sábado, 25 de fevereiro de 2012

A PALAVRA  E  O  VERBO  NO  ODJU  D’AGU

          Falar do «Eu nas palavras» é uma sinédoque. E isto porque a «palavra», neste sintagma, significa ou pode significar a obra do autor.
          Li numa página da internet que Gil Deleuze dizia: «a escrita é um prazer masturbatório, pois se trata de fato de se olhar gozar estuprando a folha branca que me serve de testemunha».
          Para mim, ao estuprar, carinhosamente, a folha branca que me serve de testemunha, não pretendo consumar uma masturbação (perdoem-me esta transgressão da linguagem), mas tão-somente, realizar um acto de amor: o de – através da transparência e da transfiguração do verbo – poder partilhar ou mediatizar o meu mundo e os meus sonhos.
          Com a força mediática da palavra, o meu «eu» é capaz de significar, de transfigurar, de construir e de comunicar o mundo que nos rodeia, o social que nos preocupa, o cultural que nos enforma, o virtual que nos interpela.
          Ainda numa página da internet deparei-me com a seguinte pergunta de Silvano Santiago: «quando é que a arte brasileira [deixa] de ser literária e sociológica para ter uma dominante cultural e antropológica?»
          Creio que a arte não tem que deixar de ser literária e sociológica para se transformar em cultural e antropológica. O melhor ainda é ter todas essas características, isto é, ser ao mesmo tempo literária, sociológica e antropológica.
          No remaniamento da palavra e do verbo que faço, é este o meu intento, embora acredite que o lado literário não é o que mais me preocupa. Aliás, não é por acaso que, quando escrevo, sou mais ensaísta do que poeta ou romancista. Com efeito, a minha escrita tem sempre a cumplicidade da minha história, da minha vivência e dos meus sonhos. É sobretudo através do romance Odju d’Agu que a minha palavra e o meu verbo se transfiguram em vivências, em sonhos. Convido os interessados a uma viagem que nos conduzirá ao Odju d’Agu, na certeza de que através deste périplo descobriremos a cumplicidade existente entre o meu verbo e a minha mundivivência, entre a minha palavra e o meu sonho. Para tal, falar-vos-ei, muito resumidamente, da hora zero e da diegética do Odju d’Agu.

A Hora Zero

          Nasci no campo, em Santa Catarina, na Ilha de Santiago, na confluência de Sedeguma e de Achada Gomes, no remanso de uma ribeira baptizada com o nome de Quintal, frente ao sítio de Galo-Canta, a propriedade do autor do Léxico do Dialecto Crioulo do Arquipélago de Cabo Verde.
          Passei a minha infância entre Quintal, Sedeguma, Achada Gomes, Palhacarga e Achada Fóra. Na família, na rua, nas fainas agrícolas, nos grupos de amizade, na safra de enxotar corvos e outros animais para não estragarem as sementeiras, só falava e só ouvia uma única língua – o Crioulo. Ainda me lembro, como que numa sinfonia distante, mas presente, as estórias, as muitas estórias contadas pela minha mãe e pela minha avó paterna, duas iletradas cultas, duas fontes de sabedoria popular, duas bibliotecas da minha infância.
          Note-se que na minha aldeia não havia sequer um aparelho de rádio, na altura, e o meu primeiro encontro com a língua portuguesa só acontece por volta dos 7 anos, na escola paroquial e consolida-se na escola oficial aos 9 anos e no Seminário de S.José, na Cidade da Praia, aos 14 anos de idade.
          Eu que fui um camponês, no estar e no existir, em toda a dimensão da palavra, durante os anos da minha infância, senti-me envolto num estranho manto da Cidade, quando o destino abriu-me as portas do Seminário, em Outubro de 1962. Ali recebi ordens formais de que a minha palavra deveria ser portuguesa e que, portanto, só deveria falar o português. Disseram-me ainda que, se porventura caísse na «ousadia» de falar a língua da minha identidade primeira seria castigado. A ordem era para mim, mas também para todos os meus colegas de destino.
          Felizmente, o meu crioulo, aos 14 anos de idade, já era adulto e se encontrava de tal forma enraizado no meu ser que nem os ares da Cidade e do Seminário, nem os ritmos de Coimbra, a Cidade do fado, onde estive também algum tempo, puderam ensombrar a minha vivência crioula e a profunda ligação que tinha e tenho com a palavra, com a gramática e a sintaxe da língua, da única língua da minha mãe. E hoje, se me perguntarem por que falo e escrevo em Crioulo, a resposta é simples: é porque sou crioulo, e não posso deixar de o ser. É porque a minha vida e o meu povo têm a marca indelével da crioulidade. É porque fiz e faço uma caminhada onde o Crioulo sempre esteve e está presente. Esta caminhada é visível e previsível através do romance Odju d’Agu que é um novelo onde se entrelaçam as diversas etapas da minha vivência no campo, na cidade, na mãe-pátria, no estrangeiro, na vida real e virtual. De todas essas vivências, a mais marcante é a dos meus 14 anos e estou certo de que, sem a experiência campesina, o Odju d’Agu não seria fonte nem raiz, e dificilmente poderia crescer, regar e alagar os campos das minhas sementeiras e as searas das minhas colheitas onde a minha palavra umas vezes é crioula e outras vezes é portuguesa.




A Diegética


          Não escrevi um romance porque era ou queria ser escritor. Odju d’Agu foi a expressão de um desafio lançado à minha própria língua. Com efeito, à força de tanto ouvir que o Crioulo não tinha regras nem gramática, decidi, no seguimento do colóquio linguístico que teve por palco a cidade do Mindelo, no ano de 1979, escrever um ensaio para provar a existência de um único crioulo em Cabo Verde, para provar ainda que os que utilizavam este mesmo crioulo para dizer que ele não tinha regras nem gramática estavam equivocados. O ensaio, publicado em 1982, tinha por título Diskrison Strutural di Língua Kabuverdianu.
          No seguimento deste trabalho, de carácter gramatical, senti-me na necessidade de testar a palavra e a gramática da minha língua materna em domínios da cultura e da ciência. E isto porque, na altura, o discurso colonial continuava a dizer que o Crioulo é «língua de casa» e que não servia para domínios como a cultura e a ciência.
          Ora, de cultura e de ciência tinha eu apenas a minha intensa vivência do campo e o que aprendi no Seminário de S. José, na Praia, no Instituto de Estudos Teológicos de Coimbra e na Universidade de Aix-Marselha, em França.
          De todas essas vivências, a experiência do campo era tão viva e tão presente que me parecia como que um fantasma amigo que me visitava e revisitava amiúde.
          A testagem cultural e científica da minha língua crioula contava, deste modo, com um terreno onde eu podia e sabia lavrar, porque conhecia o movimento e a safra das suas «azáguas», as fases das suas sementeiras, o ritmo das suas fainas e a quadra das suas colheitas.
          Odju d’Agu nasceu assim desta necessidade de parir, de dar à luz a duas crianças: de um lado um infante conhecedor  da palavra e  da gramática  da sua língua; de outro lado, um outro infante formado e moldado com a cultura do seu povo, em primeiro lugar, e, de algum modo, com as culturas matrizes da sua antropologia mestiça.
          O título Odju d’Agu resume toda a diegética do livro. Ele pode significar a fonte onde a água é mais pura, mas também a raiz que prende a árvore na terra, na sua terra. As personagens estão em contínua viagem de iniciação e de aprendizagem da cultura caboverdiana, da cultura africana, da cultura universal.
          Os viajantes, uns dão-se conta da sua alienação e procuram o Odju d’Agu para matar a sede com a água mais pura da fonte matricial; outros, mais identificados com a água da sua própria ribeira e conhecedores da água de outras ribeiras, vão partilhando esse líquido, fonte de vida e de conhecimento, com todos quantos dele necessitam.
          Num primeiro tempo Odju d’Agu é Cabo Verde; num segundo momento é África; e num terceiro momento volta de novo a ser Cabo Verde. Os viajantes partem de Cabo Verde para reencontrar a África e dali partem de novo para redescobrir Cabo Verde, a fonte e o centro da sua mundivivência, da sua antropologia existencial e cultural. Os que mais viajam são os que mais sede têm, os que menos conhecem o Odju d’Agu, tanto o islenho como o continental.
          A viagem não termina porque da fonte há sempre água a brotar, mas o romance tinha que ter um fim e o seu fim preanuncia o início de uma nova largada, com outros actores, outras personagens. Porém, da viagem empreendida para o centro do Odju d’Agu – seja para a África ou para Cabo Verde – todos ficam mais regenerados, mais dessedentados, mais identificados não só com a geografia, mas sobretudo com a antropologia dos dois espaços.
O Odju d’Agu é, deste modo, inexorável e dele jorra sempre a água pura e fresca. As três principais personagens do romance (que podiam chamar-se Cabo Verde), a Regina, o Zé di Béba e o Pedrinho, tinham sonhos. O de Regina e Zé di Béba acabaram por ficar realizados com a descoberta e assunção das matrizes da sua antropologia identitária e do rosto resultante de um caldeamento que durou séculos e que, em contínua transformação,  perdurará por muitos milénios. Porém, o sonho de Pedrinho estava ainda longe da meta protagonizada. Tal meta só será alcançado no dia em que o Crioulo for oficializado e materializado o seu ensino formal e sistemático. É a saga do Pedrinho que continua e perdura.
          Ora, qualquer que seja a seca ambiental, do Odju d’Agu brotará sempre a água fresca, a água da nossa ribeira e que, estou certo, um dia quando «descobrirmos [de forma coerente e consequente] a razão das coisas», há-de bastar a nossa sede, não apenas a de Regina e de Zé di Béba, mas sobretudo a de Pedrinho, o homem que sonha e viaja, o homem que ao lado de outros viajantes vai construindo o castelo do seu sonho, palavra a palavra, pedra a pedra, «dor a dor, amor a amor». E isto significa que  Pedrinho continua a estar e a viajar nas asas das palavras, tanto a palavra crioula do Odju d’Agu, como a palavra portuguesa do Diário das Ilhas. Tal é, na perspectiva do poeta Jorge Barbosa,  o conflito saudável e enriquecedor de duas palavras contrárias e complementares que têm moldado e enriquecido a alma crioula de Pedrinho.

                                                                                 Manuel Veiga
                                                                              Setembro de 2001

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