A convite do Gabinete do Ministério da
Reforma do Estado, tomei parte, no passado dia 23 de Outubro, no lançamento da
Revista Vozes das Ilhas. Tudo correu na normalidade, com intervenções
pertinentes, até que uma ilustre senhora, médica de profissão, e teóloga por
sinal, se irrompeu na sala com a seguinte afirmação, sem a mínima
contextualização e fundamentação: “O ALUPEC é um alfabeto para atrasados
mentais”.
Fiquei deveras atónito, não pelo facto
dessa senhora ser contra o ALUPEC, mas sim por ela considerar que esse modelo
de alfabeto, onde tendencialmente uma letra corresponde a um som, é um modelo
de “alfabeto para atrasados mentais”.
Pedi a palavra solicitando a essa senhora que nos apresentasse as fundamentações da sua afirmação, tendo em conta: a) que o ALUPEC foi aprovado a título experimental em 1998 e, a partir de lá, todos os trabalhos académicos (e são muitos) produzidos em universidades, em Cabo Verde, em França, nos EUA, na Alemanha, em Portugal..., utilizaram e utilizam o ALUPEC, o que lhe confere, seguramente, legitimidade académica; b) que vários intelectuais caboverdianos têm usado o ALUPEC nas suas produções literárias; que custa-me acreditar que o Conselho de Ministro que aprovou o ALUPEC seja composto de atrasados mentais, tanto o que aprovou a título experimental em 1998, como o que o institucionalizou, como alfabeto caboverdiano, em 2009; que custa-me acreditar que os académicos e intelectuais que praticam o ALUPEC sejam atrasados mentais; que todos os que tiveram ou têm experiência de ensino bilingue, em Cabo Verde, em Lisboa e nos EUA sejam atrasados mentais; que todos os que fizeram o Mestrado de Crioulística e de Língua Caboverdiana na Uni-CV sejam atrasados mentais; que as várias dezenas de alunos na Uni-CV que estudam a língua caboverdiana, com base no ALUPEC, sejam atrasados mentais.
Justificando a sua afirmação, a referida
senhora disse que ela compreende a escrita de Eugénio Tavares e de Sergio
Fruzoni, mas que o ALUPEC torna o nosso crioulo uma língua estrangeira.
Exemplificou dizendo que não compreende a razão por que “casa”se escreve
“kaza”no ALUPEC.
Considerando que a fundamentação
apresentada não me convence, gostaria de informar que todo e qualquer alfabeto
é uma convenção; que hoje as características fundamentais de um alfabeto são: a
economia, a sistematicidade e a funcionalidade; que o ALUPEC tem todas essas
características; que é, hoje, o modelo de alfabeto aconselhado pela UNESCO; que
já em 1888 o senhor António d’Paula Brito usava esse modelo de alfabeto; que o
novo acordo orográfico da língua portugues dá razão ao modelo que o ALUPEC
segue ao eliminar as consoantes mudas na escrita do português.
Ninguém contesta a referida senhora de
não gostar do ALUPEC, mas a maneira como manifesta a sua discordância não é
científica, nem espelha a democracia. Com efeito, destratar os que praticam o
ALUPEC não é ético, sobretudo quando se trata de uma teóloga que professa a
religião nazarena. A propósito disto, devo lembrar-lhe que os Nazarenos fazem
parte da Associação que traduziu uma parte da Bíblia para crioulo (“Notísias
Sabi di Jezus”). Será que eles também são atrasados mentais?
Devo lembrar-lhe que se o problema reside no facto de o ALUPEC ser um modelo onde tendencialmente uma letra corresponde a um som ( em linguística diz-se que a um grafema corresponde um fonema) também no alfabeto português muitas letras correspondem apenas a um som ( b, d, f, l, m,n, p, t, v). Será que estas letras são apenas para atrasados mentais também?
Devo lembrar-lhe que se o problema reside no facto de o ALUPEC ser um modelo onde tendencialmente uma letra corresponde a um som ( em linguística diz-se que a um grafema corresponde um fonema) também no alfabeto português muitas letras correspondem apenas a um som ( b, d, f, l, m,n, p, t, v). Será que estas letras são apenas para atrasados mentais também?
Quanto à proposta de retomarmos a
escrita de Eugénio Tavares e a de Sergio Fruzoni, gostaria que explicasse por
que é que aceitamos a mudança em tudo e não no crioulo. Pergunto: porquê que
hoje não escrevemos o português de Gil Vicente, nem o de Camões, nem o de
Fernando Pessoa? Porque é que em 1911 houve a reforma ortográfica da língua
portuguesa? Será que continuamos a escrever “philosofia, theatro, pharmacia,
abysmo, assucar...” ou a mudança para “filososofia, teatro, farmácia, abismo,
açúcar” é, hoje, pacificamente aceite? Se se aceita a mudança a nível do
português, porque é que no crioulo a mudança é um bicho de sete cabeças? Porque
é que em matéria de crioulo só o passado de Eugénio Tavares e o de Pedro
Cardoso é que contam?
Não basta ser lúcido. Há que ser também
coerente, consequente e respeitador, mesmo quando discordamos da posição do
outro. Há que admitir que um alfabeto que favorece a inclusão e que se
caracteriza pela sua economia, sistematicidade e funcionalidade, mesmo que
ponha em causa o conforto que temos com um outro modelo, deve ser respeitado.
Há que convir que esse conforto não nos autoriza a generalizar esse modelo,
sobretudo quando sabemos que ele peca pela falta de economia e de
sistematicidade, duas características que a linguística moderna, mas também a
UNESCO defendem no estabelecimento de um alfabeto para as línguas em vias de
instrumentalização gráfica.
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