Arquitetada no tempo e no espaço das nossas ilhas
atlânticas - que o poeta chamou «a pátria
do meio do mar» -, a crioulidade de que hoje nos orgulhamos é produto e
é também projeto de uma insularidade que acabou sendo fecunda.
Com efeito, de um certo
caos inicial, emergiu e emerge um logos social; de um determinado vazio
cultural se processou uma ordem antropológica, cada vez mais rica e
polifacética; das cinzas do anseio afogado e da angústia que tortura nasceu e
nasce a esperança libertadora; do estatuto de dominado o nosso povo passou a
ser senhor do seu próprio destino.
Nesse longo caminhar da
nossa história tivemos por companheira inseparável uma insularidade madrasta
que, forçada pelas circunstâncias, acabaria por compreender e aceitar o papel
de uma mãe, exigente embora, mas sem deixar de, algumas vezes, ser carinhosa
também. Caprichosa ou acolhedora, a insularidade das nossas ilhas manifesta-se
de múltiplas maneiras: ela é geográfica como climática, histórica como
política, antropológica como existencial.
Note-se que o universo da
insularidade extravasa o sentimento de solidão e nostalgia, emergente do
acanhado espaço geográfico das ilhas, para incorporar outros aspetos resultantes
tanto da dialética entre a imensidade do mar arquipelágico e a pequenez das
ilhas retalhadas que as ondas «afogam e afagam», como também entre a grandeza
do sonho ilhéu que não se conforma com a medida da ilha e os problemas sociais,
políticos e culturais de que a mesma tem sido vítima.
Aliás, a fome existencial
do ilhéu ultrapassa os limites da estreita fronteira contornada pelo mar para
se projetar na procura do mais além. O visível não lhe chega, ele tem a
necessidade do imaginário. Este, por sua vez, não sacia totalmente a sua sede,
ele se sente atraído pelo real existente ... que transborda a medida da ilha.
A insularidade islenha é,
pois, o resultado da luta e dos desafios que nascem no próprio chão das ilhas;
ela é também um projeto inacabado cujos traços ganham forma e conteúdo no
confronto e reencontro da água com a terra, do homem com o mar.
Com efeito, a pequenez
territorial, a falta de água e a exiguidade de recursos naturais estão na base
de flagelos como a seca periódica, a fome, as epidemias (anteriormente sem solução)
e o subdesenvolvimento, de uma maneira geral. Por outro lado, a imensidade do
mar «que ... dilata sonhos e ... sufoca
desejos», com o seu « ... cântico /estranho / ... / que não se cala em nós!» [1].
Ora, se nós vencemos é
porque, no dizer de Corsino Tolentino, “aprendemos
a fintar o destino”. E nesse jogo resiliente, construímos e estamos
construindo uma grande civilização que só não é ainda reconhecida como tal, e
nem devidamente publicitada, devido a pequenez territorial e a escassez de
recursos naturais. Porém, como metaforicamente dizia Corsino Fortes, no dia em
que tomarmos consciência da nossa verdadeira força cultural e antropológica,
consignadas na riqueza da nossa crioulidade, plural na expressão e unificada na
compreensão, poderá ser possível “um golpe de Estado no Paraíso”.
Voltando insularidade tão peculiar das ilhas, vejamos
como ela é magnificamente retratada pelo poeta Ovídio Martins quando, em plena
época colonial escreve:
«Árvores/ sem carne/ terra/ de Fogo/ Homens bloqueados / (espantosamente bloqueados) / Irmãos no cataclismo periódico/ de falta de água / Já sem forças/ para mandarem/ calar o mar» [2].
Esse desespero do poeta, porém, um dia, no pós-independência, se transformará em esperança e, avançando «ilha a ilha», é o mesmo vate que vem segredar-nos que, afinal, «O nosso destino estamos a cumpri-lo: Dar a Cabo Verde outro mar, outro céu, outro homem». E para exorcizar os flagelos da insularidade, tornando-a fecunda, com estrumes e fertilizantes trazidos de longe ou recriados no próprio chão do Arquipélago, um outro poeta da esperança, com toda a força do seu estro telúrico, proclama, como que jurando à Bandeira da Dignidade, já no céu das ilhas flutuando:
«Mesmo que o céu não chova / E o sol e a lua/
Sejam cordas partidas no violão da ilha /
... Mesmo que o vento / Vergue / No eixo da terra e nos mastros da alma / Os
ossos e séculos de sangue e secura / Mesmo sendo! já não somos / Os
flagelados do Vento leste»[3].
Este poema faz lembrar o desabafo e a ousadia de um outro poeta da insularidade que, em plena dominação colonial - quando a Bandeira da Liberdade ainda estava à distância -, com convicção, proclamava:
«Somos os flagelados do vento leste! / Morremos e ressuscitamos todos os anos / para desespero dos que nos impedem / a caminhada/ Teimosamente continuamos de pé / num desafio aos deuses e aos homens / E as estiagens já não nos metem medo / Porque descobrimos a origem das coisas»[4].
Este
é o segredo da peculiaridade da nossa insularidade. Por mais dura que ela seja,
o nosso povo aprendeu a driblá-la, a fintá-la, a fazê-la fecunda, mesmo quando
a chuva tarda em chegar, ou as ondas do mar teimam em querer afogar, em vez de afagar.
Vista desta maneira, a insularidade é geográfica e climática, é histórica e política, é onírica e criativa.
Com efeito, não podia ser fácil a formação de uma sociedade a partir de mundos e de universos tão diferentes como os que no recuado século XV, e no chão do arquipélago, se confrontaram. Esses condicionalismos histórico-culturais corporizaram uma nova forma de insularidade que é política, mas também é antropológica e é existencial. A este propósito, Pierre Rivas afirma que, para o ilhéu cabo-verdiano,
«.... l'insularité géographique devient insularité existentielle, qu'on peut lire comme métaphore de la négritude, lieu d'exil loin de la patrie africaine, prison coloniale ou idiossyncrasie ilienne»[5].
É, pois, esse drama que levou o poeta do Ambiente a pintar a insularidade das
ilhas com letras de sangue vertido de milhares de pedras feridas no deserto da
história e com a seiva de algumas árvores apenas, fintando a seca e resistindo
ao flagelo das lestadas. Esse sofrimento e essa resistência são reais e é deles
que emerge a crioulidade insuflada de sonhos, calejada na convivência com os
tentàculos do pelourinho, mas regorgitando a vida. A grandeza do caboverdiano está na sua resiliência
existencial, na pluralidade da sua expressão crioula e na unidade da sua
compreensão antropológica. Ora, no dia em os caboverdianos se derem conta que o
seu segredo está sobretudo nessa resiliência de, com sucesso, fintar o destino
e na grandeza e especificidade da sua crioulidade, poderá com facilidade levar
o mundo compreender que a sua contribuição para o humanismo é, deveras,
significativa.
Devo dizer que o ilhéu
existe, pois, porque resiste. E nisto consiste o seu drama, mas também o seu
mérito.
E, resistindo sempre, o
homem caboverdiano acabaria por dar-se conta de que, no ambiente das ilhas,
tornava-se necessário e inevitável o «Conflito
numa alma só / de [múltiplas] almas contrárias / buscando-se, amalgamando-se /
numa secular fusão»[6].
Relacionado com a criatividade literária, o tema da insularidade ganha expressão particularmente através do sentimento e desejo de evasão experimentados pelos «claridosos», como também pelo ideário programático de «fincar os pés no chão» que sintetiza o seu programa literário e o ideário telúrico que os acompanharia pela vida fora. Posteriormente, a literatura caboverdiana, embora reconhecendo o elevado sentido do «projeto claridoso», acabaria por alargar o horizonte com um novo ideário programático, o da ilha dentro da ilha, concebido pelo poeta Aguinaldo da Fonseca, abraçado por Amílcar Cabral, defendido e praticado pelos escritores da geração Certeza, pelos Movimentos literários subsequentes, pelos da geração da Independência e pós-Idependência.
A fecundidade da nossa
insularidade literária e antropológica consubstancia-se em cinco metáforas, a
saber: a do mar, a da saudade, a do crioulo,
a do milho, a da morna.
Analisando essas
metáforas, somos levados a admitir que, se Cabo Verde é pequeno, territorialmente, constituído
por dez grãozinhos de terra, ele é grande espiritual e culturalmente. Tem a
dureza das suas rochas e a suavidade do
sonho criativo; tem a grandeza do Mar imenso que o envolve e o carinho da
mamãe-terra que o embala; tem a força e a riqueza da Crioulidade que o caraterizam e a sabedoria do Milho e da Morna que o
alimentam; tem a tolerância de um Povo resiliente
e a plasticidade de uma Nação diasporizada.
Tudo isto para concluir, dizendo:
·
O Mar é a metáfora da prisão e da
liberdade; de dificuldades e possibilidades; da partida e do regresso, com mais
milho, mais água, mais luz, mais ferramentas para lavrar a terra e empoderar a
mente. Ele pode representar sonhos realizados, umas vezes; mas também sonhos
abafados, outras vezes. Simboliza o lado virtual da nossa identidade.
·
O Crioulo é a
metáfora da alma, da plasticidade, da singularidade, do diálogo crítico e do
efeito assumido de globalização, no ser, no estar e no sentir do ilhéu
caboverdiano. Simboliza a sua tolerância e o sentido de complementaridade
presentes no seu humanismo.
·
O Milho é a metáfora do trabalho árduo, da resistência contínua, do
sofrimento resiliente, da tenacidade permanente, da relação de esperança entre o
céu, a terra e o mar. Simboliza, sobretudo, o lado material da nossa
identidade.
·
A Morna é filha da cultura do Milho,
da tragédia e epopeia do Mar. Ela é
um ser crioulo, resultante de vários cruzamentos. É a metáfora da nossa cultura
crioula e simboliza a nossa identidade espiritual.
·
A Nação Diasporizada é a fonte onde a
nossa alma, em busca do conhecimento, sedenta do ter e do ser, inventa o reencontro
onde o nosso humanismo globalizado se dessedenta, se fortalece e se revigora, recriando-se,
criticamente,
Assim sendo, podemos afirmar que O Mar e o Crioulo, o Milho, a Morna e a Saudade constituem o DNA da
nossa identidade, uma identidade sofrida, uma identidade lutadora, uma
identidade amada, uma identidade construída e em construção, uma identidade
formada, uma identidade em rede e no processo de uma nova formatação; uma
identidade aberta, realizada e no processo de realização.
Tudo isso para significar que Cabo Verde,
geograficamente, são apenas dez grãozinhos de terra, mas, cultural e antropologicamente,
pode-se afirmar que é um arco-íris que abraça e acolhe o humanismo de todas as
cores e latitudes, com sentido crítico, é certo, mas também com um sorriso aberto
e uma capacidade resiliente de fintar sempre o destino que afoga ou sufoca.
17 de Dezembro de 2020, Manuel Veiga
(Texto apresentado em Webnar e que
participaram, também, a escritora Vera Duarte e a Professora Fátima Fernandes,
tendo o evento contado com a organização da Uni-CV, ACL e o Instituto Canões)
[1] Jorge
Barbosa, «O Mar», Poesia I, ICL,
Praia, 1989, p. 72. Publicado pela 1ª vez em O Arquipélago, 1935.
[2] Ovídio
Martins, «A Seca» Caminhada, 1962. Retomado
em 100
Poemas, p. 15.
[3] Corsino
Fortes, «A Lestada de Lés a Lés» Árvore
& Tambor, ICL, Praia, 1986, p. 121.
[4] Idem 2,
Ibidem
[5] Pierre
Rivas, «Insularité et Déracinement dans la poesie cap-verdienne», in colóquio
de Literaturas Africanas de Expressão
Oficial Portuguesa, Paris, Fundação C.Gulbenkian, 1984.
[6] Idem 1,
«Povo», Poesia I, ICL, Praia, 1989,
p. 71. Publicado pela 1ª vez no livro Arquipélago,
1935.
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