terça-feira, 7 de dezembro de 2021

 

 

MORNA PATRIMÓNIO
CRIOULO MATRIMÓNIO

(no Chão Musical de Manuel d’Novas)

 

Esta obra é um Monumento sobre a Alma Caboverdiana.

Manuel d’Novas, metaforicamente, através dos seus múltiplos acordes melódicos, soube projetar e caracterizar esse magnífico Monumento.

Coube a César Augusto Monteiro, através da sua sensibilidade etnomusicológica, o ensejo de apresentar-nos a arquitetura e a simbologia do “constructo” melódico, poético e cultural do insigne trovador-vate, da ilha do Monte Cara.

Este posfácio, sem a pretensão de esgotar a mensagem telúrica, simbólica e histórica das diversas composições do poeta-trovador, analisa algumas das metáforas por ele evocadas, no seu cancioneiro.

O título desse posfácio é:  Morna Património / Crioulo Matrimónio no Chão Musical de Manuel d’Novas.

Num universo de algumas centenas de páginas, César Monteiro fala-nos da alma caboverdiana, magistralmente arquitetada, retratada e representada por Manuel d’Novas, através de um matrimónio feliz e simbólico em que os nubentes são a Morna e o Crioulo, sendo os principais convidados o Milho e o Mar.

 

No poeta-trovado do Monte Cara, o Milho, o Mar e a Morna, pelo matrimónio com o crioulo, constituem o triângulo da nossa identidade, uma identidade sofrida, uma identidade amada, uma identidade construída e em construção, uma identidade formada e formatada, uma identidade em rede e no processo de uma nova formatação; uma identidade aberta, realizada e no processo de realização que a produção musical de Manuel d’Novas (e a de tantos outros criadores, compositores e intérpretes) souberam interpretar, de forma magistral, com a cumplicidade e a sabedoria da gramática e do léxico crioulos (Cf.  VEIGA Manuel (2019). “Metáforas do Mar e do Crioulo, do Milho e da Morna, na Idiossincrasia do Ilhéu Caboverdiano”, in O Ilhéu de Cabo Verde, Universidade Católica Editora).

 

Vejamos alguns exemplos, a partir de extratos da criação musical e poética de Manuel d’Novas.

O MILHO, para o ilustrar como metáfora identitária, escolhemos a morna “Dóna Ana”, escrita em 1982 (sendo a transcrição desta e das subsequentes, adaptada ao alfabeto, oficialmente institucionalizado em 2009):

“Ese ê kel krióla sofredora / Ki trabaiá di sol-a-sol / ki ka tive txansa di deskansá un óra / Tudu ta katá midje y pitrol / Ki kriá ses fidju / Bonbudu na kósta / Senpre reziganada y onésta // Konde el morrê / El ka ten pekóde / Suor y kansera / Ta ten es pagode / Nesse vida sofrida / Dóna Ana / Orgulhu di nos vida” ( Cf. p. 695).

 

Ora, a Dóna Ana representa, de forma eloquente, a mulher guerreira caboverdiana, na luta sem trégua, à procura do milho para o sustento do lar, tanto nos anos de estiagem frequente, como nos poucos outros de boas “azáguas”. Com muitos homens, também (aqueles que não seguiram o caminho da emigração) a saga se repete, uma saga que é o elixir de qualquer pecado, na hora do passamento, configurando, assim, um orgulho do sujeito que labuta. Esta é a razão por que o circuito e a faina do milho, simbolicamente, configuram, de alguma maneira, a identidade islenha, na sua expressão material. E o “midje”, aqui referido, é uma das metáforas dessa identidade.

O MAR é outra metáfora identitária nas composições de Manuel d'Novas. Eis como  este trovador de Monte-Cara, através da simbologia do mar, pinta o lado virtual da identidade caboverdiana, configurada pela metáfora da prisão e da liberdade, da partida e do regresso, com mais luz, mais milho e mais cifrão, apesar da ilusão que, muitas vezes, o caminho do mar proporcionou. Vejamos tudo isto em:

Stranjer ê un Iluzãu” – 1966:

“Ó mar k’ta bai di nórte pa sul / Fala-m kes gente na Mindelu / K’ma stranjer ê un iluzãu /

Pamô ese vidinha di mar / Na stranjer ta matá / Es pensá / La na stranjer ê un paraízu / Jente ta ganhá dinher sen kulmise / Sen tormente sen kansera // Ó mar testemunha singular / Ki ta konxê nha sodade / Nese vida di dificuldade // Pa nha kretxeu faze-m un grande favor / Leva-l un beju di-meu / Y bo fla-m el  ku ardor” (Cf. 673).

 

Continuando, em  Nha Korason Txorá”- 1981), escreve:

 

“N pasá na Kabuverde / Ta singá mar azul / Baxu na séu di anil / Tinha un sol brilhante / Ta iluminá ese pérola di osianu / Da-me un sodade / de naha kretxeu / Ma Un Pedí Deus pa konforta-me / Ma tudu kel dor ki tormenta-me / Akel momentu duru y maguóde / Ki faze-m txorá// Éra na kamin pa Brazil / Ta pasá li na aga pa sul / Ta oiá nha térra / Un gritá nha sodade ningen ka ovi-me / Nha gritu perdê na ventu / Nha kurason txorá // Ó gente / Oiá el ka sabê el ê triste / Pasá pertu di bo kretxeu / sen podê da-l un beju” (Cf. p. 698).

 

Nesses dois exemplos encontramos plasmados a identidade virtual do povo caboverdiano onde o mar é testemunha da ilusão da emigração, da dor de saudade, do trabalho pesado e discriminado, da separação de amantes, de casais e de familiares. Porém, esse mesmo mar que é prisão é também ponte; esse mesmo mar que leva para a ilusão da emigração pode ser caminho também que traz algum conhecimento, alguma luz e algum cifrão para o país.

Então, o poeta Jorge Barbosa tinha razão quando dizia que “o mar afoga e afaga”. E o cancioneiro de Manuel d’Novas demonstra esse ser bipartido que é o mar, esse ser bipartido que configura a idiossincrasia bipartida da antropologia caboverdiana.

Da identidade material, corporizada pela metáfora do Milho; da identidade virtual, configurada pela metáfora do Mar; passemos à identidade mestiça e etérea, consubstanciada pela metáfora da Morna. Esta integra as duas outras identidades e projeta-as numa identidade maior, porque mestiça, aberta ao mundo e aos valores do humanismo e da cidadania, sendo por isso endógena, integrada, globalizada, humanizada. É por tudo isto que a Morna é, sem dúvida, pela gramática do crioulo, a metáfora mais complexa da identidade caboverdiana, na medida em que é a síntese da vivência de um povo, dos conhecimentos que tem e que transmite, do diálogo civilizacional que promove e assimila, das tradições que possui e que preserva, da solidariedade que vive e apregoa, da filosofia de vida que exerce e que cultiva, da ética que pratica e defende, do humanismo que promove e advoga.

Tudo o que acima ficou dito pode ser ilustrado na morna Apocalipse, escrita em 1985:

 “Pakê tónte maldade nese mundu / Se no tâ li so pa un segunde // Pakê tónte inamizade / Pa jerá infelicidade /  Pakê tónte indústria de gérra / Se no podê kriá pás na térra (medjor ê pensá) // Ome tâ xeiu di malvadeza / Sen respeitu pa naturéza (ó Deus valê-nu) // Tónte inventu na planéta / Tónte koitóde pa manéta (sen ses óra txegá) // Monopóliu de un kanbada / Ê destinu de nos vida // Kada óra un notísia / Kada minutu un malísia // Dezarmamentu ê konvérsa / Pa bankete y vise-vérsa // Ê fartura nun pónta / Ê mizéria n’ote pónta // Mundu tâ piór k’un jogu de “póka”/ Ka bo mandá-me kalá bóka (Un ta dezê verdade) // No ti ta vivê debóxe d’ameasa / Dun flajelu pa tudu rasa // Mundu podia ser ote koza / Vida podia ser kor de róza / Si nos tudu podia juntá mon / Ku Deus y amor na kurason / Ma Bíblia ta flá / Na Apokalipse!” (Cf. p. 682).

Não há dúvida que a Morna, como expressão da identidade mestiça local, humanista, integral e universal, ficou bem patente em Apokalípse. A primeira nota que sobressai é a do humanismo e da razoabilidade: “Porquê tanta maldade neste mundo / Se estamos aqui por só por um segundo / Porquê tanta  falta de amizade / Para gerar infelicidade / Porquê tanta indústrria de guerra / Se a paz está ao nosso alcance / A maldade já tomou conta do espírito humano”.

 

O trovador-poeta constata as tentações e os pecados do devir caboverdiano, do devir universal e tem fé que Deus virá ao nosso socorro. O que ele, pedagogicamente, deseja é uma sociedade mais humana, mais fraternal, mais inclusiva, mais solidária. Não se cala porque sabe que está a dizer a verdade, e é sua obrigação contribuir para que o mundo seja melhor, um mundo onde todos possam ter “pão, voz e vez”, no respeito, na dignidade e na inclusão. E se isto acontecer, já o anunciado apocalipse bíblico deixará de fazer sentido.

 

As Mornas de Manuel d’Novas, e o Apocalipse, em particular, como todas as outras letras do cancioneiro caboverdiano, dão-nos a dimensão humana e antropológica da identidade caboverdiana, uma identidade que tem na universalidade crítica, na crioulidade específica, no humanismo local e global, os fundamentos e a essência da sua expressão e da sua vivência cultural e antropológica. É, ainda, reconhecendo tratar-se de uma das formas mais genuínas e complexas da cultura caboverdiana que em "Nos Mórna" o trovador mindelense lapida estas significativas palavras: "(…) Kaverde sen mórna / Pa mi é térra  sen sol sen kalor / Noiva sen grinalda, vitória sen glória / Di un povu kriston". 

 

Fica assim confirmada a centralidade que Manuel d'Novas atribui à morna, no universo cultural caboverdiano. Se uma "terra sem sol e sem calor" não germina, nem fecunda nenhuma semente; se com o casamento de uma "noiva sem grinalda" a festa fica sem graça; se uma vitória sem glória é porque a guerra era injusta ou inaconselhável, o mesmo acontece com uma terra sem morna. Por outras palavras, a morna, para Cabo Verde, é o sol que ilumina e aquece a fertilidade do seu chão; é a grinalda que embeleza e valoriza o seu humanismo; é o troféu ganho, graças à resiliência e resistência na luta vitoriosa contra a escravatura, contra o colonialismo, contra o analfabetismo, contra a fome, contra a estiagem, contra a emigração forçada e discriminada, contra o subdesenvolvimento.

 

É tudo isto que faz da morna a "raínha" da nossa música, um dos elementos centrais do nosso património cultural, da nossa identidade crioula.

 

 

Morna Como Património Universal

Crioulo Como Matrimónio Identitário

 

Impõe-se referir a uma outra valência da Morna que a legitima, ainda mais, ao pretendido estatuto de património universal. Trata-se da língua que a veicula e lhe serve de suporte. Estamos a falar do Crioulo (caboverdiano).

 

Na verdade, se a Morna se configura como património, a língua que a veicula, preserva e inova é o crioulo. De pouco serviria a Morna como Património se não houvesse a fecundidade do crioulo que não só a configura, preserva e salvaguarda, como também a serve de canal de comunicação, e de chão para a fecundação de novas sementes. O casamento celebrado entre as duas entidades, quando a harmonia é perfeita e o “djunta-mô” é inclusivo, traz a fecundidade de um amor partilhado, cujo nome de batismo é a identidade caboverdiana.

 

Eugénio Tavares, B. Léza e outros poetas compositores deram-se conta desta dimensão e escreveram as suas mornas em crioulo.

 

Cesária Évora, a nossa diva maior, desde muito cedo, descobriu o sentido da morna como património, e a fecundidade do crioulo, como matrimónio, tendo-a interpretado sempre nessa língua, levando Cabo Verde ao mundo, nas suas asas, e trazendo o mundo a Cabo Verde para o deleite com os seus acordes.

 

Manuel d’Novas, e tantos outros poetas e compositores, face à relação matrimonial que o crioulo tem para com a morna, fizeram dessa língua o meio privilegiado da sua criação artística. Abro aqui um parêntese para dizer que Manuel d'Novas (o mesmo acontecia com B. Léza) algumas vezes, por uma questão de sonoridade, segundo Baltasar Lopes, chega a introduzir realizações do crioulo de Santiago no de S. Vicente. Ao que parece, as variantes onde a terminação vocálica é explícita, sem a erosão provocada por vogais mudas, se prestam melhor à sonoridade e à acentuação musical. É por isso que, na morna Nha Korason Txorá, diz-se "Baxu na séu di anil", em vez de "debóxe de un séu de anil";  "Na tudu kel dor ki tormenta-m", em vez de "Na tude kel dor ke tormentá-me". Ainda na morna Apocalipse afirma-se: "Ó Deus valê-nu". Logica e estruturalmente, deveria ser "Ó Deus valê-ne". Porém, a pragmática sempre aconselharia a prolação utilizada pelo trovador-poeta. Alguns poderão querer ver nisto uma tentativa de aproximação entre as duas variantes, o que seria um contributo para a padronização. É uma possibiliade que não podemos confirmar, pelo menos por enquanto.

 

A importância que Manuel d’Novas atribuía ao crioulo era tal que, não só escreveu as suas mornas exclusivamente nessa língua, como, na distante década de 1970, constatando que a intelectualidade caboverdiana tinha algumas reservas face à valorização da escrita, no crioulo, escreveu ao Diretor do Jornal “Voz di Povo” uma carta, inteiramente em crioulo, alertando os seus compatriotas para a importância do crioulo como língua materna e como veículo e suporte privilegiados não só da morna, mas também da mundivivência caboverdiana. Por outras palavras, para Manuel d’Novas, se a morna é património, nas três dimensões das metáforas acima referidas, só o é porque celebrou um matrimónio fecundo, dinâmico e criativo com o crioulo, língua da sua expressão e representação. E se assim é, o estatuto de Morna como Património Universal ficará incompleto se o do Crioulo, como espaço e chão onde se dá o Matrimónio entre os nubentes (que configuram identidade da morna) não estiver no mesmo patamar de reconhecimento, por Cabo Verde, em particular, e pelo mundo, em geral.

 

Este trabalho é, também, "um olhar" e uma homenagem que gostaria de prestar à figura ímpar do panteão cultural e musical caboverdiano. Agradeço ao autor desta obra que proporcionou-me o ensejo para prestar a minha singela homenagem a este caboverdiano que soube amar, valorizar e interpretar a alma caboverdiana.

 

                                                                                                                   Agosto de 2019

                                                                                                                      Manuel Veiga

 

 

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