domingo, 16 de abril de 2017

A Poética de José Miranda (Um Magistério de Fé e Amor, Uma Pedagogia de Humanismo e Patriotismo)



                                                               Por Manuel Veiga

Aprendi a respeitar e a admirar o José Miranda não pelo conhecimento direto, mas pelas referências altamente elogiosas que dele ouvia por parte dos meus pais e de alguns dos seus alunos, entre os quais, uma irmã minha.
Exerceu o magistério por largos anos e é nessa profissão, bem como na vivência de uma fé profunda e arreigada que ele se sente mensageiro da palavra, particularmente quando faz uso da arte de Minerva para veicular as suas preocupações, inquietações e ensinamentos.
Escolhemos dois aspetos da sua poética para o retratar como mensageiro da palavra, através da sua e amor, e como pedagogo do humanismo e do patriotismo.

·      Comecemos com a sua mensagem de fé e de amor:

José Miranda é um homem de fé. Tudo o que é e faz tem a moldura e os ingredientes da sua profunda fé. É assim que, no poema “Mudjer di Kabuverdi” (p.19), exorta-a dizendo:

Lenbra ma ómis di mundu interu,/ Tudu es é igoísta.//Pur isu, dj’es poi Diós dun banda,/ P’es ta sâsia ses vontadi.

Para o autor, Deus é razão de tudo, é riqueza suprema, é fonte de todas as alegrias, de todas as realizações, tanto as humanas como as divinas. Daí ele se insurgir contra a desinteligência dos homens que vêm colocando Deus de lado para dar vazão ao seu próprio egoísmo, abusando da fraqueza feminina, em vez de a amar como companheira e parceira, tanto nos bons como nos maus momentos.
E se Deus formou a mulher da costela do próprio homem, então

Bo é nha anju da guarda/ Oázis di nha viaji na dizértu,/ Bérsu na nha noti grandi,/ Séu di nha alma n’es mundu.// Ama sin, mas iziji amor./ Fika linda, pura y santa.// Ka bu dexa bu nbala na kantiga/ D’es mundu nganador/ Ki ta pô-bu nkosta nun kantu/ Y sen gostu di bu kontínua kanta”.

A mensagem do poeta é para a mulher amar e ser amada, e não se deixar embalar nas falsas promessas deste mundo enganador. E para que isto aconteça, o poeta deixa um conselho: sem abandonar Deus, e sem perder a fé, sendo pura e santa, “Buska más informasan/…Y pusta na formasan”.
A escrita de José Miranda podia ser considerada, em grande parte, uma poética de fé, no feminino. Tal é a importância da relação com o Transcendente, do amor e do lugar que a mulher mãe, esposa, filha, namorada, madrinha e companheira, ocupam na sua poesia. Daí a pedagogia da sua mensagem no sentido dela abrir os olhos para a santidade, cuidar da beleza física, sim, para poder ficar “linda, pura y santa”, mas também buscar a informação e apostar na formação.
Para aprofundar essa mensagem de fé e amor, no poema “Mulher Ontem e Hoje” (p. 20) exorta:

“Não te esqueças que tu és/ A Imagem da Mãe dos Céus.// Do teu ventre nasce Deus»,/ Nasce «Pedro»,/ Nasce «Adão»...// Seja Virgem ante Eva.// São apenas conselhos meus.// Passear ou dançar nua,/ Não te leva à parte alguma”.

O poeta compara a mulher com a Virgem Maria e lembra-a que o seu ventre é um templo sagrado que, à semelhança do que aconteceu com Deus Menino, pode gerar outros infantes, portadores da bênção divina. Por isso, volta a chamar a atenção das mulheres: “Passear ou dançar nua,/ Não te leva à parte alguma”.
O aviso do poeta vem na linha da exortação de Santo Agostinho quando diz: “ama e faz o que quiseres”. Ora, quem ama respeita o seu corpo e o dos outros, como templo de Deus. De acordo com o Novo Testamento, quem ama não faz ao outro o que não gostaria que a ele fizessem. Quem ama conjuga os verbos “amar e respeitar” em todos os tempos, modos e pessoas. E este exercício é divino, mas também é humano.
Para o autor, o desrespeito do nosso corpo como templo sagrado, tanto por parte do homem como da mulher, “não os leva a parte alguma”. Não sendo ingénuo, ele sabe que esse respeito, o tal que leva a “amar e fazer tudo o resto”, só é possível quando a fé e o amor coexistem. Então, se há um objetivo na poética de José Miranda, esse objetivo é o de fazer de cada ser humano, homem ou mulher, um templo onde reinam, num salutar convívio, a fé e o amor.

·      Uma outra mensagem que a poética de José Miranda veicula emerge da importância conferida ao humanismo e ao respeito pelos direitos fundamentais da pessoa humana.
A mensagem que aqui ressalta está muito ligada à vivência da fé e do amor. Porém, se na primeira mensagem a tónica é posta no aspeto sobrenatural e espiritual, nesta nova mensagem a tónica é colocada no humanismo e patriotismo das relações sociais.
É assim que no poema “A Capelinha Estragou Fechadura” (p.34), o poeta volta a exortar:

“O amor é belo/ quando belo é o par que se ama (…) // As rosas lindas dos nossos canteiros/ são protegidas por ruins espinhos (…) // Menina africana (…) // Que o teu sacrário seja sagrado (…) // Trabalha, estuda, organiza e defende-te (…) // Quem ama, não mata”.

Aqui, o humanismo do autor emerge da forma como vê o amor. Este só é belo e só existe quando “belo é o par que se ama”. No amor, humanamente concebido, se dá e se recebe, e nele as lindas rosas estão rodeadas de espinhos. Ou seja, assim como não há roseira e rosas sem espinhos, não há, também, amor humano sem atritos. Porém, é preciso saber colher as pétalas, sem se deixar ferir pelos espinhos. E isto só é possível quando o amor é partilhado, quando há transparência e tolerância no relacionamento, quando a donzela se respeita e se faz respeitar, quando o mancebo ama sem desrespeitar ou sufocar o amor.
Para melhor se fazerem respeitar, o poeta exorta as donzelas ao trabalho, ao estudo, à organização e a autodefesa, porque, nem sempre, os mancebos estão preparados para honrar o princípio de Santo Agostinho. Muitas vezes, há a tentação da “carne”, na ausência de um amor partilhado.
O poeta, para dar exemplo de um amor partilhado e moldado segundo o princípio de Santo Agostinho, eis como fala da sua esposa em “Un Puéma, Un Amigu di Sénpri, p.55:

“Nes mundu pasajeru,/ Nha séu más altu é bu sedju.// Baxu di Nhordés é bo.// Sen bo mi N ka ningen.// Di dia, bo é tétu d’es lar,/ Di noti, un bérsu di enbalar,/ Undi nha sonhu ta ganha/ Sénpri un nobu vigor,/ Pa gósi y pa bida interu.”

Aqui, o vate, eternamente apaixonado pela mulher amada, confessa a riqueza de um amor partilhado: “Nes mundu pasajeru (…) / Baxu di Nhordés é bo/ sen bo mi N ka nada”.
A esposa é quase divinizada. O lugar que ela ocupa está logo a seguir ao do Ser Supremo que é Deus. Ela quase que se transforma em razão de ser do marido “sen bo mi N ka nada”.
Ora, embora o poeta não diga, o amor pelo ente amado atinge essa elevada dimensão porque ele é correspondido, na mesma medida, a ponto de, estando no mundo passageiro, é capaz de atingir as alturas da mansão celestial. É por isso que, referindo-se à esposa querida, diz: neste mundo passageiro tu és o meu céu, hoje, amanhã e sempre.
A pedagogia do verdadeiro amor é traçada pela própria vivência do vate. É uma pedagogia eficaz na medida em que não se limita a falar do amor apenas a nível de princípios, mas a nível de uma vivência real e na primeira pessoa. É por isso que, falando, ainda, do ente amado, declara: “Di dia, bo é tétu d’es lar, / Di noti un bérsu di enbalar”.
Ora, o teto de uma casa é para agasalhar e proteger das intempéries todos os membros da família. Assim, o amor do casal contagia e se projeta no amor de todos os integrantes do lar, isto é de toda a família. Por outras palavras, um verdadeiro amor do casal é o melhor viveiro para o amor do e no lar. E isto não só é humanamente possível como também é espiritualmente aconselhável, sendo certo que um humanismo equilibrado e vitaminado no lar é fonte, também, de uma fecunda vivência espiritual. Toda a pedagogia do vate vai no sentido de valorizar o humano e aperfeiçoar o espiritual. E isto é uma corrente que perpassa por toda a poesia de José Miranda.
Mas o humanismo do poeta não se restringe apenas à vida no lar. Ele se preocupa também com outros setores da sociedade. No poema “Um de Junho” (p. 56), à semelhança do poema “Criança”, de Jorge Barbosa, o poeta mostra-se defensor dos direitos desta e doutras camadas sociais, quando escreve:

Desde Oriente ao Ocidente,/ Em todos os continentes,/ Toda criança tem direito/ De viver e, estar contente.// Infelizmente, não acontece.../ O interesse da Criança/ Está muito prejudicado.// Muitas perdem esperanças,/ Porque o Homem no seu avanço/ E na fúria das matanças/ Seja com bombas ou lanças,/ Não poupa vida às crianças.// Nós que estamos em liberdade/ E temos possibilidade/ Gritemos cada vez mais forte:/ Não queremos mais morte.// Não queremos mais fome.// Não queremos mais guerra.// Não queremos mais droga.// Não queremos mais roubo,/ Nem prostituição.// Viva a paz.// Viva alegria.// Viva crianças do mundo inteiro”.

É o humanismo do poeta que o leva a constatar que os direitos das crianças, do Oriente ao Ocidente, em todos os continentes, não estão a ser respeitados e reclama a reposição dos mesmos. É este mesmo humanismo que o leva deplorar as guerras, as matanças, o terrorismo, a fome, a corrupção, a insegurança, a droga, a prostituição, a falta de inclusão…
Diríamos que todos os problemas do mundo moderno, tudo o que vai contra a paz, contra a fraternidade, contra a inclusão, contra a qualidade de vida e do ambiente, numa palavra, tudo o que constitui ameaça para a humanidade é objeto de denúncia e de preocupação por parte do escritor-vate.
A sua oficina de poeta inquieto, mais interventor que sonhador, não se restringe apenas aos valores do humanismo. A exaltação e a busca de patriotismo encontra eco permanente na gramática da sua poesia e na poesia da sua gramática. E isto nos leva a entrar no último aspeto da nossa reflexão ou seja:

O Lugar que Pátria ocupa na Poética de José Miranda.
Vivendo nós num mundo globalizado, o sentimento de patriotismo e de identidade nacional e territorial tem sofrido alguma erosão. O mundo já não é uma casa de portas e janelas fechadas, mas sim um campo de horizontes abertos, em todos os sentidos. Assim, a pátria, cada vez mais se vai diluindo nos valores de um humanismo planetário. A tendência parece ir, cada vez, no sentido da edificação de uma entidade que reclama mais da bandeira do humanismo do que da do nacionalismo estreito. É por isso que assistimos à constituição dos Estados Unidos da América, da União Europeia, do projeto da União Africana, da criação das Nações Unidas, da constituição de vários blocos económicos, políticos e culturais, cada vez mais crescente.
Porém, apesar de toda essa tendência globalizante, as diversas nações do mundo continuam a acarinhar e a defender os valores que as particularizam e especificam, na certeza de que o global só existe porque o local resiste e persiste.
A defesa da pátria e dos valores que a enformam encontram um forte eco na poética de José Miranda.
Em carta que o autor me dirigiu, chegou a confessar-me que, face a degradação de valores, tanto os espirituais como os do humanismo e do patriotismo, sentiu a necessidade de exercer uma pedagogia de transmissão e exaltação dos mesmos, numa atitude quase que missionária, particularmente junto da classe juvenil, aquela que é mais suscetível a contravalores e à miragem de pasárgadas e de paraísos ilusórios.
Retomando a pedagogia do patriotismo, sem se esquecer a da fé e do humanismo, no “Poemas de Esperança” (p. 59), o poeta confessa:

“Sou sim,/Uma criança.../Um homem pequenino.//Dentro de mim há uma ânsia/De ser um sino que anuncia a paz.// (…) Dentro de mim há a esperança/De justiça no meu país.// … há a intenção/Contra o pecado e a tentação.// … Somos plantas em crescimento,/…A esperança e o alimento/Da nossa Pátria, Cabo Verde.// Somos todos continuadores/Dos nossos pais e professores.//Seremos luz, água e energia,/Deste mundo cego…”.

O poeta se transforma numa criança pequenina, sem malícia nem maldade, confessando querer ser o mensageiro da paz, da justiça, da luta contra o pecado e a tentação, a esperança e o alimento da pátria, continuador dos pais e professores, esplendor de luz, fonte de água e de energia num mundo egoísta e carente dos valores que enformam tanto a fé, como o humanismo e o patriotismo.
E porque nesta parte é o patriotismo que prende a nossa atenção, vamos deter-nos na mensagem em que o poeta invoca a esperança de ser o alimento da pátria “Cabo Verde”, sendo continuador dos pais e professores. É por isso que manifesta a vontade de ser luz que ilumina as nossas tradições, água que fecunda e aprofunda as nossas raízes.
Sendo um filho de Assomada, o poeta insurge-se contra o visual acinzentado da sua cidade, devido à falta de pintura na parte exterior dos edifícios. Eis como ele convida os seus patrícios, particularmente os emigrantes, a cuidarem das respetivas habitações, já que isto é também um sinal de patriotismo:

“Filho ou filha que vem de fora,/ Se contribuis pelo meu aumento/ Não te satisfaça o meu crescimento.// Não pares apenas no ferro e cimento.// Esforça-te e dê os acabamentos.// Por dentro, sim, para o teu descanso/ Também, por fora, para o meu encanto.// Convida turistas a virem contigo/ Gozar um pouco do meu clima de ouro/ Que Europa e América e nenhum outro Possui,/ O que só é possível, se com a Natureza/Juntardes a mão e me derdes a beleza.// Sou Assomada,/ … Estou nua!.../ Contudo, sou tua...”.

Falando da sua cidade Assomada, diz o poeta: “Estou nua/ contudo sou tua”. Sendo uma cidade tão bonita, no alto de um planalto, embalada e cortejada, dia e noite, pelo Pico de Antónia, pelo Monte Birianda e a Cordilheira da Serra Malagueta, com um clima doce e ameno que faz inveja tanto na Europa como nas Américas, porque será que os seus próprios filhos te deixam nua e abandonada, pergunta o poeta.
Um patriota é também aquele que se interessa pela valorização do seu meio ambiente, e o lar é o centro desse mesmo meio. Não faz sentido cuidar apenas do seu interior e abandonar o exterior. Por isso, o poeta pede aos conterrâneos que se esforcem um pouco mais com os acabamentos para que o encanto da sua cidade seja maior. E se o fizerem, a Cidade de Assomada revestir-se-á de encanto, atrairá mais turistas e o seu crescimento vai rimar com o seu desenvolvimento, ficando mais reforçado o sentido da nossa cidadania e do nosso patriotismo.
No poema “A Cidade de Assomada no Planalto de Mato Engenho” (p. 206), reafirma os deveres e obrigações que os  santacatarinenses deveriam assumir perante aquela que é  “Terra querida, santa e saudável”.
Continuando a exprimir a sua estranheza, o poeta, umas vezes exclama e outras vezes interroga e se interroga, às vezes ainda ordena:
“Como serias forte se os teus grandes e formados quadros,/Melhor de ti se lembrassem!”
Prosseguindo, reafirma:

 “… um filho educado, não se esquece de amar e servir os pais”.

Continuando:

“… Porque é que de ti se esqueceram?!/ Onde estão os teus meninos?/ Onde estão os teus formados?/ Onde estão os teus quadros?!/ Onde param teus rapazes e tuas moças, a quem tanto apostaste?/ Com arquitetos e engenheiros, médicos, juízes e economistas,/ geógrafos e administradores,/ sacerdotes, freiras e pastores,/ cientistas de todas as cores/ E tu, gemendo sob o peso de várias dores…/Todos passam e te veem,/ Nada fazem, nada dizem … ».

E prosseguindo:

“… Assomada, eu te bendigo.// Apesar de nua e parda,/ És brilhante e atraente e, para muitos, até, bendita… // Só falta aos teus cidadãos/ Virar melhor a atenção/ E deitar as suas mãos à tua reconstrução,/ Repondo em ti, com gratidão,/ O fruto da formação recebida, como resposta da educação …// Espero ver-te como as demais,/ uma cidade ornamentada e sobretudo, organizada,/ Ainda enquanto eu viver”.

No poema em análise, o pedido do poeta é quase uma ordem. Num primeiro momento, consta que Assomada seria forte se os seus filhos dela se lembrassem. Depois, com a autoridade de um ancião sábio, proclama que um filho bem-educado nunca deixa de amar e servir os seus pais. Mais à frente, pergunta pelo paradeiro dos muitos quadros de Santa Catarina e em diversos domínios do saber. Constata que apesar de ter contribuído para a formação de muita gente, todos passam por ela, sem a enxergar, sem dizer nem fazer nada.
Apesar de toda essa ingratidão, canta Assomada, sua musa: “… eu te bendigo// apesar de nua e parda”. E em jeito de nota final, exprime o seu maior desejo:

“… Espero ver-te como as demais,/ uma cidade ornamentada e sobretudo, organizada,/ Ainda enquanto eu viver”.

Aqui ficam os sonhos e o desafio de um santacatarinense de fibra, de corpo e coração.
Estou certo que a melhor recompensa que espera de todos os filhos e amigos de Assomada e de Santa Catarina é que cada um, em conformidade com a sua capacidade e força de intervenção, contribua para que esta parcela, que também é Cabo Verde, ocupe no mapa do Arquipélago o seu verdadeiro lugar.
Mais recompensado, ainda, ele ficará se os jovens e menos jovens souberem aproveitar o seu magistério de fé e de amor, a sua pedagogia de humanismo e patriotismo.
E se isso acontecer, terá motivos para dizer que a sua mensagem caiu em boa terra, como aquela de santa Catarina, e que Deus, certamente, abençoará as azáguas, as muitas azáguas da sua/nossa querida Cidade do Planalto, tanto as azáguas da fé e amor, como aquelas de humanismo e patriotismo.

                            Abril de 2016