O CHÃO ONDE
NASCEU O CRIOULO DE CABO VERDE
A César o que é de César…
A história faz-se com factos e não
com impressões, sejam elas nossas ou alheias. Num texto datado de Janeiro de
2016, publicado num blogue da Academia de Ciências Políticas para a
Guiné-Bissau, e veiculado no facebook, em Janeiro de 2018, o senhor Livonildo
Francisco MENDES afirma:
“…todos
os dados indicam que foram os escravos guineenses que deram origem à actual
população de Cabo Verde e, por consequência, ao crioulo que hoje é uma das
línguas oficiais do arquipélago…”.
Mais: no mesmo texto reafirma que:
“… na Guiné-Bissau a língua crioula resulta de contactos políticos e
comerciais entre os portugueses e os povos do Golfo da Guiné (principalmente os
Mandingas e os Fulas) desde a época do Grande-Império Mali, no século XIII”.
É ainda estranha a firmação segundo a
qual a
“…língua
crioula é a que serve de veículo comum entre falantes de dialetos diferentes”.
Digo que esta afirmação é estranha porque o
crioulo só começou a ser língua franca na Giné-Bissau a partir de 1963, com o
início da Luta Armada para a Indpendência,
conduzida pelo PAIGC.
Seria desjável que algum historiador caboverdiano e/ou
guineense, com base em factos, venha repor a verdade histórica da formação dos
crioulos falados em Cabo Verde e na Guiné-Bissau.
Eu, como caboverdiano, formado em linguística,
com algum conhecimento sobre a história do meu povo, senti-me desafiado a dizer
o que penso, escudado em argumentos do historiador António Carreira e em
informações de linguistas como Baltasar Lopes, Marlyse Baptista, Robert
Chaudenson, Jürgen Lang, Jean-Louis Rougé, Nicolas Quint.
Desconheço qualquer fonte histórica
que defende a formação do crioulo falado na Guiné-Bissau já desde o século
XIII.
Segundo Carreira (1982:15), o
descobridor Nuno Tristão terá chegado a Guiné-Bissau em 1446. Porém, face à
insegurança e à hostilidade dos régulos, as feitorias funcionavam a bordo de
barcos e somente a partir do século XVII surgem as primeiras feitorias de
Ziguinchor, Farim, Geba, Fá e Bissau (cf. p. 18).
Ora, se a descoberta da Guiné-Bissau data
de 1446, se as feitorias, em terra firme, datam da segunda metade do século
XVII, se o crioulo resulta do encontro entre o português e as línguas étnicas
da Costa Ocidental africana, como será possível a sua formação já desde o
século XIII, como afirma o senhor Mendes?
Acontece que no século XVII, altura
da fixação de feitorias portuguesas na Guiné-Bissau, o protocrioulo de Cabo Verde já contava com cerca de um século de
existência. E isto se tivermos em conta que, segundo o historiador António
Carreira (1982: 53),
“… a menos de cem anos do achamento existiam em Santiago escravos da
estirpe Jalofa que se entendiam (necessariamente por um pidgin ou um
protocrioulo) com os europeus, e que eram utilizados como intérpretes junto dos
povos do continente”.
Ora, se a descoberta de Cabo Verde
aconteceu em 1460, isto significa que em 1560 já existia, em Cabo Verde um
protocrioulo. Estamos ainda longe do século XVII, altura do estabelecimento de
feitorias na Guiné-Bissau, em terra firme. Isto significa que, historicamente
falando, o crioulo de Cabo Verde antecede o da Guiné-Bissau, em pelo menos um
século.
Assim sendo, a nosso ver, resulta
insustentável a afirmação do senhor Mendes, segundo a qual seriam os escravos
guineenses que deram origem ao povo e ao crioulo de Cabo Verde.
Aliás, é o próprio Carreira (1982:33)
que categoricamente afirma:
“…o crioulo de Cabo Verde começou a ser usado, timidamente, nos ‘rios’
pelos Lançados ou Tangomaos oriundos das ilhas de Cabo Verde no período da
formação das Praças e Presídios”.
Ora, que, como vimos atrás, essas Praças e Presídios, datam da segunda
metade do século XVII, na Guiné-Bissau.
Mais à frente, citando Baltasar
Lopes, Carreira (1982:33) afirma:
“Suponho que o crioulo falado na Guiné é, não o contacto do indígena com o
português, mas sim o crioulo caboverdiano de Sotavento levado pelos colonos
idos do arquipélago…”.
De acordo com o senhor Mendes, o
crioulo terá provindo, principalmente do contacto com os Mandingas e os Fulas.
Ora, acontece que, enquanto o linguista francês Jean-Louis Rougé (2006) destaca
a origem mandiga do crioulo, o linguista alemão Jürgen Lang (2006, 2009)
apresenta vários aspetos morfológicos, sintáticos e semânticos que provam a
grande influência, também, do wolof no crioulo de Cabo Verde.
Segundo o linguista francês Robert
Chaudenson (1992:37), especialista do crioulo da Reunião, a origem dos crioulos
atlânticos e do Oceano Índico, tem por base três unidades: a do tempo, a do
espaço e a da ação.
Relativamente ao tempo, são línguas
muito recentes (séculos 15, 16 e 17 para o de Cabo Verde. Século 17 para os das
Antilhas e os do Oceano Índico). São línguas ainda formadas em pouco tempo.
Face à necessidade de comunicação,
num contexto em que não havia grupos étnicos, mas sim indivíduos provenientes
dos mais variados grupos, o que dificultava a comunicação, na ausência de uma
língua franca, o instinto humano e a capacidade inata da linguagem, em muito
pouco tempo, forjaram um meio de comunicação, com a gramática das respetivas
línguas étnicas e o léxico do português.
Lá onde havia grupos étnicos, com as
respetivas línguas, como na Guiné-Bissau, por exemplo, o surgimento de um
crioulo, necessariamente, levaria muito mais tempo que no caso de Cabo Verde
onde havia indivíduos e não grupos étnicos, propriamente dito. Os indivíduos
pertencentes a etnias diferentes não se entendiam, particularmente os seus
descendentes crioulos que não falavam nem o português, nem as línguas étnicas.
A invenção do crioulo foi verdadeiramente uma necessidade.
Quanto à unidade do espaço, a quase
totalidade dos crioulos se formou nas ilhas, precisamente devido à ausência,
nas mesmas, de grupos étnicos organizados, cultural e linguisticamente.
Quanto à unidade de ação, surgiram em
contexto de dominação (escravatura e colonização), onde o dominador e os
dominados não se entendiam, por possuírem códigos linguísticos diferentes. Ora,
a necessidade urgente e premente de comunicação exigiu a formação de um novo
código linguístico a partir da língua do dominador e das dos dominados. Nessas
circunstâncias (caracterizadas por uma situação limite de comunicação) costuma,
em pouco tempo, nascer uma língua miscigenada, resultante do encontro do léxico
da língua do dominador com a gramática das línguas das classes dominadas. O
produto dessa recriação por parte sobretudo dos mestiços, descendentes da
escrava negra e do dominador branco, e que desconheciam a língua tanto do pai
como da mãe, se convencionou chamar “crioulo”, um código simples, de início, e
que, a pouco e pouco, se complexifica e se autonomiza.
Acontece que a Guiné-Bissau se situa
no continente; as etnias se comunicavam nas respetivas línguas; tudo indica que
não poderiam sentir-se em situações limites de comunicação, exigindo a formação
de uma nova língua. A comunicação com o comerciante branco que vinha e repartia
para o negócio, em barcos-feitoria (pelo menos até ao século XVII), de início,
se processava a partir dos “chalonas” (intérpretes) trazidos de Cabo Verde
(Carreira,1982:30).
Pode-se perguntar por que será que
os escravos guineenses, em vez da imposição das suas línguas étnicas maternas,
preferiram impor o seu crioulo, em Cabo Verde? Por que será ainda que, em
outras paragens, na América Latina e nas Caraíbas, para onde foram levados, não
impuseram o seu crioulo. Por que será que o crioulo se formou em S. Tomé e
Príncipe, que são ilhas, e não em Angola e Moçambique onde a situação social e
linguística era parecida com a da Guiné-Bissau? Naturalmente, a nível
continental havia as línguas étnicas e a dificuldade de comunicação era
sobretudo com colono
branco e não entre os detentores das
respetivas línguas étnicas. Provavelmente, uma de entre essas línguas étnicas
podia servir de língua franca, afastando assim as condições propícias para
formação de um crioulo, como foi o caso de Cabo Verde.
Por tudo isto, a nosso ver, a tese
que cloca a formação do crioulo caboverdiano fora de Cabo Verde carece de
sustentabilidade. Por isso, não a sufragamos. Não obstante, nós os
caboverdianos somos eternamente gratos a todas as etnias, principalmente a
mandinga e a wolof pelas marcas que deixaram na nossa crioulidade, seja a
linguística seja a antropológica.
A terminar, reafirmamos que o crioulo
de Cabo Verde se formou e se consolidou em Cabo Verde, no horizonte temporal
que abrange os séculos XV (início), XVI, XVII, XVIII (consolidação). A partir
de aí entrou na fase de autonomização que ainda perdura. Devemos acrescentar
ainda que na formação do crioulo há duas matrizes, a africana e a lusitana,
como aliás ficou demonstrado no nosso livro Formação do Crioulo – Matrizes
Originárias, 2019, Acácia Editora.
Bibliografia
Específica sobre a origem do CCV
BAPTISTA Marlyse, 2006. "When Substrates
meet superstrate: the case of Capeverdean Creole", In Cabo Verde – Origens
da sua Sociedade e do seu Crioulo. Alemanha,
Gunter Narr Verlag Tübingen.
CHAUDENSON Robert1992. Des Îles, des Hommes, des Langues. Paris,
l’Harmattan.
CARREIRA António, 1982. O Crioulo de
Cabo Verde – Surto e Expansão. Mem
Martins, Portugal. Gráfica EUROPA Lda.
Manuel
Veiga
Cf. O Caboverdiano em 45 Lições, Acácia
Editora, 2021, p, 43-47