segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Como Traduzir o Português “Culto” para o Crioulo “Culto” e Genuíno?

A natureza do crioulo é híbrida. Um hibridismo que no dizer de Gabriel Mariano não é uma justaposição, mas uma harmonização. O crioulo caboverdiano é mesmo isso: o resultado da interpenetração do mundo africano com mundo lusitano, no aspecto étnico, cultural e linguístico. A essência do crioulo, ab initio, está na harmonização destes dois mundos. Hoje, o crioulo abriu também as portas para os contributos da “Nação Global” espalhada pelo mundo, porém, no aspecto linguístico, o contributo da língua portuguesa ocupa o primeiro plano. Segundo alguns estudiosos, Baltasar Lopes em particular (1957), “... o tesouro lexical é na sua quase totalidade português”. Isto é um facto inegável. E se tentarmos excluir as palavras ou vocábulos de origem portuguesa, a comunicação deixaria de existir. Então, onde está a originalidade do crioulo? Temos que convir que a língua não é o seu tesouro lexical. O que caracteriza uma língua, em primeiro lugar, é a sua gramática. Só em segundo lugar é que entra o seu tesouro lexical Hoje sabemos que a gramática do crioulo tem uma origem africana e uma reconstrução local. A especificidade do crioulo esta nessas duas componentes: a origem africana e a reconstrução local. Mesmo no tesouro lexical, o material provindo do português, na sua esmagadora maioria, recebeu em Cabo Verde uma “alma nova”, na expressão do linguista alemão Jürgen Lang, aquilo que eu chamaria um “core meaning” próprio. Assim, na tradução, a maior atenção deve ir para gramática e só em segundo lugar para o léxico. Vejamos algumas especificidades gramaticais do crioulo: 1.Na morfologia do género, só os seres animados é que dão conta de formas próprias para o masculino e para o feminino. Os inanimados são neutros: “pórta branku, mudjer bunita, ómi bunitu”. Contrariamente, em português, o género existe tanto para os seres animados como para os inanimados: “porta branca, mulher bonita, homem bonito. 2.Na morfologia do número (singular e plural), o crioulo é uma língua altamente económica, não permitindo redundâncias desnecessárias. Assim, utiliza apenas uma marca do número que pode ser um quantitativo, ou as desinências “s” e “is”. Ex: dôs amigu; txeu kabra, mudjeris di Kabuverdi; ómis di Kabuverdi”. Em português pode haver mais do que uma marca do número: “dois amigos; muitas cabras, mulheres de Cabo Verde, homens de Cabo Verde. Quando o plural vem expresso num determinante, o determinado não leva o plural: “nhas amigu”ses amigu”. Em português, a marca do plural vem tanto no determinante como no determinado: “os meus amigos; os seus amigos”. Também quando a marca do plural vem expressa no substantivo, o adjectivo que o determina não a traz, contrariamente o que se passa em português. Ex: “amigus intilijenti”/ “amigos inteligentes”. 3.Na morfologia dos verbos regulares não existem flexões. O crioulo utiliza marcadores ou actualizadores verbais que dão conto do tempo, do modo e dos aspectos verbais (cf. Manuel Veiga, O Caboverdiano em 45 Lições ou Introdução à Gramática do Crioulo). Ex: N kume, nu kume, N ta kume, nu ta kume, N kumeba, nhos kumeba, es sa ta kume...”. Em potuguês: comi, comemos, como, comemos, tinha comido, tínheis comido, estão a comer”. 4.Na sintaxe há alguma aproximação com o português, mas há também especificidades próprias do crioulo. No crioulo, o sujeito é obrigatório; em português é facultativo: “N ta trabadja”/ trabalho ou eu trabalho. Em português na ordem de hierarquização dos elementos morfológicos, temos, normalmente, sujeito, predicado, complemento directo e complemento indirecto. No crioulo, algumas vezes, o complemento indirecto do português transforma-se em complemento directo e vem em primeiro lugar: “Dei uma casa ao João”/ “N da Djon un kaza”. 5.Na forma passiva, o português utiliza as formas do verbo auxiliar “ser”com o particípio passado do verbo principal. No crioulo, habitualmente não se usa as formas do verbo auxiliar. Ex: “Um livro foi escrito pelo João”/ “un livru skebedu pa Djon”. No crioulo, ainda, a construção pode tomar forma relativa: “un livru ki Djon skrebe”. 6.No português, o emprego do artigo é obrigatório. No crioulo o artigo não existe, salvo o indefinido “un” e, raramente, o definido “kel”. Ex: “A minha casa”/ “Nha kaza”; “o homem que vi”/ “kel ómi ki N odja”. 7.Especificidade no emprego das “regências nominais e verbais”. A regência do português raramente se confunde com a do crioulo. Podemos até dizer que, na regência, o crioulo se demarca do português, afigurando-se como uma das grandes manifestações da sua especificidade. Exemplos: “ir à missa / bai misa; rico em vitamina/riku di vitamina; no ano passado/ na anu pasadu; dreito a esclarecimento/ direitu di sklarisimentu; rumo ao Fogo/ róstu pa Fogu; exigir que/ iziji pa; acho que/ N ta atxa ma...”. Na tradução, é sobretudo na especificidade gramatical e na reconstrução do “core meaning” local que devemos dar maior atenção. O léxico, quer queiramos ou não, na sua maioria expressiva veio e continuará a vir do português. Querendo nós um crioulo genuíno, a aposta, sem descartar o “core meaning” e a reconstrução local, tem que ser na especificidade gramatical. Tenho verificado que alguns defensores do crioulo se tem enfeudado na especificidade lexical do crioulo, esquecendo, que a maior especificidade do crioulo está na sua gramática e sintaxe. Espero ter dado resposta aos que mostram algum desconforto com a tradução que faço, não pela observância estrita da especificidade gramatical que faço, mas pelo léxico que utilizo. Imaginem o que seria do português e de todas as línguas latinas se se resolver excluir dessas línguas todo o tesouro lexical que receberam do latim e do grego! O mesmo aconteceria se excluirmos do crioulo o manancial do léxico proveniente do português.

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