quarta-feira, 28 de dezembro de 2022

 

O CHÃO ONDE NASCEU O CRIOULO DE CABO VERDE
A César o que é de César…

 

 

A história faz-se com factos e não com impressões, sejam elas nossas ou alheias. Num texto datado de Janeiro de 2016, publicado num blogue da Academia de Ciências Políticas para a Guiné-Bissau, e veiculado no facebook, em Janeiro de 2018, o senhor Livonildo Francisco MENDES afirma:

“…todos os dados indicam que foram os escravos guineenses que deram origem à actual população de Cabo Verde e, por consequência, ao crioulo que hoje é uma das línguas oficiais do arquipélago…”.

Mais: no mesmo texto reafirma que:

“… na Guiné-Bissau a língua crioula resulta de contactos políticos e comerciais entre os portugueses e os povos do Golfo da Guiné (principalmente os Mandingas e os Fulas) desde a época do Grande-Império Mali, no século XIII”.

É ainda estranha a firmação segundo a qual a

“…língua crioula é a que serve de veículo comum entre falantes de dialetos diferentes”.

Digo que esta afirmação é estranha porque o crioulo só começou a ser língua franca na Giné-Bissau a partir de 1963, com o início da Luta Armada para a Indpendência,  conduzida pelo PAIGC.

Seria desjável que algum historiador caboverdiano e/ou guineense, com base em factos, venha repor a verdade histórica da formação dos crioulos falados em Cabo Verde e na Guiné-Bissau.

Eu, como caboverdiano, formado em linguística, com algum conhecimento sobre a história do meu povo, senti-me desafiado a dizer o que penso, escudado em argumentos do historiador António Carreira e em informações de linguistas como Baltasar Lopes, Marlyse Baptista, Robert Chaudenson, Jürgen Lang, Jean-Louis Rougé, Nicolas Quint.

Desconheço qualquer fonte histórica que defende a formação do crioulo falado na Guiné-Bissau já desde o século XIII.

Segundo Carreira (1982:15), o descobridor Nuno Tristão terá chegado a Guiné-Bissau em 1446. Porém, face à insegurança e à hostilidade dos régulos, as feitorias funcionavam a bordo de barcos e somente a partir do século XVII surgem as primeiras feitorias de Ziguinchor, Farim, Geba, Fá e Bissau (cf. p. 18).

Ora, se a descoberta da Guiné-Bissau data de 1446, se as feitorias, em terra firme, datam da segunda metade do século XVII, se o crioulo resulta do encontro entre o português e as línguas étnicas da Costa Ocidental africana, como será possível a sua formação já desde o século XIII, como afirma o senhor Mendes?

Acontece que no século XVII, altura da fixação de feitorias portuguesas na Guiné-Bissau, o protocrioulo de Cabo Verde já contava com cerca de um século de existência. E isto se tivermos em conta que, segundo o historiador António Carreira (1982: 53),

“… a menos de cem anos do achamento existiam em Santiago escravos da estirpe Jalofa que se entendiam (necessariamente por um pidgin ou um protocrioulo) com os europeus, e que eram utilizados como intérpretes junto dos povos do continente”.

Ora, se a descoberta de Cabo Verde aconteceu em 1460, isto significa que em 1560 já existia, em Cabo Verde um protocrioulo. Estamos ainda longe do século XVII, altura do estabelecimento de feitorias na Guiné-Bissau, em terra firme. Isto significa que, historicamente falando, o crioulo de Cabo Verde antecede o da Guiné-Bissau, em pelo menos um século.

Assim sendo, a nosso ver, resulta insustentável a afirmação do senhor Mendes, segundo a qual seriam os escravos guineenses que deram origem ao povo e ao crioulo de Cabo Verde.

Aliás, é o próprio Carreira (1982:33) que categoricamente afirma:

“…o crioulo de Cabo Verde começou a ser usado, timidamente, nos ‘rios’ pelos Lançados ou Tangomaos oriundos das ilhas de Cabo Verde no período da formação das Praças e Presídios”.

 

Ora, que, como vimos atrás, essas Praças e Presídios, datam da segunda metade do século XVII, na Guiné-Bissau.

Mais à frente, citando Baltasar Lopes, Carreira (1982:33) afirma:

“Suponho que o crioulo falado na Guiné é, não o contacto do indígena com o português, mas sim o crioulo caboverdiano de Sotavento levado pelos colonos idos do arquipélago…”.

De acordo com o senhor Mendes, o crioulo terá provindo, principalmente do contacto com os Mandingas e os Fulas. Ora, acontece que, enquanto o linguista francês Jean-Louis Rougé (2006) destaca a origem mandiga do crioulo, o linguista alemão Jürgen Lang (2006, 2009) apresenta vários aspetos morfológicos, sintáticos e semânticos que provam a grande influência, também, do wolof no crioulo de Cabo Verde.

 

Segundo o linguista francês Robert Chaudenson (1992:37), especialista do crioulo da Reunião, a origem dos crioulos atlânticos e do Oceano Índico, tem por base três unidades: a do tempo, a do espaço e a da ação.

Relativamente ao tempo, são línguas muito recentes (séculos 15, 16 e 17 para o de Cabo Verde. Século 17 para os das Antilhas e os do Oceano Índico). São línguas ainda formadas em pouco tempo.

Face à necessidade de comunicação, num contexto em que não havia grupos étnicos, mas sim indivíduos provenientes dos mais variados grupos, o que dificultava a comunicação, na ausência de uma língua franca, o instinto humano e a capacidade inata da linguagem, em muito pouco tempo, forjaram um meio de comunicação, com a gramática das respetivas línguas étnicas e o léxico do português.

Lá onde havia grupos étnicos, com as respetivas línguas, como na Guiné-Bissau, por exemplo, o surgimento de um crioulo, necessariamente, levaria muito mais tempo que no caso de Cabo Verde onde havia indivíduos e não grupos étnicos, propriamente dito. Os indivíduos pertencentes a etnias diferentes não se entendiam, particularmente os seus descendentes crioulos que não falavam nem o português, nem as línguas étnicas. A invenção do crioulo foi verdadeiramente uma necessidade.

Quanto à unidade do espaço, a quase totalidade dos crioulos se formou nas ilhas, precisamente devido à ausência, nas mesmas, de grupos étnicos organizados, cultural e linguisticamente.

Quanto à unidade de ação, surgiram em contexto de dominação (escravatura e colonização), onde o dominador e os dominados não se entendiam, por possuírem códigos linguísticos diferentes. Ora, a necessidade urgente e premente de comunicação exigiu a formação de um novo código linguístico a partir da língua do dominador e das dos dominados. Nessas circunstâncias (caracterizadas por uma situação limite de comunicação) costuma, em pouco tempo, nascer uma língua miscigenada, resultante do encontro do léxico da língua do dominador com a gramática das línguas das classes dominadas. O produto dessa recriação por parte sobretudo dos mestiços, descendentes da escrava negra e do dominador branco, e que desconheciam a língua tanto do pai como da mãe, se convencionou chamar “crioulo”, um código simples, de início, e que, a pouco e pouco, se complexifica e se autonomiza.

Acontece que a Guiné-Bissau se situa no continente; as etnias se comunicavam nas respetivas línguas; tudo indica que não poderiam sentir-se em situações limites de comunicação, exigindo a formação de uma nova língua. A comunicação com o comerciante branco que vinha e repartia para o negócio, em barcos-feitoria (pelo menos até ao século XVII), de início, se processava a partir dos “chalonas” (intérpretes) trazidos de Cabo Verde (Carreira,1982:30).

Pode-se perguntar por que será que os escravos guineenses, em vez da imposição das suas línguas étnicas maternas, preferiram impor o seu crioulo, em Cabo Verde? Por que será ainda que, em outras paragens, na América Latina e nas Caraíbas, para onde foram levados, não impuseram o seu crioulo. Por que será que o crioulo se formou em S. Tomé e Príncipe, que são ilhas, e não em Angola e Moçambique onde a situação social e linguística era parecida com a da Guiné-Bissau? Naturalmente, a nível continental havia as línguas étnicas e a dificuldade de comunicação era sobretudo com colono

branco e não entre os detentores das respetivas línguas étnicas. Provavelmente, uma de entre essas línguas étnicas podia servir de língua franca, afastando assim as condições propícias para formação de um crioulo, como foi o caso de Cabo Verde.

Por tudo isto, a nosso ver, a tese que cloca a formação do crioulo caboverdiano fora de Cabo Verde carece de sustentabilidade. Por isso, não a sufragamos. Não obstante, nós os caboverdianos somos eternamente gratos a todas as etnias, principalmente a mandinga e a wolof pelas marcas que deixaram na nossa crioulidade, seja a linguística seja a antropológica.

A terminar, reafirmamos que o crioulo de Cabo Verde se formou e se consolidou em Cabo Verde, no horizonte temporal que abrange os séculos XV (início), XVI, XVII, XVIII (consolidação). A partir de aí entrou na fase de autonomização que ainda perdura. Devemos acrescentar ainda que na formação do crioulo há duas matrizes, a africana e a lusitana, como aliás ficou demonstrado no nosso livro Formação do Crioulo – Matrizes Originárias, 2019, Acácia Editora.

 

 

 

Bibliografia Específica sobre a origem do CCV

 

BAPTISTA Marlyse, 2006. "When Substrates meet superstrate: the case of Capeverdean Creole", In Cabo Verde – Origens da sua Sociedade e do seu Crioulo. Alemanha, Gunter Narr Verlag Tübingen.

CHAUDENSON Robert1992. Des Îles, des Hommes, des Langues. Paris, l’Harmattan.

CARREIRA António, 1982. O Crioulo de Cabo Verde – Surto e Expansão. Mem Martins, Portugal. Gráfica EUROPA Lda.

 

Manuel Veiga

Cf. O Caboverdiano em 45 Lições, Acácia Editora, 2021, p, 43-47

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