terça-feira, 28 de dezembro de 2021

O QUE É A PADRONIZAÇÃO?

 Alguém, sabendo que eu me interesso pelas “coisas da língua”, colocou-me a pergunta, em epígrafe.

 

Eis a minha resposta: PADRONIZAÇÃO é a interiorização, a socialização e a consensualização, numa comunidade linguística, de construções gramaticais, de palavras e de expressões próprias de uma língua ou de suas variantes geográficas, ou de domínios outros, dessa mesma língua, bem como ainda do modelo de alfabeto e de escrita.

No caso do nosso crioulo, com variantes que cobrem as nove ilhas habitadas, a padronização será a interiorização, a socialização e a aceitação de particularidades linguísticas dessas variantes. Por exemplo, no interior de Santago diz-se “téta rixu”, correspondente, em Santanton a “brasa gerrotxóde”.

 

Ora, no dia em que os santiaguenses interiorizarem e aceitarem o “brasa gerrotxóde”, e os santantonenses, por sua vez, interiorizarem e aceitarem “téta rixu” (ainda que com adaptação fonética (téta rije), nesse dia, ou nessa altura, se pode dizer que se deu a padronização das duas expressões.

 

Aguém poderá dizer que isto é “sonhar acordado”. Responderei dizendo: se antes da Independência alguém me dissesse que, em Santiago, um dia encontraríamos tanto a expessão “menina rei di bunita” como “menina bunita pa frónta”, eu diria ao meu interocutor que estava a sonhar acordado. Hoje, após a mobilidade social que se deu no pós-Indepencia, as duas expressões co-habitam, pacificamente, em Santiago.

Acontece que essa padronização não se dá por geração espontânea. Ela só pode dar-se com uso prolongado e com a socialização das duas expressões, através da comunicação oral, do ensino, do uso na comunicação social, na administração formal, na escrita, na literatura, nas artes e na cultura.

 

Isto significa que a padronização não se fixa por decreto, mas sim pela interiorização e consensualização. O linguista-estudioso analisa a abrangência e a consistência de tal consensualização e propõe que a palavra ou expressão sejam consideradas padronizadas pela entidade competente. Assim sendo, a padronização é mais um trabalho da cidadania do que de poderes públicos, e as ilhas que quiserem que a sua variante entre no crioulo padrão têm que investir social, cultural, cientifica e pedagogicamente na sua variante. Quem souber investir "no mercado social e cultural, na na publicidade técnica e científica" da sua variante ganhará a batalha da padronização.

 

Espero ter respondido a pergunta do meu interlocutor.

Dezembro de 2021, Manuel Veiga

 

segunda-feira, 27 de dezembro de 2021

A PADRONIZAÇAO DO CABOVERDIANO NO CONTEXTO DE VARIANTES

  

Alguns amantes da nossa língua materna levantam a questão de saberem como será possível o processo de padronização, tendo em conta as variantes existentes, e como conceber o material didático, de forma sustentável, sem prejudicar as variantes locais e sem comprometer o magistério do crioulo em nenhuma ilha.

Antes de mais, a existência de variantes é mais uma dádiva do que um problema. Ela, se bem conduzida, representa uma possibilidade de termos um crioulo unificado rico, dúctil, maleável, com assinalável plasticidade, uma espécie de arco-íris linguístico.

 

Mas como isso será possível?

 

Não se vai fazer “djagasida desordenada” de variantes. Se assim o fizermos, a iguaria linguística seria intragável.

 

O mesmo não acontece se:

 

1)    Tomarmos como bases, para o processo de padronização e de elaboração de material didático, as duas variedades, com força globalizante, na medida em que são compreendidas, faladas e aceites em mais do que uma ilha. É um facto que a expressão da ilha de Santiago e a da ilha de S. Vicente constituem as duas variedades a que nos estamos referindo.

 

2)    Uma vez definidas as duas variedades, com tendência globalizante, há que enriquecê-las, ao Norte e ao Sul, com as respetivas especificidades pertinentes e representativas das variantes locais de cada ilha (a variante de S Vicente com as especificardes das ilhas do Norte e a variante de Santiago com as especificidades das ilhas do Sul). Simultaneamente, mas de forma mais lenta, dar-se-á, também, a padronização entre as duas variedades globalizantes.

 

        Esta será a estratégia nacional e governamental da política linguística.

 

3)    Haverá porém, uma estratégia local de desenvolvimento linguístico. A partir do material didático elaborado com base nas variedades globalizantes (S Vicente e Santiago), haverá adaptação em cada ilha onde o ensino parte da variante local respetiva, mas com o horizonte aberto em relação às variedades globalizantes. O professor, em cada ilha, deverá conhecer a respetiva variante. O material didático já confecionado nas duas variedades servir-lhe-á de arquétipo e de inspiração para ensinar a variante local e despertar a curiosidade dos alunos em relação às variedades globalizantes.

 

4)    Com essa metodologia, haverá dois polos de elaboração de material didático, mas com nove experiências, a nível da didática.

 

5)    A padronização (num processo de muitos anos), vai dar-se a nível Sul-Sul, a nível Norte-Norte e a nível Norte-Sul, de forma sustentável, abrangente e com poupança de recursos materiais.

 

6) O Estado é chamado a investir nas variedades globalizantes. As ilhas (municípios, instituições locais, sectores de criatividade cultural e artística, cidadão, em geral) são chamadas a investir, primeiro na variante local e, num segundo momento, querendo, nas variedades globalizantes (sempre em contraponto com as variantes locais).

7) Deve-se deixar liberdade a uma ilha que quiser investir apenas na variante local, arcando com a responsabilidade de os respetivos alunos não dominarem, depois, o caboverdiano oficial e que terá por base as duas variedades globalizantes, enriquecidas com o que é específico e representativo em todas as outras variantes.

 

8) Deve-se deixar inteira liberdade à ilha ou ilhas que entenderem não investir no crioulo porque, na sua ótica, o mesmo não leva a lado nenhum. Porém, terão a responsabilidade de, mais tarde, aceitarem que a concorrência laboral opte por quem tiver competência linguística nas línguas oficiais da República.

 

9) Uma nota final: a variante, variantes ou variedade do crioulo que forem mais usadas na comunicação oral, na comunicação social; que tiverem mais trabalhos nos domínios da cultura, da arte e da literatura; que ousarem fazer mais estudos científicos gramaticais, lexicográficos e outros; que massificarem o ensino da língua materna, seguramente, contribuirão mais, também, no processo de padronização. A padronização não se faz com blablá, com recalques, com ciúmes, com regionalismos doentios, com ignorância ofensiva. Ela é um trabalho mais da cidadania engajada do que do Governo. Este apenas deve fazer o que a cidadania não pode fazer. Quem quiser ver a sua variante valorizada que trabalhe para que isto aconteça.

 

Esta a minha opinião. Quem tiver melhor alternativa, séria, competente, responsável e operacional, que a manifeste.

Dezembro de 2021, Manuel Veiga

 

quarta-feira, 22 de dezembro de 2021

KATIKATI PA GRAN BIRA SPIGA

 

 

NÓTA PRÉVIU

 

PAMODI?
Algen di nha relason familiar fla-m: “fórti  titlu stranhu”. Un di nhas néta, di 6 anu di idadi, rabida pa mi, komenta: “Kel-la, gó, vovó, N ka sabe é kusé, é trankadu, dimás, pa mi”.

Ta kontise ki, “Katikati pa Gran Bira Spiga” é un metáfora. Na verdadi, azágua di afirmason y valorizason di nos língua kriolu é un kaminhada kunpridu, ku txeu difikuldadi, ku kurva y kóntra-kurva, ta bai manenti-manenti, divagar, é sértu, mas ku speransa y diterminason.

Katikati” é un monéma ki ta inkarna sentidu di difikuldadi, di luta konstanti y permanenti, di perseveransa y diterminason, unbês-bai.

Gran pa Bira Spiga” é un otu metáfora agríkola. Labrador ta símia un gran pa dipôs transforma na un spiga, ti intxi ngarnel. Óki kel-la kontise é pamodi azágua é fadjadu.

Anton, luta permanenti, konstanti, inda ki lepeté-lepeté, pa afiramson y valorizason di nos língua é sima “katikati na kriolu pa gran bira spiga”, pa si afirmason y valorizason globaliza, lijitimiza, ganha forsa y spreson, na tudu nos rinkon lokal, amás na téra-lonji.

“Kebra rótxa pa skulpi”, formal y informalmenti, un kriolu  auténtiku, unifikadu y riku, é un nisisidadi identitáriu anbiental.

Ideia di “kebra rótxa” é, tanbe, metáfora di difikuldadis, txeu, ka poku, ki nu ta infrenta, ki nu sa-ta infrenta. Fundamentalmenti, es ta razumi na tres aspétu:

1) Aseitason di un alfabétu konsensual;

2) Skrita unifikadu, na kontestu di variantis;

3) Padronizason linguístiku, sen sakrifika kes dos variedadi di dimenson globalizanti, pamodi es ta papiadu y es ta konprendedu, razoavelmenti, na más di ki un ilha, mas tanbe sen dispreza variantis matrisial, di kada ilha, na ses partikularidadis pertinenti y raprizentativu, pamodi, lokalmenti, ses forsa kultural y identitáriu é grandi.

É na un enjenharia di “katikati pa gran bira spiga”,  di “kebra rótxa pa skulpi un ideia”, di  futifuti pa kuskús subi na bindi” ki kriolu unifikadu, asumidu y valorizadu, formal y informalmenti,  ta vense batalha di si afirmason.

Tudu kel-li é razon pamodi  N skodje  titlu ki N da, inbóra, pa uns el é stranhu y, pa otus, el trankadu, dimê-divéra.

 

                                                                  Dizénbru di 2021                                                                                               

                                                                       Manuel Veiga

 

 

terça-feira, 14 de dezembro de 2021

KABUVERDI NHA KAZA UNIVÉRSU NHA MUNDU [1]

 

   

 

Nha naturéza

É banku ku prétu stramadu na kunpanheru

É Nórti ku Sul nbrasadu y solidáriu

É umanu, animal y vegetal, entr’es ta djunta mon

É material, mineral y astral ta sirbi umanidadi

É ambiental, spiritual y selestial ta djobe pontu di ekilíbriu

É subi ku dixi ladera, ta fandata justisa y sabedoria

É jornada kunpridu y disgetós ta baskudja serenidadi

 

Na mininénsia y adolesénsia

Skóla ofisial konta-m kasí, N pensa éra si

Es fla-m, N kuda verdadi, ma Kabuverdi k’ Áfrika

 

Na juventudi, kusas stranhu nbrudja-m stangu, maria-m kabésa

Dúvida, txeu ka poku, obriga-m fandata undi staba verdadi

N subi Nórti, N dixi Sul, N trabesa Lésti ku Oésti preokupadu

Diversiddadi mostra-m kaminhu di fonti, undi agu ká sabodjadu

N bebe ti N basta sedi, la me N diskubri nha singularidadi:

Kabuverdianu-afrikanu, pó di téra, sidadon di mundu

 

É trokadu kel-li ki mi é kriolu-afrikanu-transnasional

Y  afirmason di ex-Pr. Sénghor, foi pa mi un lus na Praia dizértu:

Le Future de la civilisation est créole

Ta kontise ki nha Téra nase kriolu, globalizadu

Dili  ki  kriolu, sivilizason di futuru, já  é oji

Infilismenti, propaganda rasista, na 5 azágua, sén bes kontadu

El ben ku si majistériu di spadja Fé y uni Inpériu.

El dispreza língua ku tradison di Téra, si Inu ku bandera el inpo-nu

 

Ku konsiénsa sakedu na petu, nha povu luta

Txeu gentis móre di fómi, na prizon ô na géra

Mas, nos bandera nu tinha ki finka, nos Inu nu tinha ki kanta

É si ki Liberdadi nase radiante y bisós, na azágua di 1975

“ Déntu  sol ka ta murutxa, déntu d’ agu ta da rabénta

 

Kel-li, própi, ki é nha naturéza, kran ka sukundidu

Kuzinhadu y tenpradu na djagasida di Nórti ku Sul

Labadu y karixadu na agu di nha rubera, na mar di imensidadi

Ttrokadu kel-li, Kabuverdi é nha Kaza; Univérsu é nha Mundu

 

Kredu ô ka kredu, tudu pabia ten pamodi

Si bu ka kre si, suguramenti, bu jornada, inda, sta na pé di subida

Un dia bu al sai txada, bu al diskubri ma “dja, ka ta disdja” :

 Móna ku Cidade Velha dja é Patrimóniu di Umanidadi dja.

 

                                                                                     (2020


[1] Omenájen pa Luana, nha netinha ki, ku 5 anu, di féria na Mindélu, maravilhada ku movimentus di sidadi, el volta pa si mãi, el fla-l: Praia, nha Kaza; S. Visenti, nha Mundu!

 

sexta-feira, 10 de dezembro de 2021

DECLARAÇÃO DE PRAIA

 

APOIO À CANDIDATURA DO LEGADO-DOCUMENTAL-ESCRITO

DE A. CABRAL A MEMÓRIA-MUNDO DA UNESCO

 

Tendo em conta a importância histórica, cultural, filosófica, política, pedagógica e diplomática do legado-documental-escrito de Amílcar Cabral, os participantes do  Seminário Internacional sobre o Legado Teórico de A. Cabral, decidiram aprovar a presente DECLARAÇÃO de APOIO À CANDIDATURA desse rico legado ao projeto  Memória-Mundo da UNESCO”.

A mesma abarca os seguintes pontos: caraterização do projeto Memória Mundo; razões por que Cabral reúne os requisitos exigidos; alguns testemunhos a favor do legado de A. Cabral; apelo às autoridades, caboverdianas e Bissau-guineenses, no sentido de atribuírem importância máxima  à candidatura em pauta.

O extenso legado, consubstanciado na obra teórica e na ação política, faz de Amilcar Cabral um dos maiores pensadores africanos de todos os tempos, sendo que foi considerado, em 2020, pela prestigiada revista BBC World Histories Magazine como uma das figuras mais relevantes da história da humanidade.

“O Registo da Memória do Mundo é um projeto da UNESCO iniciado em 1992 com o objetivo de identificar e preservar documentos e arquivos de grande valor histórico”.

De acordo com as Diretrizes para a Salvaguarda da Memória-Mundo (p. 27-36), a candidatura pode ser apresentada pelo Governo (através do Comité Nacional para a Memória do Mundo), por uma Fundação ou ONG e, até, por personalidades a quem pertence a memória a preservar, sendo certo que uma candidatura feita através do referido Comité Nacional tem maior probabilidade de ser admitida.

Amílcar Cabral como humanista, homem de cultura, poeta, estratega militar, pedagogo e diplomata deixou um importante legado, mundialmente reconhecido, e importa preservá-lo, valorizá-lo e divulga-lo. Vários são os testemunhos sobre Cabral e sobre o seu legado. Eis alguns:

Pedro Pires (Combatente da Liberdade da Pátria, ex-Presidente da República, Presidente da FAC)

“Cabral, sendo o maior de nós todos, era também um pouco de todos nós…

A obra de Cabral é a resultante da concentração num só homem de um conjunto invulgar de aptidões e dotes individuais, de entre as quais avultava uma extraordinária percepção da realidade social e uma opção sempre coerente em prol das causas justas que, inclusivamente, já se encontra em poesias de tempo em que era estudante liceal – e da sua capacidade de sintetizar, elaborar e traduzir em fórmulas claras, em exposições simples ou em injunções precisas a ‘acção colectiva’ de toda uma geração de luta (CC:693).

 

Léopold Sédar Senghor (Antigo Presidente do Senegal)

«Em Cabral, a teoria e a prática andaram sempre de mãos dadas, em perfeita simbiose. Como costumava dizer, “a prática fecunda a teoria” e daí a necessidade de “pensar para agir e agir para pensar melhor”  e que «formulou uma teoria da libertação nacional que, do seu ponto de vista, não se esgota com a proclamação da independência formal, com hino e a bandeira, e a natural substituição dos dirigentes, mas, antes se prolonga no processo de libertação e desenvolvimento das forças produtivas nacionais que ele tão bem caracterizou ao longo da sua obra e designou de luta contra o neocolonialismo» (UL 1:6)

 

Mahtar Mbow (Antigo Dir. Geral da UNESCO):

“A ideia central de Amílcar Cabral, segundo a qual é preciso ‘pensar com as nossas próprias cabeças’, … esteve subjacente a todas as [suas] concepções…. Porque pensar com as nossas próprias cabeças é assumir, com conhecimento de causa, a plenitude das nossas responsabilidades…” (CCE:73-74).

 

António Guteres (Sec. Geral das N. Unidas)

Para o atual Secretário-Geral das Nações Unidas, Amílcar Cabral “Considerou-se a si próprio um ‘soldado da ONU’. Fê-lo, creio, por entender haver uma convergência de pontos de vista e de ideais entre a sua luta e a razão de ser central das Nações Unidas…(IAC: 17 e 18). 

Diz ainda o Eng. António Guterres, que, no seu livro de memórias, ‘A Ponta da Navalha’, o jornalista francês Gérard Chaliand conta que quando disseram a Nelson Mandela ‘tu és o maior’, este terá replicado, com a profundidade que o caraterizava, ‘não, o maior é Cabral (IAC:18).

É tendo em conta o principal ativo deixado por Cabral (a Independência da Guiné e de Cabo Verde e  as sementes lançadas para outras Independências em África); é considerando, ainda, a importância transversal do seu legado humanista, cultural, ético, político, filosófico e estratégico para a Guiné e Cabo Verde, para a África e o Mundo  que, nós os participantes do Seminário sobre o Legado Teórico de Amílcar Cabral, nos congratulamos com o projeto de candidatura desse legado à Memória do Mundo da UNESCO, e apelamos aos Governos de Cabo Verde  e da Guiné-Bissau,  aos respetivos Comités Nacionais para a Memória do Mundo para que  atribuam importância e prioridade máximas a essa candidatura. De igual modo, lançamos um apelo às instituições nacionais, aos académicos, professores e investigadores, aos países amigos e parceiros nossos para, em colaboração com entidades da UNESCO, responsáveis pelo programa Memória do Mundo, abraçarem esta causa.

 

Praia, aos 9 de Dezembro de 2021




 

terça-feira, 7 de dezembro de 2021

 

 

MORNA PATRIMÓNIO
CRIOULO MATRIMÓNIO

(no Chão Musical de Manuel d’Novas)

 

Esta obra é um Monumento sobre a Alma Caboverdiana.

Manuel d’Novas, metaforicamente, através dos seus múltiplos acordes melódicos, soube projetar e caracterizar esse magnífico Monumento.

Coube a César Augusto Monteiro, através da sua sensibilidade etnomusicológica, o ensejo de apresentar-nos a arquitetura e a simbologia do “constructo” melódico, poético e cultural do insigne trovador-vate, da ilha do Monte Cara.

Este posfácio, sem a pretensão de esgotar a mensagem telúrica, simbólica e histórica das diversas composições do poeta-trovador, analisa algumas das metáforas por ele evocadas, no seu cancioneiro.

O título desse posfácio é:  Morna Património / Crioulo Matrimónio no Chão Musical de Manuel d’Novas.

Num universo de algumas centenas de páginas, César Monteiro fala-nos da alma caboverdiana, magistralmente arquitetada, retratada e representada por Manuel d’Novas, através de um matrimónio feliz e simbólico em que os nubentes são a Morna e o Crioulo, sendo os principais convidados o Milho e o Mar.

 

No poeta-trovado do Monte Cara, o Milho, o Mar e a Morna, pelo matrimónio com o crioulo, constituem o triângulo da nossa identidade, uma identidade sofrida, uma identidade amada, uma identidade construída e em construção, uma identidade formada e formatada, uma identidade em rede e no processo de uma nova formatação; uma identidade aberta, realizada e no processo de realização que a produção musical de Manuel d’Novas (e a de tantos outros criadores, compositores e intérpretes) souberam interpretar, de forma magistral, com a cumplicidade e a sabedoria da gramática e do léxico crioulos (Cf.  VEIGA Manuel (2019). “Metáforas do Mar e do Crioulo, do Milho e da Morna, na Idiossincrasia do Ilhéu Caboverdiano”, in O Ilhéu de Cabo Verde, Universidade Católica Editora).

 

Vejamos alguns exemplos, a partir de extratos da criação musical e poética de Manuel d’Novas.

O MILHO, para o ilustrar como metáfora identitária, escolhemos a morna “Dóna Ana”, escrita em 1982 (sendo a transcrição desta e das subsequentes, adaptada ao alfabeto, oficialmente institucionalizado em 2009):

“Ese ê kel krióla sofredora / Ki trabaiá di sol-a-sol / ki ka tive txansa di deskansá un óra / Tudu ta katá midje y pitrol / Ki kriá ses fidju / Bonbudu na kósta / Senpre reziganada y onésta // Konde el morrê / El ka ten pekóde / Suor y kansera / Ta ten es pagode / Nesse vida sofrida / Dóna Ana / Orgulhu di nos vida” ( Cf. p. 695).

 

Ora, a Dóna Ana representa, de forma eloquente, a mulher guerreira caboverdiana, na luta sem trégua, à procura do milho para o sustento do lar, tanto nos anos de estiagem frequente, como nos poucos outros de boas “azáguas”. Com muitos homens, também (aqueles que não seguiram o caminho da emigração) a saga se repete, uma saga que é o elixir de qualquer pecado, na hora do passamento, configurando, assim, um orgulho do sujeito que labuta. Esta é a razão por que o circuito e a faina do milho, simbolicamente, configuram, de alguma maneira, a identidade islenha, na sua expressão material. E o “midje”, aqui referido, é uma das metáforas dessa identidade.

O MAR é outra metáfora identitária nas composições de Manuel d'Novas. Eis como  este trovador de Monte-Cara, através da simbologia do mar, pinta o lado virtual da identidade caboverdiana, configurada pela metáfora da prisão e da liberdade, da partida e do regresso, com mais luz, mais milho e mais cifrão, apesar da ilusão que, muitas vezes, o caminho do mar proporcionou. Vejamos tudo isto em:

Stranjer ê un Iluzãu” – 1966:

“Ó mar k’ta bai di nórte pa sul / Fala-m kes gente na Mindelu / K’ma stranjer ê un iluzãu /

Pamô ese vidinha di mar / Na stranjer ta matá / Es pensá / La na stranjer ê un paraízu / Jente ta ganhá dinher sen kulmise / Sen tormente sen kansera // Ó mar testemunha singular / Ki ta konxê nha sodade / Nese vida di dificuldade // Pa nha kretxeu faze-m un grande favor / Leva-l un beju di-meu / Y bo fla-m el  ku ardor” (Cf. 673).

 

Continuando, em  Nha Korason Txorá”- 1981), escreve:

 

“N pasá na Kabuverde / Ta singá mar azul / Baxu na séu di anil / Tinha un sol brilhante / Ta iluminá ese pérola di osianu / Da-me un sodade / de naha kretxeu / Ma Un Pedí Deus pa konforta-me / Ma tudu kel dor ki tormenta-me / Akel momentu duru y maguóde / Ki faze-m txorá// Éra na kamin pa Brazil / Ta pasá li na aga pa sul / Ta oiá nha térra / Un gritá nha sodade ningen ka ovi-me / Nha gritu perdê na ventu / Nha kurason txorá // Ó gente / Oiá el ka sabê el ê triste / Pasá pertu di bo kretxeu / sen podê da-l un beju” (Cf. p. 698).

 

Nesses dois exemplos encontramos plasmados a identidade virtual do povo caboverdiano onde o mar é testemunha da ilusão da emigração, da dor de saudade, do trabalho pesado e discriminado, da separação de amantes, de casais e de familiares. Porém, esse mesmo mar que é prisão é também ponte; esse mesmo mar que leva para a ilusão da emigração pode ser caminho também que traz algum conhecimento, alguma luz e algum cifrão para o país.

Então, o poeta Jorge Barbosa tinha razão quando dizia que “o mar afoga e afaga”. E o cancioneiro de Manuel d’Novas demonstra esse ser bipartido que é o mar, esse ser bipartido que configura a idiossincrasia bipartida da antropologia caboverdiana.

Da identidade material, corporizada pela metáfora do Milho; da identidade virtual, configurada pela metáfora do Mar; passemos à identidade mestiça e etérea, consubstanciada pela metáfora da Morna. Esta integra as duas outras identidades e projeta-as numa identidade maior, porque mestiça, aberta ao mundo e aos valores do humanismo e da cidadania, sendo por isso endógena, integrada, globalizada, humanizada. É por tudo isto que a Morna é, sem dúvida, pela gramática do crioulo, a metáfora mais complexa da identidade caboverdiana, na medida em que é a síntese da vivência de um povo, dos conhecimentos que tem e que transmite, do diálogo civilizacional que promove e assimila, das tradições que possui e que preserva, da solidariedade que vive e apregoa, da filosofia de vida que exerce e que cultiva, da ética que pratica e defende, do humanismo que promove e advoga.

Tudo o que acima ficou dito pode ser ilustrado na morna Apocalipse, escrita em 1985:

 “Pakê tónte maldade nese mundu / Se no tâ li so pa un segunde // Pakê tónte inamizade / Pa jerá infelicidade /  Pakê tónte indústria de gérra / Se no podê kriá pás na térra (medjor ê pensá) // Ome tâ xeiu di malvadeza / Sen respeitu pa naturéza (ó Deus valê-nu) // Tónte inventu na planéta / Tónte koitóde pa manéta (sen ses óra txegá) // Monopóliu de un kanbada / Ê destinu de nos vida // Kada óra un notísia / Kada minutu un malísia // Dezarmamentu ê konvérsa / Pa bankete y vise-vérsa // Ê fartura nun pónta / Ê mizéria n’ote pónta // Mundu tâ piór k’un jogu de “póka”/ Ka bo mandá-me kalá bóka (Un ta dezê verdade) // No ti ta vivê debóxe d’ameasa / Dun flajelu pa tudu rasa // Mundu podia ser ote koza / Vida podia ser kor de róza / Si nos tudu podia juntá mon / Ku Deus y amor na kurason / Ma Bíblia ta flá / Na Apokalipse!” (Cf. p. 682).

Não há dúvida que a Morna, como expressão da identidade mestiça local, humanista, integral e universal, ficou bem patente em Apokalípse. A primeira nota que sobressai é a do humanismo e da razoabilidade: “Porquê tanta maldade neste mundo / Se estamos aqui por só por um segundo / Porquê tanta  falta de amizade / Para gerar infelicidade / Porquê tanta indústrria de guerra / Se a paz está ao nosso alcance / A maldade já tomou conta do espírito humano”.

 

O trovador-poeta constata as tentações e os pecados do devir caboverdiano, do devir universal e tem fé que Deus virá ao nosso socorro. O que ele, pedagogicamente, deseja é uma sociedade mais humana, mais fraternal, mais inclusiva, mais solidária. Não se cala porque sabe que está a dizer a verdade, e é sua obrigação contribuir para que o mundo seja melhor, um mundo onde todos possam ter “pão, voz e vez”, no respeito, na dignidade e na inclusão. E se isto acontecer, já o anunciado apocalipse bíblico deixará de fazer sentido.

 

As Mornas de Manuel d’Novas, e o Apocalipse, em particular, como todas as outras letras do cancioneiro caboverdiano, dão-nos a dimensão humana e antropológica da identidade caboverdiana, uma identidade que tem na universalidade crítica, na crioulidade específica, no humanismo local e global, os fundamentos e a essência da sua expressão e da sua vivência cultural e antropológica. É, ainda, reconhecendo tratar-se de uma das formas mais genuínas e complexas da cultura caboverdiana que em "Nos Mórna" o trovador mindelense lapida estas significativas palavras: "(…) Kaverde sen mórna / Pa mi é térra  sen sol sen kalor / Noiva sen grinalda, vitória sen glória / Di un povu kriston". 

 

Fica assim confirmada a centralidade que Manuel d'Novas atribui à morna, no universo cultural caboverdiano. Se uma "terra sem sol e sem calor" não germina, nem fecunda nenhuma semente; se com o casamento de uma "noiva sem grinalda" a festa fica sem graça; se uma vitória sem glória é porque a guerra era injusta ou inaconselhável, o mesmo acontece com uma terra sem morna. Por outras palavras, a morna, para Cabo Verde, é o sol que ilumina e aquece a fertilidade do seu chão; é a grinalda que embeleza e valoriza o seu humanismo; é o troféu ganho, graças à resiliência e resistência na luta vitoriosa contra a escravatura, contra o colonialismo, contra o analfabetismo, contra a fome, contra a estiagem, contra a emigração forçada e discriminada, contra o subdesenvolvimento.

 

É tudo isto que faz da morna a "raínha" da nossa música, um dos elementos centrais do nosso património cultural, da nossa identidade crioula.

 

 

Morna Como Património Universal

Crioulo Como Matrimónio Identitário

 

Impõe-se referir a uma outra valência da Morna que a legitima, ainda mais, ao pretendido estatuto de património universal. Trata-se da língua que a veicula e lhe serve de suporte. Estamos a falar do Crioulo (caboverdiano).

 

Na verdade, se a Morna se configura como património, a língua que a veicula, preserva e inova é o crioulo. De pouco serviria a Morna como Património se não houvesse a fecundidade do crioulo que não só a configura, preserva e salvaguarda, como também a serve de canal de comunicação, e de chão para a fecundação de novas sementes. O casamento celebrado entre as duas entidades, quando a harmonia é perfeita e o “djunta-mô” é inclusivo, traz a fecundidade de um amor partilhado, cujo nome de batismo é a identidade caboverdiana.

 

Eugénio Tavares, B. Léza e outros poetas compositores deram-se conta desta dimensão e escreveram as suas mornas em crioulo.

 

Cesária Évora, a nossa diva maior, desde muito cedo, descobriu o sentido da morna como património, e a fecundidade do crioulo, como matrimónio, tendo-a interpretado sempre nessa língua, levando Cabo Verde ao mundo, nas suas asas, e trazendo o mundo a Cabo Verde para o deleite com os seus acordes.

 

Manuel d’Novas, e tantos outros poetas e compositores, face à relação matrimonial que o crioulo tem para com a morna, fizeram dessa língua o meio privilegiado da sua criação artística. Abro aqui um parêntese para dizer que Manuel d'Novas (o mesmo acontecia com B. Léza) algumas vezes, por uma questão de sonoridade, segundo Baltasar Lopes, chega a introduzir realizações do crioulo de Santiago no de S. Vicente. Ao que parece, as variantes onde a terminação vocálica é explícita, sem a erosão provocada por vogais mudas, se prestam melhor à sonoridade e à acentuação musical. É por isso que, na morna Nha Korason Txorá, diz-se "Baxu na séu di anil", em vez de "debóxe de un séu de anil";  "Na tudu kel dor ki tormenta-m", em vez de "Na tude kel dor ke tormentá-me". Ainda na morna Apocalipse afirma-se: "Ó Deus valê-nu". Logica e estruturalmente, deveria ser "Ó Deus valê-ne". Porém, a pragmática sempre aconselharia a prolação utilizada pelo trovador-poeta. Alguns poderão querer ver nisto uma tentativa de aproximação entre as duas variantes, o que seria um contributo para a padronização. É uma possibiliade que não podemos confirmar, pelo menos por enquanto.

 

A importância que Manuel d’Novas atribuía ao crioulo era tal que, não só escreveu as suas mornas exclusivamente nessa língua, como, na distante década de 1970, constatando que a intelectualidade caboverdiana tinha algumas reservas face à valorização da escrita, no crioulo, escreveu ao Diretor do Jornal “Voz di Povo” uma carta, inteiramente em crioulo, alertando os seus compatriotas para a importância do crioulo como língua materna e como veículo e suporte privilegiados não só da morna, mas também da mundivivência caboverdiana. Por outras palavras, para Manuel d’Novas, se a morna é património, nas três dimensões das metáforas acima referidas, só o é porque celebrou um matrimónio fecundo, dinâmico e criativo com o crioulo, língua da sua expressão e representação. E se assim é, o estatuto de Morna como Património Universal ficará incompleto se o do Crioulo, como espaço e chão onde se dá o Matrimónio entre os nubentes (que configuram identidade da morna) não estiver no mesmo patamar de reconhecimento, por Cabo Verde, em particular, e pelo mundo, em geral.

 

Este trabalho é, também, "um olhar" e uma homenagem que gostaria de prestar à figura ímpar do panteão cultural e musical caboverdiano. Agradeço ao autor desta obra que proporcionou-me o ensejo para prestar a minha singela homenagem a este caboverdiano que soube amar, valorizar e interpretar a alma caboverdiana.

 

                                                                                                                   Agosto de 2019

                                                                                                                      Manuel Veiga