INTRODUÇÃO
1. Enquadramento
1.1 - O Contributo pretendido: Sempre pensei
que o meu contributo para o desenvolvimento do crioulo caboverdiano (CCV)
deveria situar-se na área da escrita e da gramática. Por isso, tomei parte no
Colóquio Linguístico de 1979, onde surgiu uma proposta de escrita
fonético-fonológica; escrevi o ensaio Diskrison
Strutural di Língua Kabuverdianu, 1982, o romance Odju d’Agu, 1987 e O Crioulo
de Cabo Verde - Introdução à Gramática, 1995; tomei ainda parte no Fórum de
Alfabetização Bilingue, 1989, onde começou a ganhar consistência uma nova
perspectiva para o alfabeto do CCV, a de harmonização do modelo fonológico com
o etimológico; presidi a Comissão Consultiva criada no Fórum acima aludido,
para aprofundar a problemática da mudança afabética que se impunha; presidi o
Grupo de Padronização do Alfabeto e que deu corpo à harmonização acima
referida, com a proposta do ALUPEC (Alfabeto Unificado para a Escrita do Cabo-verdiano),
proposta esta avançada em 1994 e aprovada, a título experimental, em Dezembro
de 1998 (ver Boletim Oficial n.º 48,
suplemento); preparei e defendi uma tese de doutoramento sobre Le Créole du Cap-Vert, étude grammaticale
descriptive et contrastive, 1998.
Porém, a patir dos anos
90, após dez anos de algum labor linguístico, dei-me conta de que o meu
contributo para o desenvolvimento do CCV deveria ser um triângulo linguístico,
abarcando a escrita, a gramática, mas também o dicionário.
Foi assim que, em 1995,
após o estudo gramatical que culminou com a publicação acima referida, dei
início a um novo projecto, o do Dicionário
Elementar Crioulo de Cabo Verde-Português.
A área da lexicografia
não é um terreno onde eu me sinto à-vontade. Porém, a carência de estudos nesse
domínio, o perigo de descrioulização lexical que ameaça o CCV e ainda a
necessidade de fixar a escrita das palavras, de acordo com o ALUPEC,
convenceram-me a assumir um tal estudo. Tenho a consciência das limitações
deste projecto que levou cinco anos a ganhar forma e conteúdo - a incompletude
é a característica de todos os dicionários -, mas também tenho a consciência
que o mesmo representa um contributo significativo para a afirmação de uma
língua que, com tenacidade, tem resistido, e resistirá sempre, às ameaças da
glotofagia.
1.2 - O estado em que se encontra a lexicografia
do CCV: Os estudos linguísticos não abundam. E isto tanto na área da
gramática como na da lexicografia. Quanto a este último aspecto, até ao século
XIX, não conheço nenhuma referência significativa. A partir daí, e no decorrer
do século XX, há algumas referências que, embora importantes, são ainda pouco
expressivas. Pode-se referir aos seguintes trabalhos: o vocabulário de A. de Paula Brito (4 páginas,
modalidade crioulo-português) e que faz parte de «Apo ntamentos para a
Gramática do Crioulo que se Fala na Ilha de Santiago de Cabo Verde», 1888; o Léxico do Dialecto Crioulo de Cabo Verde,
de Armando Napoleão Fernandes, iniciado em 1920, cuja elaboração levou mais de 20
anos, com publicação póstuma, em 1991, e cujo conteúdo (179 páginas,
crioulo-português), apesar de significativo, está ainda longe de cobrir o
universo lexical do CCV; o léxico de Baltasar Lopes, português-crioulo, que
integra o seu livro O Dialecto Crioulo de
Cabo Verde, 1957, num total de 196 páginas, o qual apresenta apenas uma
amostra do conjunto lexical caboverdiano; o glossário de Luís Romano, na variante
de Santo Antão/português, com 43 páginas, integrado na sua obra Cabo Verde – renascença de uma civilização
no Atlântico médio, 1970.
Mais recentemente, João
Pires e John Hutchinson publicaram um trabalho intitulado Disionariu Preliminariu Kriolu, 1983, edição bilingue,
crioulo-inglês, com um total de 85 páginas, o qual, como as outras, é também
uma amostra daquilo que constitui o manancial lexical do CCV. Ainda mais
recentemente, o francês Nicolas Abrial Quint publicou os seguintes trabalhos: Lexique Créole de Santiago-Français,
1996, com cerca de 1800 entradas; Dictionnaire
Français-Capverdien, 1997; Dicionário
Cabo-verdiano-Português, 1998 e Dictionnaire
Capverdien-Français, 1999, o qual
constitui um alargamento dos trabalhos anteriores, num total de mais de 4000
palavras. O mesmo, apesar de constituir o mais volumoso trabalho lexicográfico publicado
em 1999[*],
regista sobretudo as realizações do mundo rural da ilha de Santiago e, mesmo a
este nível, não abarca toda a riqueza vocabular dos camponeses.
Face a esta situação, era
necessário um trabalho lexicográfico mais abrangente, embora sem a pretensão de
cobrir todo o universo lexicográfico do CCV.
Este Dicionário Elementar Crioulo de Cabo Verde - Português — num total
de mais de 16 500 entradas (podendo estas ser uma palavra, os seus campos
semânticos ou expressões gramaticais) — é uma tentativa de tornar a
lexicografia do CCV um pouco mais abrangente, embora o mesmo se encontre ainda
longe de cobrir o universo lexical da língua em questão. Seja como for, o
trabalho abarca, de forma não exaustiva, as variedades de Santiago e de S. Vicente,
com algumas incursões nas variedades do Fogo, Boavista e Santo Antão.
Quem vier a empreender um
novo trabalho lexicográfico disporá já de um número significativo de
referências, importando apenas aperfeiçoá-las, alargá-las e enriquecê-las.
2. Estrutura
2.1 - Estrutura de apresentação: A obra
possui uma estrutura simples para poder facilitar a captação da forma das
palavras, de acordo com o modelo de alfabeto propugnado pelo ALUPEC. Sendo este
modelo de base fonético-fonológica (em regra, um só som para uma só letra ou
dígrafo e vice-versa), entendi que era dispensável a transcrição fonética das
palavras.
Organizei as “entradas”
em colunas. Na primeira surge a matriz de Santiago, com a sigla ST. Segue-se a coluna destinada à variante
de S. Vicente e a outras variantes do CCV. coluna SV/OV,
em primeiro lugar surgem as palavras de S. Vicente; as que não são de S. Vicente
surgem em último lugar seguidas de siglas que as identificam: SA, F,
Bv, Br, SN, simbolizando,
respectivamente, Santo Antão, Fogo, Boavista, Brava e S. Nicolau. Na terceira
coluna figura Obs, isto é:
observação. Nela aparece a classe gramatical a que a entrada pertence ou então
se diz que a entrada é uma expressão (idiomática ou gramatical). Finalmente, na
quarta coluna vem o símbolo Port, que
significa português.
Tudo isto significa que
as “entradas” na matriz de Santiago têm sempre correspondência semântica na variante de S. Vicente e no português. A
correspondência relativamente às outras variantes do CCV é extremamente
limitada. Ela surge quando o autor (que é nativo de Santiago) tem conhecimento
da correspondência existente nessas outras variantes. Fundamentalmente, o
estudo contrastivo diz respeito a Santiago, a S. Vicente e ao português.
2.2 - Estrutura científica: O projecto contou
com um director-executivo, três assistentes e dois conselheiros.
A realização é da inteira
responsabilidade do director-executivo, que, aliás, é quem figura como autor da
obra. Os assistentes, dois de S. Vicente e um do Fogo, são pessoas muito
próximas do autor e que à medida que o projecto avançava iam acompanhando o
trabalho feito, dando sugestões ou respondendo às interrogações do director-executivo.
Em alguns casos, houve apoio no levantamento terminológico junto dos dados
existentes no INAC/INIC. Os conselheiros, sendo um de S. Vicente e outro de
Santiago, tiveram por tarefa apurar, após a primeira versão do trabalho, se as
correspondências semânticas eram adequadas e se as classes gramaticais
atribuídas eram correctas. Podiam ainda, sem carácter vinculativo, dar
sugestões para completar ou para melhorar o trabalho.
3. Metodologia
3.1 - Modus
faciendi: Para a concretização do projecto, privilegiei a observação
directa, nos mais diversos sectores de actividade sociocultural. Sendo locutor
nativo, preferi o registo escrito à gravação. Por isso, adoptei o hábito de ter
sempre no bolso da camisa um pedaço de lápis e uma folha de papel.
Na vida familiar e
laboral, nos convívios de amigos, nas deslocações ao campo, frente a um palco
de teatro ou de qualquer outra manifestação cultural, e até junto da diáspora
caboverdiana, tinha sempre a preocupação de, discretamente, registar as
realizações pouco frequentes, tanto as que conhecia como as que desconhecia.
Tive ainda a preocupação de pedir a determinadas pessoas de registarem para mim
os termos mais típicos ou pouco frequentes que o seu trabalho ou a sua vivência
possibilitavam.
Procedi ainda a vários
levantamentos a partir de: obras escritas em Crioulo, arquivos das tradições
orais do INAC e do INIC, letras de música e de canções populares, glossários,
léxicos e dicionários ligados ao CCV. Pude ainda consultar as cerca de 5000
fichas linguístico-etnográficas do historiador António Carreira, que se
encontram depositadas no Arquivo Histórico Nacional. Tanto em casa como no
trabalho tinha um caderno de registo.
O material recolhido era
armazenado num banco de dados do programa Access,
onde, periodicamente, realizava algum tratamento, sobretudo para a eliminação
de repetições. Com medo de perder os dados, os mesmo eram gravados no
computador da Instituição onde trabalho, no computador familiar e ainda numa
disquete zip que adquiri para o
efeito, já que as disquetes normais eram demasiadamente pequenas para armazenar
tanto material.
A partir do registo
feito, normalmente na matriz de Santiago, ia-se à procura da correspondência
semântica na variante de S. Vicente e no português. Para tal, recorria com
frequência à competência dos meus assistentes, como ainda à dos amigos ou
colegas de trabalho que são nativos de S. Vicente. Não poucas vezes, tive
também a necessidade de consultar o Léxico… de Napoleão Fernandes, alguns locutores
nativos de Santiago como também alguns dicionários portugueses, por exemplo o Dicionário Prático Ilustrado, edição
actualizada e aumentada por José Lello e Edgar Lello, e ainda o Grande Dicionário da Língua Portuguesa,
de Cândido de Figueiredo.
3.2 – Escrita utilizada: Adoptei o alfabeto e
a escrita das bases do ALUPEC com algumas pequenas modificações*. Tal alfabeto é de base
fonético-fonológica, na medida em que cada letra ou dígrafo representa apenas
um som (ou fonema) e cada som é representado sempre pela mesma letra ou
dígrafo.
Como se sabe, o ALUPEC é
formado por vinte e três letras e quatro dígrafos, na seguinte ordem de
apresentação:
A
|
B
|
[C]
|
D
|
E
|
F
|
G
|
H
|
I
|
J
|
L
|
M
|
N
|
Ñ
|
O
|
P
|
K
|
R
|
S
|
T
|
U
|
V
|
X
|
Y Z
|
|||
a
|
b[c]
|
d
|
e
|
f
|
g
|
h
|
i
|
j
|
l
|
m
|
n
|
ñ
|
o
|
p
|
k
|
r
|
s
|
t
|
u
|
v
|
x y
|
z
|
Dígrafos: DJ, LH , NH, TX
As letras têm o mesmo
valor dos símbolos do alfabeto fonético internacional (AFI), havendo algumas
excepções: j tem o valor de [ʒ]; ñ é uma
semi-constritiva, velar, nasal – [ŋ]: ñanhi
(roer); x tem o valor de [ʃ].
O valor dos dígrafos, no AFI,
é a seguinte:
alupec
|
afi
|
ex. alupec
|
ex. afi
|
port.
|
||
Dj
|
=
|
[ʤ]
|
:
|
djanta
|
['ʤãtɐ]
|
«jantar»
|
Lh
|
=
|
[ʎ]
|
:
|
pilha
|
['piʎɐ]
|
«pilha»
|
Nh
|
=
|
[ɲ]
|
:
|
nha
|
[ɲɐ]
|
«meu/minha»
|
Tx
|
=
|
[ʧ]
|
:
|
txuba
|
['ʧubɐ]
|
«chuva»
|
A nasalização é feita por
n (ponba, pónta). Porém, a
nasalização do ditongo é feita com til (pon,
pãu). A conjunção copulativa e toma a forma de y («txuba txobe y agu kóre»). O pronome pessoal sujeito da primeira
pessoa é representado sempre por N
(«N krê») e o mesmo pronome quando é complemento é representado por m, em Santiago, e por me, em S. Vicente (da-m, dá-me).
Regras de acentuação: Há seis regras de acentuação (R1 – R6), as quais retratam
as cinco regras do ALUPEC, com ligeiras modificações em R2, R3, R4, R5:
R1
– A maior parte das palavras em Crioulo é paroxítona. Diz-se neste caso que a
sílaba tónica é preditível, não havendo por isso necessidade de representá-la
com um diacrítico.
Ex.:
banda, fidju, povu, txuba / banda, fidje, pove, txuva.
R2
– Nas palavras paroxítonas em que a vogal tónica é um e ou um o semi-fechado
ou semi-aberto (ê/é, ô/ó), o diacrítico é usado apenas sobre as vogais
semi-abertas, cujo rendimento funcional parece ser menor. A ausência do
diacrítico indicará a natureza vocálica oposta.
Ex.:
béku / beke, féra, róda, fera/feira, roda / rodá.
Do mesmo modo, quando a sílaba tónica
é uma vogal precedida de uma outra com que não forma sílaba, o diacrítico
reaparece.
Ex.:
saúdi / saúde, raínha, faíska, saída.
R3
– Todas as palavras proparoxítonas levam diacrítico, excepto alguns advérbios
de modo terminados em menti.
Ex.:
prátiku, sílaba, inplisitamenti / prátike, sílaba, inplisitamente.
R4 – As palavras oxítonas de mais de uma sílaba e as monossilábicas terminadas
por e ou o, seguidas ou não de s,
levam o diacrítico de acordo com a natureza vocálica.
Ex.:
kafé, mamá, fé, krê, dipôs,
purtugês / kafê, mamâ, fê, krê,
despôs, purtugês.
Esta regra não se aplica aos
adjectivos possessivos e aos pronomes pessoais, que não levam diacrítico, salvo
bosê, de-bosê, nósa, de-nósa.
Ex.: bo, abo,
anho, anos, ami.
Nos pares mínimos, a
nível da acentuação, leva diacrítico a vogal mais aberta.
Ex.:
mas/más, pa/pá.
As monossilábicas
terminadas por a, i, u,
seguidas ou não de s, não levam
diacrítico, salvo quando se trata de palavras homófonas.
Ex.:
pas, la, li, ti, dju,
ku/kú, nu/nú.
Nas variedades de
Barlavento, do Fogo e da Brava todos os verbos regulares são oxítonos e levam
sempre o diacrítico, de acordo com a natureza vocálica.
Ex.:
S. Vicente: falá, kemê, durmí, pô, lanbú.
Fogo: papiâ,
kumê, durmí, pô, lanbú.
R5
- As palavras terminadas por l, n, r
normalmente são oxítonas e, por isso, não levam diacrítico, já que este é
preditível. O mesmo só aparece quando se torna necessário indicar a natureza
vocálica da vogal semi-aberta (dór)
ou então quando a palavra não é oxítona.
Ex.:
profesor, amor, baril, sentral, kanson, jóven, inposível.
R6
– As palavras terminadas por um ditongo precedido de consoante são,
normalmente, oxítonas, não precisando de diacrítico. Sempre que a regra não se
verificar reaparece o diacrítico, de acordo com a natureza vocálica.
Ex.: balai, sabedoria, liseu, sirkunstánsia.
Quando, nas mesmas circunstâncias, o
acento tónico cai na última vogal, e não na primeira, o diacrítico reaparece,
de acordo com a natureza vocálica.
Ex.: luâ, buâ.
Obs.: Em txapéu o diacrítico indica
a natureza vocálica e não a sílaba tónica que é preditível. Em patrísiu usa-se o diacrítico porque a
palavra, embora termine por um ditongo, precedido de consoante, é paroxítona.
Em praia e feiu segue-se a R1 já que terminam por ditongo que não é precedido
de consoante, como estipula a R6.
Note-se que todas e cada uma das
entradas do presente dicionário enquadram-se numa das seis regras de acentuação
acima referidas.
4. Conteúdo
4.1 – Abrangência: O projecto inicial previa
um total de dez mil entradas (ver o conceito de entrada em 1.2). Porém, acabei por atingir mais
de dezasseis mil e quinhentas entradas, tendo ficado com a consciência de o
trabalho ter ficado incompleto, já que cada dia que passa dou-me conta de que
há termos que não cheguei a registar.
Também os nomes de plantas,
frutas, peixes, categorias profissionais, objectos etnográficos, práticas
religiosas e filosóficas, têm uma presença pouco representativa na obra. Do
mesmo modo, as particularidades das ilhas, outras que não Santiago e S. Vicente,
são exíguas. Os cinco anos de investigação - com a preparação de uma tese de
doutoramento pelo meio e um financiamento externo que cobriu apenas um ano de
investigação – não me permitiram ir mais longe, numa altura que não me faltavam
nem forças, nem predisposição. Trata-se, pois, de um dicionário elementar,
elementar quanto ao universo lexical do CCV, mas também elementar quanto à sua
apresentação. O objectivo de fixar a palavra como conceito existente e como
forma escrita, à base do
ALUPEC – um modelo ainda desconhecido do grande público –, exigia uma
apresentação simples, económica, directa e de grande expressão visual. Por ter
usado uma escrita de base fonético-fonológica, achei que a transcrição fonética
era dispensável. O dicionário é ainda elementar dado a insuficiência de
descrição ou de contextualização dos diversos sentidos que uma mesma forma
semântica pode ter.
Contento-me, pois, em ver
este dicionário como uma espécie de «léxico fundamental» do CCV, isto é, um
léxico reduzido, mas que satisfaz a comunicação corrente do dia-a-dia. Um
léxico reduzido, mas que comporta um número significativo de palavras e de
expressões que corriam o risco de desaparecer ou de perder a fonética e/ou a
forma que a índole do CCV lhes imprimiu através dos tempos.
4.2 – Variedades contempladas: Em Cabo Verde,
qualquer estudo linguístico e sociolinguístico nos leva a concluir que as actualizações
do Crioulo com maior representatividade e com maior peso no processo de
estandardização são a de Santiago (St) e a de S. Vicente (Sv). A matriz de
Santiago é importante, pelas seguintes razões: é a mais antiga do Arquipélago,
tendo a sua formação começado a processar-se desde os meados do século XV;
sociolinguisticamente, é aceite em todas as ilhas do Sul, já que a sua
estrutura é muito próxima da expressão linguística dessas ilhas; ela está ainda
na base da formação de todas as outras expressões linguísticas do Arquipélago;
linguisticamente, é a actualização com maior grau de autonomia gramatical,
tanto a nível fonético, morfológico como sintáctico; demograficamente, cobre
mais de metade da população residente no país; cientificamente, é a que neste
momento possui mais estudos académicos, tanto de nacionais como de
estrangeiros; literariamente, é a expressão linguística com mais trabalhos a
nível de prosa, possuindo também vários trabalhos poéticos; culturalmente, é veículo
e suporte das manifestações culturais mais típicas do Arquipélago, como o
batuque, a tabanca o funaná...
Por outro lado, a
variedade de S. Vicente, apesar de ser das mais recentes, já que o povoamento
da ilha começou nos finais do século XVIII, mais de trezentos anos após o de
Santiago, possui, apesar de tudo, um certo prestígio. Com efeito, ela é aceite
em toda a zona Norte e isto decorre do facto de ela representar uma espécie de
unificação das expressões linguísticas de Santo Antão, S. Nicolau e Boavista.
Estas três ilhas contribuíram para a sua formação e é por isso que a variedade
de S. Vicente é aí compreendida e aceite. A ilha do Sal, que se encontra na
mesma zona, possui uma expressão mais recente que a de S. Vicente e o falar aí
existente tem na sua origem os falares de S. Nicolau e da Boavista que, por sua
vez, estiveram na origem do falar sanvicentino. Daí a razão por que também no
Sal a variedade de S. Vicente é aceite.
É tendo em conta a
importância das duas expressões
linguistícas do CCV com maior força e
prestígio que, tanto no estudo gramatical como no lexical que tenho levado a
cabo, quis privilegiar matriz de
Santiago e a variante de S. Vicente. Penso, no entanto, que essas duas
expressões constituem apenas elementos de referência fundamental na
estandardização do CCV, já que as particularidades significativas de todas as
outras expressões dialectais devem ser tomadas em devida conta.
A representação Ov é pouco significativa, não porque
assim deve ser, mas porque não tive tempo suficiente, nem meios disponíveis,
para fazer o levantamento nas ilhas outras que não Santiago e S. Vicente. O
projecto inicial previa esse levantamento, mas, infelizmente, falhou o
financiamento. O facto ainda de existirem poucos trabalhos escritos nas variantes
não tratadas ou deficientemente tratadas, dificultou o levantamento desejável.
A ilha da Boavista, graças ao recente livro Perkurse
de Sul d’Ilha, 1999, de Eutrópio Lima da Cruz, tem uma presença de mais de
500 “entradas” neste dicionário, o que não aconteceria se eu não tivesse acesso
a uma tal obra, já na recta final do projecto.
Tudo isto para dizer que
o meu dicionário, apesar de considerá-lo importante, e isto tendo em conta os
objectivos propostos, contudo ele não me satisfaz. Mas quem faz o que pode, a mais não lhe deve ser exigido.
4.3 – Procedência dos registos: Há quem
pense, como por exemplo o linguista francês Nicolas Quint, que o verdadeiro
crioulo caboverdiano é tão-somente o das zonas rurais, sobretudo o dos
iletrados. Ora, eu penso que o crioulo caboverdiano é o que é falado pelo povo
de Cabo Verde, letrado e iletrado, de Santo Antão à Brava, do campo à cidade.
Este mesmo Crioulo, como é normal, tem variantes e tem expressões dialectais.
Um dicionário, minimamente representativo, deve poder dar conta não só da
prática como também do mosaico linguístico do CCV. Um dicionário que, com a
preocupação de ser genuíno, se preocupar apenas com a realização dos camponeses
iletrados não terá utilidade prática, e isto porque os iletrados não saberão
fazer uso do mesmo e os letrados não se sentirão à-vontade no meio de termos e
expressões que não conhecem ou que habitualmente não usam.
Pelo contrário, um
dicionário que dá atenção ao mundo rural, sem desprezar a vivência urbana,
estimula o intercâmbio e a aprendizagem dos dois mundos.
Estou consciente de que é
preciso evitar a hipercorrecção (lusitanização abusiva do CCV) muito frequente
nas zonas urbanas e junto dos letrados. Do mesmo modo, penso que não se deve
impor formas ou práticas linguísticas em desuso ou em decadência só porque um
punhado de camponeses as utiliza ou as utilizava. O dicionário, podendo, deve
registar essas práticas, com a informação de que são arcaicas, como também deve
registar as práticas de letrados e de citadinos, desde que elas tenham já
entrado no léxico, na morfologia e na sintaxe do CCV, sem comprometer a sua
autonomia.
É por isso que os
registos do meu dicionário têm diversas procedências: o campo, a cidade, os
letrados, os iletrados, os arcaísmos, os neologismos.
Não fiz nenhuma inovação.
Assim como o Petit Robert não é um
registo apenas do universo lexical dos camponeses franceses, assim também este
meu dicionário não poderá ser apenas o registo lexical dos camponeses de
Santiago. Alguém dirá que muitos registos são próximos do português e eu direi
que isto é normal porque o português é uma das matrizes fundamentais do CCV,
assim como o latim foi uma matriz fundamental para todas as línguas românicas e
o inglês, hoje, no domínio tecnológico, tem sido uma fonte de enriquecimento de
várias línguas.
5. Visão prospectiva
A oficialização do CCV é o objectivo maior
tanto da nossa Introdução à Gramática,
como deste Dicionário. A verdadeira
afirmação do CCV acontecerá no dia em que o mesmo for introduzido no sistema de
ensino. A geração que vai dominar a ciência do CCV será aquela que vier a ter a
sorte de estudá-lo formalmente nas estruturas da educação. E isto exige
recursos humanos, materiais e didácticos. O presente dicionário é já um esforço
de contribuir para a existência de algum material didáctico. Com esta obra e
com as outras que tenho publicado até agora, nomeadamente a Diskrison Strutural di Lingua Kabuverdianu, o
Odju d’Agu, a Introdução à Gramática e O Caboverdiano em 45 Lições, penso ter
honrado o meu compromisso, isto é, o de contribuir para a afirmação de um
triângulo linguístico que tem num dos lados a escrita, noutro a gramática
e no terceiro o dicionário.
Tenho consciência, no
entanto, que muito caminho resta ainda para ser andado. E o desbravar desses
caminhos passa pela formação de linguistas e pela disponibilização de recursos.
Os que decidem pelo futuro deste país têm que ser coerentes e consequentes,
pelo menos com os documentos que aprovam e com as posições que assumem
publicamente. A Resolução do Conselho de Ministros n.º 8/96, relativamente ao
Programa governamental, diz, em matéria de língua nacional:
«O Governo pretende (…) com
base em estudos científicos que vêm sendo desenvolvidos por técnicos
competentes na matéria, fixar metas e determinar etapas, para a oficialização
do crioulo (…) ao lado do português…»
Uma outra Resolução, n.º 8/98,
publicada no BO n.º 10, dizia que
«Será valorizado,
progressivamente, o crioulo cabo-verdiano, como língua de ensino».
Também em
Julho de 1999, aquando da revisão da Constituição, frente ao posicionamento do
maior Partido da Oposição, que reclamava a «oficialização em construção» do
Crioulo, o Partido da Situação, que dispunha de uma maioria qualificada na
Assembleia Nacional, mandou consagrar um dispositivo segundo o qual o Governo
deve criar as condições necessárias para a oficialização da língua caboverdiana
em paridade com a portuguesa[†].
Será que as
«Resoluções» atrás referidas e o dispositivo constitucional serão respeitados?
Espero e desejo firmemente que assim seja. Para além do meu desejo e do meu
trabalho, nada mais posso fazer. A minha geração, como a dos meus filhos, não
puderam, mesmo num Cabo Verde independente, há vinte e cinco anos, estudar o
Crioulo nos bancos da escola. Se por ventura tiver a sorte de ver as gerações
mais novas a terem este privilégio, considerarei que valeu a pena o trabalho
feito e os sacrifícios consentidos.
Praia,
Novembro de 2000.
Manuel
Veiga
[*] Jürgen Lang e a sua equipa virão a
publicar, no ano 2000, o DICIONÁRIO do CRIOULO da ILHA de SANTIAGO, com oito
mil “entradas”, possivelmente o mais completo trabalho lexicográfico
existente até então.
*
Modificações: a) a letra passa a ser representado por ñ ; b) as regras de acentuação n.os 3,
4, e 5 passam a ter uma redacção ligeiramente diferente, como à frente se pode
verificar.
[†] Em
2005, cinco anos após a elaboração desta Introdução, o Governo da VI
Legislatura, através da Resolução 48/2005, de
14 de Novembro, virá a aprovar “As Linhas Estratégicas para a Afirmação
e Valorização da Lingua
Língua
Caboverdiana” e que estipula, entre outras acções: que na Administração, o uso da Lingua Caboverdiana seja livre; que as Instituições superiores e públicas de ensino devem introduzir o ensino da Língua Caboverdiana como matéria; que nas aeronaves, na literatura e na comunicação social se deve encorajar o uso da Língua Caboverdiana; que o estudoe a investigação sobre a língua caboverdiana devem ser desenvolvidos e estimulados.
Língua
Caboverdiana” e que estipula, entre outras acções: que na Administração, o uso da Lingua Caboverdiana seja livre; que as Instituições superiores e públicas de ensino devem introduzir o ensino da Língua Caboverdiana como matéria; que nas aeronaves, na literatura e na comunicação social se deve encorajar o uso da Língua Caboverdiana; que o estudoe a investigação sobre a língua caboverdiana devem ser desenvolvidos e estimulados.
Gostaria de saber onde posso adquirir um dicionário de caboverdiano/português.
ResponderEliminarO meu genro, apesar de ser português, é de origem caboverdiana, fala criolo e faz questão de fala-lo com o meu neto, de forma a que ele também aprenda a língua dos avós.
Como tal, também gostaria de aprender a falar criolo, não só para os entender quando falam um com o outro, mas também para eu poder tentar também, falar com eles.
Estive recentemente no Mindelo e procurei lá mas não encontrei nas livrarias
Nas livrarias da Biblioteca Nacional, na Praia e no Mindelo, encontrará o dicionário, em referência. Penso que um outro livro que lhe pode ser muito útil é O Caboverdiano em 45 Lições, da minha autoria.
ResponderEliminarManoel, Sou Brasileiro e estudo Kabuvedianu há algum tempo, mas devido à falta de material percebo lacunas na minha competência com a língua. Existe a possibilidade de eu comprar esse dicionário e o eu livro "O Caboverdiano em 45 Lições" pela internete?
ResponderEliminarAmbos os livros estão disponíveis no Instituto da Biblioteca Nacional, na Cidade da Praia. Não sendo possível comprar esses livros através da Net, poderá fazê-lo através da embaixada do Brasil ou do Centro Cultural Brasileiro na Praia.
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