quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

DIA INTERNACIONAL DAS LÍNGUAS MATERNAS


Uma Interpelação Cívica

Celebra-se hoje, 21 de Fevereiro, o Dia Internacional das Línguas Maternas. No quadro desta importante efeméride, julgámos pertinente interpelar o Ministério responsável pelo setor da Educação sobre o que tem feito e sobre o que pensa fazer, em matéria de política linguística, em prol da Língua Materna.
Devemos lembrar a todos que:
• O artigo 9º.2 da Constituição ordena que o Estado promova: “… as condições para a oficialização da língua materna caboverdiana, em paridade com a língua portuguesa” (sendo certo que o melhor local para a promoção dessa paridade é na escola, é no ensino);
• O artigo 9.3 da Constituição estipula que “Todos os cidadãos nacionais têm o dever de conhecer as línguas oficiais e o direito de usá-las” (ora, a escola e o ensino são espaços privilegiados para ministrarem esse conhecimento);
• O artigo 7º.i, dessa mesma Constituição define, como tarefa fundamental do Estado “ Preservar, valorizar e promover a língua materna e a cultura caboverdianas”. Acontece que é na escola e no ensino onde melhor essa valorização e promoção podem processar-se.
• O decreto legislativo número 2/2010, de 7 de Maio, consagra no seu artigo 9º, 2: “Com o objetivo de reforçar a identidade cultural e integrar os indivíduos na coletividade em desenvolvimento, o sistema educativo deve valorizar a língua materna, como manifestação privilegiada da cultura”.
Tendo em conta o acima exposto, gostaríamos de perguntar ao Ministério responsável pela política de Educação em Cabo Verde:
1. O que tem feito em matéria de política de defesa e valorização da língua materna caboverdiana?
2. A existência de um Gabinete de Estudo para refletir sobre a situação da língua materna, propor a melhor metodologia de ensino, acompanhar e avaliar as experiências-piloto de ensino existentes, preparar o material didático, é fundamental, diríamos mesmo que é indispensável. Será que esse Gabinete já existe? Em não existindo, haverá a predisposição para o criar, tão breve quanto possível?
3. A Uni-CV promoveu de 2010-2013 um Curso de Crioulística e Língua Caboverdiana, tendo formado 10 mestres e 5 pós-graduados. Gostaríamos de saber: o Curso de Crioulística vai ter continuidade? Os docentes formados foram devidamente aproveitados no âmbito da política de valorização da Língua Materna?
Ao Ministério responsável pela área da Cultura gostaríamos de louvar todo o esforça havido em matéria de promoção de estudos, de colóquios, de legislação e de incentivos sobre a problemática da língua materna. Impõe-se uma única pergunta: o Prémio Pedro Cardoso foi instituído em 2009 para promover a criação literária na Língua Materna. Acontece que o mesmo deixou de ser atribuído. Há quem especule que o montante desse e o de outros prémios culturais foram desviados para a promoção internacional da música. Como não dá para acreditar nessa especulação, gostaríamos de saber o que é que está na base da não atribuição e se existe a determinação de os mesmo voltarem a ser atribuídos?
A todos um excelente Dia Internacional das Línguas Maternas.

sábado, 17 de fevereiro de 2018

Homenagem a Luís Romano

A Fome: Um Apontamento a Partir de Famintos, de Luís Romano

Quando, há já algum tempo atrás, na década de 80, começámos a ler, pela primeira vez, a gesta dramática do “Povo das Ilhas sem Nome”, através da histórica obra de Luís Romano – Famintos - não tivemos a força suficiente nem a coragem necessária para aguentar o realismo nu e cru dos acontecimentos narrados, a evocação eloquente e agressiva da linguagem utilizada, a proliferação de imagens e de situações confrangedoras, em cada frase, em cada folha e em cada capítulo do livro.
Deveras impressionados, pusemos o livro de lado, na certeza de nunca mais voltar a reviver os quadros tristes e lúgubres dos capítulos lidos, dos capítulos que não fomos capazes de ler.
Porém, os anos passaram e, no nosso interior, a insatisfação de não termos podido “devorar” os “Famintos” ia ganhando corpo. De adiamento em adiamento, não havia forma de encontrar um pretexto suficientemente forte para vencer a inércia adquirida e as náuseas do primeiro contacto.
Eis, porém, que surge uma oportunidade: a comemoração do quadragésimo aniversário do chamado “Desastre de Assistência”, em 1989.
Com o coração apertado, e com a razão torturada, retomámos a leitura e, assim, podemos chegar ao fim de os “Famintos”. A mesma dificuldade que tivemos em fazer a sua leitura vamos ter agora em fazer a sua apresentação.
A todos pedimos compreensão e tolerância pelo realismo da linguagem que vamos reproduzir, e pelo reviver de acontecimentos dramáticos que tiveram por sujeito o povo destas Ilhas.
Na apresentação desse trabalho de Luís Romano, falaremos, essencialmente, do drama da fome, do despotismo da força e da ganância dos morgados e comerciantes.
Para começar, gostaríamos de chamar a vossa especial atenção para o desafio com que o autor termina a sua obra (p.340):    
      
Quero ser pedra/para não pensar/para não sentir…/ Desejo mais do que nunca/ montanhas vivas sem bocas deformadas dos aflitos”.

Este desabafo é deveras significativo, sobretudo se considerarmos que não há coração nem razão que possam resistir à crueldade dos factos que vão seguir.
Escrito na década de 1940, o seu autor pôde, clandestinamente, levar o manuscrito para um país do continente africano, o que possibilitou a sua publicação no Brasil em 1962 e em Portugal somente depois da “revolução dos cravos”, em 1975. Nele, “a negra bandeira da fome” flutua desde a primeira até a última página.
 Se a unidade literária do livro se dilui, como o próprio autor o admite através do encadeamento ou sobreposição dos diversos quadros da fome, o mesmo não acontece quanto ao seu conteúdo. Com efeito, desde a primeira até a última página, o drama da fome é uma constante. Uma fome que encontramos estampada na cara cadavérica do cabouqueiro Paulino, na miséria gritante do camponês Cosme, na situação humilhante da “mocrata” Rosenda, no desfecho desesperante da história de Nina de Tuda…
Paulino era um asmático que mal podia levantar a sua própria ferramenta de trabalho. Sufocado pela tosse que o torturava a cada instante e a cada golpe que desferia à terra, numa procura desesperada de agradar ao capataz Lúcio e de garantir o seu dia de trabalho, não era homem para facilmente se vergar diante do “destino”. Entretanto, a moléstia crónica que se apossara do seu corpo frágil e subalimentado era mais forte do que a sua tamanha vontade de poder garantir naquele dia aziago o tão escasso pão para a sua família. Assim (p. 16),

“…a tosse tapou-lhe a garganta. De novo, largou a picareta. Ninguém se atrevia a desviar o rosto ou apresentar-lhe auxílio. Lúcio (o capataz) observava. Paulino abriu o mais que pôde a boca e caiu, estorcendo-se, as calças manchadas de urina”.

Tentando recompor-se, o capataz-carrasco que interpretara o incidente como uma manifestação de malandrice não se fez esperar: com o punho em riste (p. 16),

“… bateu nos dentes do cabouqueiro. Sangue desceu-lhe em fios pelo pescoço, enodoando a camisa… Paulino. Sem opor resistência, deixou-se rolar ao pé, de borco, os dedos a enterrarem-se pela boca, num esforço de desentupir os pulmões”.

Não podendo resistir à força indomável desse pulmão que já se encontrava em estado adiantado de podridão, Paulino, impotente e desamparado, viu o seu dia de trabalho cortado. Porém, não se desanima e, na manhã seguinte, com uma fé inquebrantável, volta à azáfama de todos os dias, mas, novamente (p.41),  
     
“…tornou a cair sobre a terra, tomado de tremuras, a encolher-se, com as mãos apoiadas na ponta do umbigo. Novo ataque de asma veio… abriu a boca, os olhos fitaram o companheiro e depois vidraram-se. A urina molhou-lhe as calças para então Paulino ficar tranquilo, os olhos imenso”.

A história de Paulino era também a história de Pedro, Paulo, Manuel, João … todos eles condenados a única “liberdade” na vida, o de morrer antes do tempo, depois de tudo de tudo terem hipotecado, vendido ou sacrificado: a saúde, os amigos, a dignidade das filhas, os sentimentos, a casa, a terra…
É assim que o autor nos apresenta, por exemplo, o lavrador Cosme que, a troco do grão do milho para saciar a sua fome e a da família, sentiu-se obrigado a vender por três contos e duzentos o que lhe custara vinte e cinco contos de reis. Daí que esmagado pelo peso da situação em que se encontrava, dizia (p.47): 

      “Sr. Joãozinho comprou foi canseira de fábrica onde trabalhei anos sem conta. Ele comprou                minha casa onde nasceram meus meninos, tudo quanto ajuntei debaixo de suor e fadiga… Ele              não  comprou minha horta. Foi meu suor…” que ele adquiriu e por um preço irrisório.

Extremamente magoado com a ganância e a insensibilidade do comprador dos seus bens, Cosme, ao receber ordens do regedor para deixar a terra e a casa que doravante passariam a pertencer ao Sr. Joãozinho, não pôde aguentar tão duro golpe e só se curvou perante as ordens da autoridade, quando já se encontrava (48) “…envolto num pano onde as moscas vinham poisar”.
Igualzinha à história do lavrador Come é também a do camponês Agostinho. Também ele tinha a sua horta que era – dizia- (172)

“…como se fosse a minha (própria) filha fêmea. Tem muito suor meu caído nos regos e nas covas das plantinhas que semeei…Nenhum dinheiro é capaz de comprar aquele amor que a gente tem pelas coisas sem valor que criámos com a ideia num descanso para os últimos dias da vida”.

Entretanto, conhecendo o valor da Chã-de-Cinta onde nasceram todos os filhos de Agostinho e onde por cada umbigo do filho enterrado “…nasceu uma frondosa mangueira”, o comerciante da zona, frente a uma extrema miséria do camponês, aceitou por hipoteca aquilo que para Agostinho era a razão de existir.
Não satisfeito com a simples hipoteca, o comerciante que ia fornecendo milho para sustento da família de Agostinho resolveu pregar uma triste partida ao seu freguês, escondendo a carta do filho emigrante, com quinze contos de reis. Desejando não mais restituir a horta do camponês, chamou-o e convidou-o a dispor-se da sua loja como melhor entendia. Cego pela fome, o pobre Agostinho contraiu dívidas que os quinze contos que depois veio a receber já não chegavam para levantar a hipoteca e, deste modo, perdeu a sua hortinha, sem no entanto ter podido resolver o problema da fome e da miséria.
A inclemência do “destino” e a crueldade dos que detinham o poder administrativo e económico iam assim ceifando vidas inocentes e desamparadas; iam torturando o coração das mães desesperadas e dos pais impotentes; iam manchando e conspurcando a pureza nobre das donzelas pobres e abandonadas.
Com efeito, nessa aldeia da morte pintada pelo autor de “Famintos”, a crueldade da situação era tal que indescritível se torna a sua verdadeira caracterização. As imagens tristes e desoladoras sucediam-se sobrepunham-se: aqui, grupos de mendigos famintos e cadavéricos lutando contra a morte; acolá (p.27),

“… a dois passos, o corpo de um petiz esverdeando-se fora da cova que não foi concluída… Mais além, um velho, as gengivas à mostra, formigas entrando e saindo pelas narinas, pela boca, pelos ouvidos, os braços entre os joelhos, o ventre como um tambor”.

Frente a esse quadro de morte, onde para matar a fome tudo era possível, as donzelas vendiam ao desbarato as suas honras, os velhos não tinham pejo de catar piolhos para comer, os mendigos não hesitavam em retirar restos de comida da boca dos que acabavam de morrer.
São elucidativos alguns casos que passamos a apresentar. Comecemos com a história de um velho miserável que trocava telhas e pranchas de madeira da sua própria casa por litros de milho. Consumada a troca (p. 49),

A caminho do casebre ele sentava-se numa pedra e comia todo cru como se fosse um animal de engorda. Sem estômago, depois, inchava-se os gases fermentado. No dia seguinte, no mesmo sítio, o velho amanhecia morto com o bucho cheio e o corpo sequinho como papeira esmorecida. Da boca, posta de milho mastigada, a pender. Os mendigos que passam brigavam como se fossem cães; o mais forte corria para o morto, retirava-lhe os sobejos engolindo-os num instante”.

Comovedor é também o caso de Justina que depois de encontrar alguma migalha para o pai moribundo corre em seu socorro, mas já (p.138)

O velho tremia, aos arrepios, inconsciente quase. Justina encostou a porta, espalhou por cima desse corpo reduzido a ossos os farrapos que lhe serviam de enxerga; aos poucos, como um embriagado, o pai adormeceu, a cabeça apoiada ao regaço da filha, que cheirava a esperma”.

Indescritível é ainda a história da Nina de Tuda que ao ir para o trabalho sentiu dor de parto. De pernas inchadas, rosto sumido e olhos esverdeados, ficou abandonada na estrada, ela e o filho que mal apontava a cabeça, servindo-se de pasto para corvos e cães famintos.
Igualmente triste é a cena daquele agricultor que, desesperado por ter assassinado alguns miúdos que encontrara a roubar na sua horta (p. 30),

“…meteu a cabeça a pensar no que fizera. Os cabelos arrepiaram-se-lhe… um suor abundante molhou-lhe a testa. Ergueu de um pulo, abriu a mala das ferramentas, retirou a bolina, engatou-a nas vigas do sobrado, fez um laço, subiu na cadeira que afastou com um pé e ficou baloiçando, a língua de fora, os olhos escancarados”.
É, pois, toda essa angustiante situação que levou o poeta José Lopes a dizer:

Aos milhares, Senhor. Os meus irmão nativos/ vagueiam espectrais, exangues, mortos-vivos!/ Todo um povo agoniza! A fome invade os lares/ só é remédio a morte, e tombam aos milhares!

A tirania da fome, nesse mar de angústia, tornou-se tão desesperante que acabou com os sentimentos da esposa perante o marido morto, do filho diante do cadáver do pai e das filhas frente aos desejos libidinosos daqueles que só momentaneamente poderiam matar (ou enganar) a sua fome.
Para mulato, o agente do poder administrativo e colecionador das donzelas virgens para as suas orgias diárias, somente uma metralhadora era capaz de pôr ponto final àquela miséria humana: Eliminava dores e, sob o ponto de vista higiénico, o afastamento da ameaça da peste ou qualquer outra moléstia infeciosa. E por isso, segundo ele (p. 143),

“… a lei de selecção natural não admite sentimentalismos. Quem não pode sobreviver deverá desaparecer”.

Continuando, Mulato afirma descaradamente (p. 143-144):

Considero que o melhor é a morte rápida dessa marmalha, sob o ponto de vista higiénico, sob o ponto de vista humano até, visto o sofrimento e a penitência desapareceriam na morte… E cá para nós (continua ele) seria uma limpeza completa de tanta imundice pelo Povoado, doenças e esqueletos deambulando pelas ruas até que impressiona a gente-de-bem”.

É comovedora, é dramática mesmo a história contada pelos “Famintos”, a história dos que habitavam essas ilhas sem nome, porque esquecidas e abandonadas. E porquê? pode-se perguntar. Porque assim quiseram as repetidas estiagens; porque assim decidiram os que detinham o poder político e económico; porque assim era o “destino “dessa gente indefesa, mas um destino fabricado pelos inimigos dessa mesma gente.
Com letras de sangue, Luís Romano pintou um dos quadros mais trágicos da gesta do Povo de Cabo Verde, gesta esta que abriu caminho e fecundou o histórico dia em que as Ilhas passaram a ter um nome e um lugar no mapa, em que a liberdade radiante e vitoriosa passou a flutuar não na bandeira negra da fome, mas sim na bandeira vermelha, verde e amarela [hoje: vermelha, azul e branca], símbolos do sofrimento, da esperança, da luta e do progresso.
Com o 5 de Julho de 1975, a fome e a miséria passaram para a história, mas sem deixar de fecundar uma nova história: a do progresso, da liberdade e da dignidade para todos os filhos deste querido chão que o poeta chamou “a pátria do meio do mar”.

Notas: 1): Manuel Veiga, 1994. A Sementeira, Lisboa, ALAC, p. 111-116.

            2) Luís Romano, 1975. Famintos, Lisboa, Nova Aurora

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2018

Onde Nasceu o Crioulo de Cabo Verde?


A César o que é de César…
 
A história faz-se com factos e não com impressões, sejam elas nossas ou alheias. Num texto datado de Janeiro de 2016, publicado num blogue da Academia de Ciências Políticas para a Guiné-Bissau, e veiculado no facebook, em Janeiro de 2018, o senhor Livonildo Francisco MENDES afirma: “…todos os dados indicam que foram os escravos guineenses que deram origem à actual população de Cabo Verde e, por consequência, ao crioulo que hoje é uma das línguas oficiais do arquipélago…”.
Mais: no mesmo texto reafirma que: “… na Guiné-Bissau a língua crioula resulta de contactos políticos e comerciais entre os portugueses e os povos do Golfo da Guiné (principalmente os Mandingas e os Fulas) desde a época do Grande-Império Mali, no século XIII”.
É ainda estranha a firmação segundo a qual a “…língua crioula é a que serve de veículo comum entre falantes de dialetos diferentes”.
Espero que algum historiador caboverdiano e/ou guineense, com base em factos, venham repor a verdade histórica da origem dos crioulos falados em Cabo Verde e na Guiné-Bissau.
Eu, como caboverdiano, formado em linguística, com algum conhecimento sobre a história do meu povo, senti-me desafiado a dizer o que penso, escudado em argumentos do historiador António Carreira e em informações de linguistas como Baltasar Lopes, Robert Chaudenson, Jürgen Lang, Jean-Louis Rougé.
Desconheço qualquer fonte histórica que coloca a presença de portugueses no Golfo da Guiné, já desde o século XIII, como estranhamente, afirma o senhor Mendes.
Segundo Carreira (1982:15), o descobridor Nuno Tristão terá chegado a Guiné-Bissau em 1446. Porém, face à insegurança e à hostilidade dos régulos, as feitorias funcionavam a bordo de barcos e somente a partir do século XVII surgem as primeiras feitorias de Ziguinchor, Farim, Geba, Fá e Bissau (cf. p. 18).
Ora, se a descoberta da Guiné-Bissau data de 1446, se as feitorias, em terra firme, datam da segunda metade do século XVII, se o crioulo resulta do encontro entre o português e as línguas étnicas da Costa Ocidental africana, como será possível a sua formação já desde o século XIII, como afirma o senhor Mendes?
Acontece que no século XVII, altura da fixação de feitorias portuguesas na Guiné-Bissau, o crioulo de Cabo Verde já contava com cerca de um século de existência. E isto se tivermos em conta que, segundo o historiador António Carreira (1982: 53), “… a menos de cem anos do achamento existiam em Santiago escravos da estirpe Jalofa que se entendiam (necessariamente por um pidgin ou um protocrioulo) com os europeus, e que eram utilizados como intérpretes junto dos povos do continente”.
Ora, se a descoberta de Cabo Verde aconteceu em 1460, isto significa que em 1560 já existia, em Cabo Verde um protocrioulo. Estamos ainda longe do século XVII, altura do estabelecimento de feitorias na Guiné-Bissau, em terra firme. Isto significa que, historicamente falando, o crioulo de Cabo Verde antecede o da Guiné-Bissau.
Assim sendo, resulta insustentável a afirmação do senhor Mendes, segundo a qual seriam os escravos guineenses que deram origem ao povo e ao crioulo de Cabo Verde.
Aliás, é o próprio Carreira (1982:33) que categoricamente afirma “…o crioulo de Cabo Verde começou a ser usado, timidamente, nos ‘rios’ pelos Lançados ou Tangomaos oriundos das ilhas de Cabo Verde no período da formação das Praças e Presídios” que, como vimos atras, data da segunda metade do século XVII, na Guiné-Bissau. Mais à frente, citando Baltasar Lopes, Careira (1982:33) afirma: “Suponho que o crioulo falado na Guiné é, não o contacto do indígena com o português, mas sim o crioulo caboverdiano de Sotavento levado pelos colonos idos do arquipélago…”.
De acordo com o senhor Mendes, o crioulo terá provindo, principalmente do contacto com os Mandingas e os Fulas. Ora acontece que, enquanto o linguista francês Jean-Louis Rougé (2006) destaca a origem mandiga do crioulo, o linguista alemão Jürgen Lang (2006, 2009) apresenta vários aspetos morfológicos, sintáticos e semânticos que provam a grande influência, também, do wolof no crioulo de Cabo Verde.
Segundo o linguista francês Robert Chaudenson (1992:37), especialista do crioulo da Reunião, a origem dos crioulos atlânticos e do Oceano Índico, tem por base três unidades: a do tempo, a do espaço e a da ação.
Relativamente ao tempo, são línguas muito recentes (séculos 15, 16 e 17 para o de Cabo Verde. Século 17 para os das Antilhas e os do Oceano Índico). Quanto a unidade do espaço, a quase totalidade se formou nas ilhas. Quanto à unidade de ação, surgiram em contexto de dominação (escravatura e colonização), onde o dominador e os dominados não se entendiam, por possuirem códigos linguísticos diferentes. Ora, a necessidade urgente e premente de comunicação exigiu a formação de um novo código linguístico a partir da língua do dominador e das dos dominados. Nessas circunstâncias (caracterizadas por uma situação limite de comunicação) costuma, em pouco tempo, nascer uma língua miscigenada, resultante do encontro do léxico da língua do dominar com a gramática das línguas das classes dominadas. O produto dessa recriação por parte sobretudo dos mestiços, descendentes da escrava negra e do dominador branco, e que desconheciem a língua tanto do pai como da mãe, se convencionou chamar “crioulo”, um código simples, de início, e que, a pouco e pouco, se complexifica e se autonomiza.
Acontece que a Guiné-Bissau se situa no continente, as etnias se comunicavam nas respetivas línguas e tudo indica que não poderiam sentir-se em situações limites de comunicação, exigindo a formação de uma nova língua. A comunicação com o comerciante branco que vinha e repartia para o negócio, em barcos-feitoria (pelo menos até ao século XVII), de início, se processava a partir dos “chalonas” (intérpretes) trazidos de Cabo Verde (Carreira,1982:30).
Pode-se perguntar ao senhor Mendes porque será que os escravos guineenses, em vez da imposição das suas línguas étnicas, preferiram impor o seu crioulo, em Cabo Verde? Porque será ainda que, em outras paragens, na América Latina e nas Caraíbas, para onde foram levados, não impuseram o seu crioulo. Porque será que o crioulo se formou em S.Tomé e Príncipe, que são ilhas, e não em Angola e Moçambique onde a situação social e linguística era parecida com a da Guiné-Bissau?
Por tudo isto, a nosso ver, a tese do senhor Mendes carece de sustentabilidade. Por isso, não a sufragamos. Não obstante, nós os caboverdianos somos eternamente gratos a todas as etnias, principalmente a mandinga e a wolof pelas marcas que deixaram na nossa crioulidade, seja a linguística seja a antropológica.
A terminar, reafirmamos que o crioulo de Cabo Verde se formou e se consolidou em Cabo Verde, no horizonte temporal que abrange os séculos XV (início), XVI, XVII, XVIII (consolidação). A partir da aí entrou na fase de autonomização que ainda perdura.
Bibliografia
CHAUDENSON Robert1992. Des Îles, des Hommes, des Langues. Paris, l’Harmattan.
CARREIRA António, 1982. O Crioulo de Cabo Verde – Surto e Expansão. Mem Martins, Portugal. Gráfica EUROPA Lda.
LANG Jürgen, 2006 (org.). “L’Influence des Wolof et du wolof sur la formation du créole santiagais”. In Cabo Verde – Origens da sua Sociedade e do seu Crioulo. Alemanha, Gunter Narr Verlag Tübingen.
Idem, 2009. Les Langues des Autres dans la Créolisation. Alemanha, Gunter Narr Verlag Tübingen.
ROUGÉ Jean-Louis, 2009.“L’Influence Mandingue sur la Formation des Créoles du Cap-Vert et de Guiné-Bissau et Casamance”. In Cabo Verde – Origens da sua Sociedade e do seu Crioulo. Alemanha, Gunter Narr Verlag Tübingen.

 

Manuel Veiga, 6 de Fvereiro de 2018