A Fome: Um Apontamento a Partir de Famintos, de Luís Romano
Quando,
há já algum tempo atrás, na década de 80, começámos a ler, pela primeira vez, a
gesta dramática do “Povo das Ilhas sem
Nome”, através da histórica obra de Luís Romano – Famintos - não tivemos a força suficiente nem a coragem necessária
para aguentar o realismo nu e cru dos acontecimentos narrados, a evocação
eloquente e agressiva da linguagem utilizada, a proliferação de imagens e de
situações confrangedoras, em cada frase, em cada folha e em cada capítulo do
livro.
Deveras
impressionados, pusemos o livro de lado, na certeza de nunca mais voltar a reviver
os quadros tristes e lúgubres dos capítulos lidos, dos capítulos que não fomos
capazes de ler.
Porém,
os anos passaram e, no nosso interior, a insatisfação de não termos podido “devorar” os “Famintos” ia ganhando corpo. De adiamento em adiamento, não havia
forma de encontrar um pretexto suficientemente forte para vencer a inércia
adquirida e as náuseas do primeiro contacto.
Eis,
porém, que surge uma oportunidade: a comemoração do quadragésimo aniversário do
chamado “Desastre de Assistência”, em 1989.
Com
o coração apertado, e com a razão torturada, retomámos a leitura e, assim,
podemos chegar ao fim de os “Famintos”.
A mesma dificuldade que tivemos em fazer a sua leitura vamos ter agora em fazer
a sua apresentação.
A
todos pedimos compreensão e tolerância pelo realismo da linguagem que vamos
reproduzir, e pelo reviver de acontecimentos dramáticos que tiveram por sujeito
o povo destas Ilhas.
Na
apresentação desse trabalho de Luís Romano, falaremos, essencialmente, do drama
da fome, do despotismo da força e da ganância dos morgados e comerciantes.
Para
começar, gostaríamos de chamar a vossa especial atenção para o desafio com que
o autor termina a sua obra (p.340):
“Quero
ser pedra/para não pensar/para não sentir…/ Desejo mais do que nunca/ montanhas
vivas sem bocas deformadas dos aflitos”.
Este
desabafo é deveras significativo, sobretudo se considerarmos que não há coração
nem razão que possam resistir à crueldade dos factos que vão seguir.
Escrito
na década de 1940, o seu autor pôde, clandestinamente, levar o manuscrito para
um país do continente africano, o que possibilitou a sua publicação no Brasil
em 1962 e em Portugal somente depois da “revolução dos cravos”, em 1975. Nele,
“a negra bandeira da fome” flutua
desde a primeira até a última página.
Se a unidade literária do livro se dilui, como
o próprio autor o admite através do encadeamento ou sobreposição dos diversos
quadros da fome, o mesmo não acontece quanto ao seu conteúdo. Com efeito, desde
a primeira até a última página, o drama da fome é uma constante. Uma fome que
encontramos estampada na cara cadavérica do cabouqueiro Paulino, na miséria
gritante do camponês Cosme, na situação humilhante da “mocrata” Rosenda, no desfecho desesperante da história de Nina de
Tuda…
Paulino
era um asmático que mal podia levantar a sua própria ferramenta de trabalho.
Sufocado pela tosse que o torturava a cada instante e a cada golpe que desferia
à terra, numa procura desesperada de agradar ao capataz Lúcio e de garantir o seu
dia de trabalho, não era homem para facilmente se vergar diante do “destino”. Entretanto, a moléstia crónica
que se apossara do seu corpo frágil e subalimentado era mais forte do que a sua
tamanha vontade de poder garantir naquele dia aziago o tão escasso pão para a
sua família. Assim (p. 16),
“…a tosse tapou-lhe a garganta. De novo,
largou a picareta. Ninguém se atrevia a desviar o rosto ou apresentar-lhe
auxílio. Lúcio (o capataz) observava. Paulino abriu o mais que pôde a boca e
caiu, estorcendo-se, as calças manchadas de urina”.
Tentando
recompor-se, o capataz-carrasco que interpretara o incidente como uma
manifestação de malandrice não se fez esperar: com o punho em riste (p. 16),
“… bateu nos dentes do
cabouqueiro. Sangue desceu-lhe em fios pelo pescoço, enodoando a camisa…
Paulino. Sem opor resistência, deixou-se rolar ao pé, de borco, os dedos a
enterrarem-se pela boca, num esforço de desentupir os pulmões”.
Não
podendo resistir à força indomável desse pulmão que já se encontrava em estado
adiantado de podridão, Paulino, impotente e desamparado, viu o seu dia de
trabalho cortado. Porém, não se desanima e, na manhã seguinte, com uma fé
inquebrantável, volta à azáfama de todos os dias, mas, novamente (p.41),
“…tornou a cair sobre a terra, tomado de
tremuras, a encolher-se, com as mãos apoiadas na ponta do umbigo. Novo ataque
de asma veio… abriu a boca, os olhos fitaram o companheiro e depois
vidraram-se. A urina molhou-lhe as calças para então Paulino ficar tranquilo,
os olhos imenso”.
A
história de Paulino era também a história de Pedro, Paulo, Manuel, João … todos
eles condenados a única “liberdade” na
vida, o de morrer antes do tempo, depois de tudo de tudo terem hipotecado,
vendido ou sacrificado: a saúde, os amigos, a dignidade das filhas, os
sentimentos, a casa, a terra…
É
assim que o autor nos apresenta, por exemplo, o lavrador Cosme que, a troco do
grão do milho para saciar a sua fome e a da família, sentiu-se obrigado a
vender por três contos e duzentos o que lhe custara vinte e cinco contos de
reis. Daí que esmagado pelo peso da situação em que se encontrava, dizia (p.47):
“Sr.
Joãozinho comprou foi canseira de fábrica onde trabalhei anos sem conta. Ele
comprou minha casa onde nasceram meus meninos, tudo quanto ajuntei debaixo de
suor e fadiga… Ele não comprou minha horta. Foi meu suor…” que ele adquiriu e
por um preço irrisório.
Extremamente
magoado com a ganância e a insensibilidade do comprador dos seus bens, Cosme,
ao receber ordens do regedor para deixar a terra e a casa que doravante
passariam a pertencer ao Sr. Joãozinho, não pôde aguentar tão duro golpe e só
se curvou perante as ordens da autoridade, quando já se encontrava (48) “…envolto num pano onde as moscas vinham
poisar”.
Igualzinha
à história do lavrador Come é também a do camponês Agostinho. Também ele tinha
a sua horta que era – dizia- (172)
“…como se fosse a minha (própria) filha fêmea.
Tem muito suor meu caído nos regos e nas covas das plantinhas que semeei…Nenhum
dinheiro é capaz de comprar aquele amor que a gente tem pelas coisas sem valor
que criámos com a ideia num descanso para os últimos dias da vida”.
Entretanto,
conhecendo o valor da Chã-de-Cinta onde nasceram todos os filhos de Agostinho e
onde por cada umbigo do filho enterrado “…nasceu
uma frondosa mangueira”, o comerciante da zona, frente a uma extrema
miséria do camponês, aceitou por hipoteca aquilo que para Agostinho era a razão
de existir.
Não
satisfeito com a simples hipoteca, o comerciante que ia fornecendo milho para
sustento da família de Agostinho resolveu pregar uma triste partida ao seu
freguês, escondendo a carta do filho emigrante, com quinze contos de reis.
Desejando não mais restituir a horta do camponês, chamou-o e convidou-o a
dispor-se da sua loja como melhor entendia. Cego pela fome, o pobre Agostinho
contraiu dívidas que os quinze contos que depois veio a receber já não chegavam
para levantar a hipoteca e, deste modo, perdeu a sua hortinha, sem no entanto
ter podido resolver o problema da fome e da miséria.
A
inclemência do “destino” e a
crueldade dos que detinham o poder administrativo e económico iam assim
ceifando vidas inocentes e desamparadas; iam torturando o coração das mães
desesperadas e dos pais impotentes; iam manchando e conspurcando a pureza nobre
das donzelas pobres e abandonadas.
Com
efeito, nessa aldeia da morte pintada pelo autor de “Famintos”, a crueldade da situação era tal que indescritível se
torna a sua verdadeira caracterização. As imagens tristes e desoladoras
sucediam-se sobrepunham-se: aqui, grupos de mendigos famintos e cadavéricos
lutando contra a morte; acolá (p.27),
“… a dois passos, o corpo
de um petiz esverdeando-se fora da cova que não foi concluída… Mais além, um
velho, as gengivas à mostra, formigas entrando e saindo pelas narinas, pela
boca, pelos ouvidos, os braços entre os joelhos, o ventre como um tambor”.
Frente
a esse quadro de morte, onde para matar a fome tudo era possível, as donzelas
vendiam ao desbarato as suas honras, os velhos não tinham pejo de catar piolhos
para comer, os mendigos não hesitavam em retirar restos de comida da boca dos
que acabavam de morrer.
São
elucidativos alguns casos que passamos a apresentar. Comecemos com a história
de um velho miserável que trocava telhas e pranchas de madeira da sua própria
casa por litros de milho. Consumada a troca (p. 49),
“A
caminho do casebre ele sentava-se numa pedra e comia todo cru como se fosse um
animal de engorda. Sem estômago, depois, inchava-se os gases fermentado. No dia
seguinte, no mesmo sítio, o velho amanhecia morto com o bucho cheio e o corpo
sequinho como papeira esmorecida. Da boca, posta de milho mastigada, a pender.
Os mendigos que passam brigavam como se fossem cães; o mais forte corria para o
morto, retirava-lhe os sobejos engolindo-os num instante”.
Comovedor
é também o caso de Justina que depois de encontrar alguma migalha para o pai
moribundo corre em seu socorro, mas já (p.138)
“O
velho tremia, aos arrepios, inconsciente quase. Justina encostou a porta, espalhou
por cima desse corpo reduzido a ossos os farrapos que lhe serviam de enxerga;
aos poucos, como um embriagado, o pai adormeceu, a cabeça apoiada ao regaço da
filha, que cheirava a esperma”.
Indescritível
é ainda a história da Nina de Tuda que ao ir para o trabalho sentiu dor de
parto. De pernas inchadas, rosto sumido e olhos esverdeados, ficou abandonada
na estrada, ela e o filho que mal apontava a cabeça, servindo-se de pasto para
corvos e cães famintos.
Igualmente
triste é a cena daquele agricultor que, desesperado por ter assassinado alguns
miúdos que encontrara a roubar na sua horta (p. 30),
“…meteu
a cabeça a pensar no que fizera. Os cabelos arrepiaram-se-lhe… um suor
abundante molhou-lhe a testa. Ergueu de um pulo, abriu a mala das ferramentas,
retirou a bolina, engatou-a nas vigas do sobrado, fez um laço, subiu na cadeira
que afastou com um pé e ficou baloiçando, a língua de fora, os olhos
escancarados”.
É,
pois, toda essa angustiante situação que levou o poeta José Lopes a dizer:
“Aos
milhares, Senhor. Os meus irmão nativos/ vagueiam espectrais, exangues,
mortos-vivos!/ Todo um povo agoniza! A fome invade os lares/ só é remédio a
morte, e tombam aos milhares!”
A
tirania da fome, nesse mar de angústia, tornou-se tão desesperante que acabou
com os sentimentos da esposa perante o marido morto, do filho diante do cadáver
do pai e das filhas frente aos desejos libidinosos daqueles que só
momentaneamente poderiam matar (ou enganar) a sua fome.
Para
mulato, o agente do poder administrativo e colecionador das donzelas virgens
para as suas orgias diárias, somente uma metralhadora era capaz de pôr ponto
final àquela miséria humana: Eliminava dores e, sob o ponto de vista higiénico,
o afastamento da ameaça da peste ou qualquer outra moléstia infeciosa. E por
isso, segundo ele (p. 143),
“…
a lei de selecção natural não admite sentimentalismos. Quem não pode sobreviver
deverá desaparecer”.
Continuando,
Mulato afirma descaradamente (p. 143-144):
“Considero
que o melhor é a morte rápida dessa marmalha, sob o ponto de vista higiénico,
sob o ponto de vista humano até, visto o sofrimento e a penitência
desapareceriam na morte… E cá para nós (continua ele) seria uma limpeza
completa de tanta imundice pelo Povoado, doenças e esqueletos deambulando pelas
ruas até que impressiona a gente-de-bem”.
É
comovedora, é dramática mesmo a história contada pelos “Famintos”, a história dos que habitavam essas ilhas sem nome,
porque esquecidas e abandonadas. E porquê? pode-se perguntar. Porque assim
quiseram as repetidas estiagens; porque assim decidiram os que detinham o poder
político e económico; porque assim era o “destino “dessa gente indefesa, mas um
destino fabricado pelos inimigos dessa mesma gente.
Com
letras de sangue, Luís Romano pintou um dos quadros mais trágicos da gesta do
Povo de Cabo Verde, gesta esta que abriu caminho e fecundou o histórico dia em
que as Ilhas passaram a ter um nome e um lugar no mapa, em que a liberdade radiante
e vitoriosa passou a flutuar não na bandeira negra da fome, mas sim na bandeira
vermelha, verde e amarela [hoje: vermelha, azul e branca], símbolos do
sofrimento, da esperança, da luta e do progresso.
Com
o 5 de Julho de 1975, a fome e a miséria passaram para a história, mas sem
deixar de fecundar uma nova história: a do progresso, da liberdade e da
dignidade para todos os filhos deste querido chão que o poeta chamou “a pátria do meio do mar”.
Notas:
1): Manuel Veiga, 1994. A Sementeira,
Lisboa, ALAC, p. 111-116.
2) Luís Romano, 1975. Famintos, Lisboa, Nova Aurora