do mundo
E sentiu o travor das lágrimas secretas...

(…)

Ó Cisnes lmortais! dai-me uma sombra, à entrada
Venho de muito longe, andei a Longa Estrada!
Abri! Sou, como vós,— mendigo do Ideal!


A poesia de José Lopes, esse gigante da arte de Minerva e “da Hespéria oriundo”, fez-me sentir a dor do seu tempo, “as secretas lágrimas vertidas”, a universalidade e inclusão do seu pensamento, o sentido do seu verbo e da sua sintaxe, o chão hesperitano da sua mensagem e a grandeza de um ideal que, como um iluminado precoce, chegou a antever a dignidade das suas ilhas respeitadas, como acontece no Jardim das Hespérides, ainda que no derradeiro momento da sua vida.

Por isso, nós é que lhe pedimos para que nos deixeis entrar na Torre de Marfim por si sonhado e arquitetado, “beijar o pórtico jucundo e profundo do [vosso] Palácio Azul” e inclinar-nos, em profundo recolhimento e reconhecimento, ao pé do Monumento literário que nos legou.

Obrigado José Lopes. Vós sois, seguramente, um dos nossos Cines Imortais. Só que o humanismo da vossa arte não nada apenas no mar de canal e nem somente no tão celebrado telurismo étnico, mas também aspira a outros oceanos, para além da cortina que separa as hespérides do lado de lá, como que a querer ser compreendido e confundido com a imensidão de um universo inconsútil, sem a exclusão das ilhas, sem a fronteira entre os continentes.

Nota Final
Por tudo o que ficou dito, a poética de José Lopes não só honra como engrandece a literatura caboverdiana e universal: pela beleza, pela elevação, pela elegância, pela leveza, pela temática, pela cidadania, pela universalidade, pelo humanismo, atributos estes que só uma poética de grande envergadura pode ter.
Eu devo penitenciar-me por só agora, da minha suposta “torre de marfim”, ter podido escutar o “bater à porta” do poeta da “Hespéria oriundo, sentir a sua poesia e achar o seu pensamento”. Por isso, para mim, ele tem um lugar de destaque, à sombra do grande PEDESTAL, do grande MONUMENTO que é a LITERATURA CABOVERDIANA e UNIVERSAL.
Como eu, muitos se deixaram levar pela cantiga dos que diziam que os pré-claridosos, com exceção de Pedro Cardoso e Eugénio Tavares (cultores, respetivamente, do crioulo e da morna), eram alienados e desenraizados.
Agradeço a Academia Caboverdiana de Letras que, ao pedir-me para prefaciar a obra, deu-me a oportunidade, não só de ouvir a “oração” de José Lopes, mas sobretudo de dar-me conta do quanto a minha geração (e não só) foi prejudicada com a propaganda desinformada de que os “pré-claridosos” eram desenraizados e não tinham a dignidade, sequer, para serem os precursores das gerações literárias, a eles subsequentes, devendo contentar-se apenas com o estatuto de antecessores.
Pelo encontro que tive com Jardim das Hespérides, ficou-me a certeza, sem nenhuma réstia de dúvida, que a poética de José Lopes engrandece a nossa literatura, engrandece a língua portuguesa e as literaturas nela moldadas. Por isso, peço às instituições do ensino e às associações culturais de Cabo Verde que façam tudo para que a geração anterior à claridade e o sentir do seu tempo sejam conhecidos, interpretados e avaliados com justiça, com conhecimento e com humanismo.

                                                                                  Março de 2017
                                                                                   Manuel Veiga




[1] “Que caminhos para a poesia caboverdiana? Antigos e recentes debates e controvérsias sobre a identidade literária caboverdiana” in  Navegações, Porto Alegre, v. 4, n. 1, p. 93, jan./jun. 2011
[2] A expressão metafórica do sentido de existir na Literatura Cabo-verdiana contemporânea: João Varela, Corsino Fortes e José Luís Tavares, Tese de doutoramento, 2013, p.151.


SECCO Carmen L.T.R. (org.), 1999. Antologia do mar na poesia africana de Língua Portuguesa do séc. XX: Cabo Verde. Rios de Janeiro: UFRJ.
[5] http://www.infoescola.com/literatura/soneto/
[6]  Existe m ainda as seguintes rimas:  cruzada ou alternada, quando o primeiro verso rima com o terceiro, e o segundo com o quarto; emparelhada, quando o primeiro verso rima com o segundo e o terceiro co o quarto; encadeada ou interna, quando palavras que estão no fim rimam com as que estão no interior do verso; misturadas, quando não há uma ordem determinada; versos brancos ou soltos, quando não têm rima (cf. wikipédia).
[7]  Conferir o Mito Hesperitano atrás referido na bibliografia da nota 4.
[8] O Presidente James Monroe é um pan-americanista que, em 1823, no Congresso dos EUA, se insurgiu contra a colonização do Continente americano pelos europeus.
[9] Poema  homólogo, dedicado aos Drs. Roberto Martins e Adriano Duarte Silva