quinta-feira, 29 de setembro de 2022

 

Processo de Afirmação da Escrita do CCV

(Do século XIX à Atualidade)

 

No âmbito da 2ª edição da presente obra, esgotada há muito tempo, e objeto de uma grande procura, decidi introduzir este Anexa A para abordar a questão do processo de afirmação da escrita e do alfabeto do crioulo, já que se trata de algo que tem provocado muito debate e alguma polémica em Cabo Verde.

Proponho abordar os seguintes pontos:

·        Pioneirismo de Francisco Adolfo Coelho (FAC) e de António de Paula Brito (APB);

·        Convergência e Divergência dos Alfabetos de FAC e de APB;

·        Experiência Convergente e Divergente de Eugénio Tavares e de Pedro Cardoso;

·        Contributo de Napoleão Fernandes;

·        Prática de Alguns Letrados na Segunda Metade do Século XX;

·        Colóquio Linguístico de 1979 – Rotura e Continuidade

·        Fórum de Alfabetização Bilingue, em 1989, para a Refundação do Alfabeto de 1979;

·        Proposta do Grupo de Padronização e Aprovação do ALUPEC (1994-1998);

·        Institucionalização do ALUPEC (2009);

·        Regras de Acentuação no ALUPEC;

·        Consenso e Dissenso na Prática do ALUPEC (1998-2020).

 

Chamo especial atenção para o penúltimo ponto, isto é, as seis regras de acentuação avançadas pelo Grupo de Padronização. As mesmas foram enriquecidas, posteriormente, com a introdução de propostas minhas, com base numa experiência mais consistente da escrita adquirida no magistério do crioulo no Curso de Formação de Professores do Ensino Secundário desde 1980, e na Uni-CV, de 2010-2014; no Mestrado de Crioulística e Língua Caboverdiana, na mesma Universidade de Cabo Verde, de 2010-1013; na elaboração e publicação da 1ª edição do Caboverdiano em 45 Lições (2002); na primeira, na segunda e terceira edições do romance Odju d’Agu (1987, 2009 e 2019); na elaboração e publicação da 1ª e 2ª edições do Dicionário Bilingue Crioulo-Português (2011 e 2012); em alguns ensaios constantes da obra A Palavra e o Verbo (2016) e, mais recentemente, na narrativa romanesca Profecias do Ali-Ben-Ténpu (2019), uma expressão aproximada de romance histórico, em 50 estações, sendo estas, alternadamente, em crioulo e em português. Ainda, com base num trabalho, com ais de 40 anos de reflexão, sobre Formação do Crioulo – Matrizes Originárias (2020).

Em todo esse processo, de investigação permanente, de magistério e de alguma prática literária, foi crescendo a minha experiência, a qual foi consolidando a minha prática de escrita e do funcionamento do crioulo.

E se chamo especial atenção para as regras de acentuação é, tão-somente, porque nelas continua a existir maior dissenso entre os vários utilizadores e defensores da afirmação e valorização da nossa língua materna.

Retomando os vários pontos do presnete Anexo:

 

1.     Pioneirismo de Francisco Adolfo Coelho e de António de Paula Brito

 

A escrita de uma língua exige um alfabeto estruturado e um conjunto de procedimentos que permitem clarificar a função e a natureza das letras, das palavras e de outras combinações, procurando sempre a economia, a clareza e a pertinência linguísticas, e evitando, sempre que possível, a confusão.

A função da escrita é subsidiária. Ela representa a língua. É por isso que deve comportar quatro características fundamentais, quais sejam: a funcionalidade, a sistematicidade, a economia e a clareza.

A escrita do crioulo caboverdiano, tendo em conta os documentos que até este momento se conhece, começou, timidamente, no século XIX, com Francisco Adolfo Coelho, um português formado em Filologia Românica. O mesmo, com apoio de um caboverdiano, o senhor César Augusto de Sá Nogueira, e a partir de análise de cartas e de adivinhas, em crioulo, começou, com base no alfabeto português, a esboçar algum estudo de textos, nos aspetos fonéticos, morfológicos e lexicais.

As reflexões de Francisco Adolfo Coelho foram publicadas, pela primeira vez, em 1880, na revista da Sociedade de Geografia de Lisboa, com o título de “Os Dialectos Românicos ou Neo-Latinos em África, na Ásia e América Latina[1].

Na mesma década, mais precisamente em 1888, o caboverdiano António d’Paula Brito, um profundo conhecedor do crioulo, com base num alfabeto fonológico[2], que ele mesmo criou, sendo o mesmo funcional, económico e sistemático, publicou, na já mencionada revista da Sociedade de Geografia de Lisboa, uma edição bilingue de “Apontamentos para a Gramática do Crioulo que se Fala na Ilha de Santiago de Cabo Verde[3].

A proposta de alfabeto concebido, apesar das suas importantes caraterísticas, acima mencionadas, do meu conhecimento, foi utilizado apenas pelo seu promotor, provavelmente por causa da rotura com o sistema, até então vigente.

2.     Convergência e Divergência entre Francisco Adolfo Coelho e António d’Paula Brito

O alfabeto e a escrita de Francisco Adolfo Coelho são baseados no alfabeto e na escrita do português. Diferentemente é a proposta de António d’Paula Brito que se configura como algo novo, ousado, quase revolucionário. Verifica-se a correspondência de algumas letras, entre as duas propostas, porém, com funções diferentes.

Eis a representação das duas propostas:

 

Francisco Adolfo Coelho (FAC)

António d’Paula Brito (APB)

A, B, C, D, E, F, G, H, I, J, K, L, M, N, O, P, Q, R, S, T, U, V, X, Y, Z

A, B, CH, D, E, F, G, I, JH, J, K, L, M, NH, N, O, P, R, RR, S, T, U, V, X, Z.

 

Alguns Exemplos:

CH, chôn

J, fója

C, crê, cedo

G,  algun;

G, fugi

S,  sabê, casa (z)

SS, gossin

 

CH, chõ

JH, fójha

K, krê, sédu

G, algũ

J, fuji

S, sabê, kasa (s)

S, gosĩ

 

É notória a diferença entre os dois modelos, sendo certo que o de APB é mais sistemático e mais económico. Com efeito, enquanto na proposta de FAC temos três representações, por exemplo, para o fonema /s/ (cedo, sabê, gossin), na de APB só há uma única representação (sédu, sabê, gosĩ).

O mesmo acontece em FAC com  o fonema /j/ representado por j e por g (fuji, geral) que na de APB é unicamente representado por   j: fuji, jeral.

Em FAC encontramos dois dígrafos (ch, ss - chôn, gossin). Também em APB há dois dígrafos (ch, jh – chõ, fójha). Em FAC a nasalização é feita sempre por n (mesmo antes de b e p) e em APB ela é feita sempre por til.

O FAC apresenta a primeira pessoa do pronome pessoal por en (en crê) e o pronome pessoal complemento da primeira pessoa  por –n (da-n).

Porém, o APB representa a primeira pessoa do pronome pessoal por ĩ (ĩ krê) e a primeira pessoa do pronome pessoal complemento por ‘m  (da’m).

 

Basicamente, a proposta de APB é mais económica e mais sistemática porque o mesmo fonema tem sempre a mesma representação, o que não acontece com a proposta de FAC em que o mesmo fonema pode contar com mais do que uma representação.

Apesar de tudo, a inteletualidade, durante a segunda metade do século XIX e a primeira metade do século  XX, privilegiou a proposta de FAC (com maior aproximação ainda ao alfabeto português), salvo na questão da nasalização, ficando a proposta de APB confinada, ao que tudo indica, apenas ao seu proponente.

Note-se que em ambos os proponentes, não há o som lh. Provavelmente, este som só viria a entrar no crioulo depois do século XIX. Constata-se ainda que no século XIX o aspeto verbal (forma indefinida no passado anterior, que hoje se realiza: da (flada) tinha outra realização em APB: fladuba.

 

3.     Experiência Convergente e Divergente de Eugénio Tavares e de Pedro Cardoso

 

Alguns intelectuais caboverdianos estimam que a escrita do crioulo deveria basear-se na dos que eles consideram “mestres”, isto é na de Eugénio Tavares e Pedro Cardoso.

Acontece que estes “mestres” praticavam o mesmo modelo de alfabeto, mas com algumas diferenças bem vincadas. Senão vejamos:

PEDRO CARDOSO

CH: crechêu, chorâ

TCH: mátcho, tchapéu

CH , X:  conchê, xinti

J  (dj, j): judâ-m’; bêja’l

Dj: bédjo

Dg (dj): dgêntes; n’bondge

LH  (dj): belha, mulhê

G (j): longe

G (g): co gostu

M’ : M’bêm

-m’, -’n (-m): xa-m’; dá-m’/dâ-’n

 

EUGÉNIO TAVARES

CH: ficha, chigâ

TCH: cretcheu, q’ré

CH, X: cheio, dixam

J (dj, j): fijo, juizu

Dj (odjá)

?

?

G (j): fugi

G (g): graça, geto

‘N, ‘M: ‘N ca pedi;’M ta dixóbe

m, ‘n  (-m): dixam, da’n

 

 

Pedro Cardoso utiliza quatro formas para a representação dj: j, dj, dg, lh (juda-m, bedjo, dgêntes, belha). O mesmo utiliza duas formas para a representação do tx: ch, tch (crecheu, chorâ, matcho, tchapéu).

Curiosamente,  umas vezes utiliza o ch para representar o som x, e outras vezes é o próprio x que utiliza (conchê, xinti).

Eugénio Tavares, porém, usa apenas duas formas para o mesmo som: j, dj (fijo, odjá). Quanto ao som tx, como Pedro Cardoso, utiliza as duas representações: ch e tch (ficha, chigâ, cretcheu). Para ele também o ch, juntamente com o x podem representar o som x (cheio, dixam).

Há diferenças ainda na representação dos pronomes pessoais sujeito e complemento.

Pedro Cardoso: M’ (‘M bêm); -m, -‘n (xa-‘m; dá’m, dâ’n).

Eugénio Tavares: ‘N, ‘M (‘N ca pedi; ‘M ta dixóbe; dixam, da-n).

Perante essas diferenças, a qual dos “mestres” se deve seguir?

Mais: porque é que em todo o tecido social se aceita a evolução e a transformação e na escrita do crioulo há quem pense que a renovação é um atentado aos bons costumes e à inteligência?

Aliás uma participante, conhecida intelectual, afirmou, num encontro de apresentação da revista “Vozes das Ilhas”, publicada em Outubro de 2014, que “o ALUPEC é um alfabeto para atrasados mentais”. Essa senhora esqueceu-se que esse alfabeto foi proposto em 1994 pelo Grupo de Padronização, integrado por técnicos de reconhecido mérito; foi aprovado, a título experimental, através do decreto-lei 67/98, de 31 de Dezembro, em sede de um Conselho de Ministros que, seguramente não era formado por mentecaptos; o mesmo ALUPEC viria a ser institucionalizado como Alfabeto Caboverdiano, por um outro Conselho de Ministros, através do decreto-lei 8/2009, de 16 de Março, Conselho este que, certamente, era formado por gente de mente sã.

Mais: Os vários académicos nacionais e estrangeiros, que desde 1998 passaram a adotar o ALUPEC, em vários estudos sobre o crioulo, não são, seguramente, atrasados mentais. É caso para se perguntar se atrasado mental é quem trabalha na base de estudos científicos, ou quem faz afirmações emotivas, com base em “achismo”?

É estranho, ainda, que entre os que reclamam a escrita dos “mestres” haja quem ache normal a evolução da escrita do português, e uma aberração a do crioulo. Com efeito, Gil Vicente não escrevia como Camões; Fernando Pessoa escrevia diferente do português que hoje praticamos; a reforma da escrita de 1911 é diferente da proposta em 1990. Alguns dos que acolhem com abertura as reformas e mudanças operadas na escrita do português, estranhamente, em se tratando da escrita do crioulo, entendem que a praticada na primeira metade do século XX, pelos ditos “mestres”, deve ser intocável.

 

4.     Contributo de Napoleão Fernandes (NF)

 

Na primeira metade do século XX, um outro contributo importante sobre a escrita do crioulo é dado pelo Napoleão Fernandes, no seu Léxico do Dialecto Crioulo de Cabo Verde, publicado em 1971 pela filha Ivone Ramos, mas cujo início da elaboração data da segunda década, do século XX.

O alfabeto usado por NF é baseado no alfabeto português, mas com uma grande preocupação de sistematicidade. Ao que parece, ele terá tido, também, a influência do alfabeto de António d’Paula Brito, particularmente na representação do som por jh (jhabacós).

Outros casos de sistematicidade, para além do som “dj” representado sempre por jh, há o som “tx” representado sempre por ch (cheo, chabe); o som “x” é representado por sh e por x (shá, xixi); o som “j” é representado por j e por g (corajo, corage); o som “k” é representado por c e por q (cóche-cóche, q’rêcheo).

A conclusão que se pode tirar é que, depois do alfabeto de António d’Paula Brito, e antes do ALUPEC, o de Napoleão Fernandes é o alfabeto com maior grau de sistematicidade, no seu tempo, superando mesmo o dos ditos “mestres”, embora ainda com forte influência do modelo de alfabeto português.

 

5.     Prática da Escrita por Parte de Alguns Letrados, na Segunda Metade do Século XX

 

A partir dos anos 60 do século XX, alguns letrados, como Ovídio Martins, Kaoberdiano Dambará, Luís Romano, Sergio Frusoni e outros usaram o alfabeto português como referência (com ligeiras alterações como no caso de Kaoberdiano Dambara que privilegia a representação k, em detrimento do c e do q).  Vejamos alguns exemplos:

Ovídio Martins – Nele encontramos as representações tch, dj, q, c (tchegá, qré, qond, cabeverdióne). A particularidade de Ovídio Martins consiste sobretudo no emprego do q em palavras como:  qré, qretcheu, qond …

 

Kaoberdianu Dambará – usa as formas tch e dj (atchal, djunta), como Ovídio Martins. Porém, a sua particularidade reside no emprego do k, à maneira de António d’Paula Brito (kussa).

 

Luis Romano – Usa o alfabeto português com algumas adaptações: tch (tchorá); M’ (M’ta presenciá), à maneira de Eugénio Tavares e Pedro Cardoso; q (qris), à maneira de Ovídio Martins. Na amostra que consultamos, não chegamos a descobrir o uso de dj.

 


Sergio Frusoni – Tem uma escrita totalmente baseada no alfabeto português.  Em Vangêle Contód d’Nos Moda, ele escreve:

Na principe éra VÊRB e VÊRB é DÊUS/. Tude côsa foi crióde na sê jête,/ e sem El ca fazid nada do qu’ê fête/ N’El era vida e vida ê luz d’Cêus”.

Não há dúvida que o legado do alfabeto português, em relação à escrita no crioulo, apesar da sua falta de economia e de sistematicidade é grande. Apenas o António d’Paula Brito se afastou do alfabeto português, embora ele também tenha nele bebido a forma de representação de algumas letras (a, b, d, e, f, g, i, j, l, m, n, o, p, r, s, t, u, v, x, z). A grande diferença está na economia e na forma sistemática como utiliza essas letras, as quais cada uma representa sempre o mesmo som. É pena que, quando em 1979 foi avançada uma proposta de alfabeto fonológico que privilegia a economia e a sistematicidade, na representação dos sons (em que um som é representado tendencialente, por uma letra e vice-versa), os seus promotores, ao que tudo indica, desconheciam, na altura, a proposta de António d’ Paula Brito. Eu, por exemplo, na altura, desconhecia um tal modelo.

 

 

6.     Colóquio Linguístico de 1979 – Rotura e Continuidade

 

Como ficou demonstrado atrás, a falta de sistematicidade e de economia era a caraterística geral da escrita, em crioulo, desde o século XIX, até ao Colóquio Linguístico de 1979, com a exceção da praticada por António d’Paula Brito.

Foi nesse Colóquio que se dá uma outra grande rotura com a prática então vigente.

Para introduzir maior sistematicidade e maior economia na escrita da língua materna, os participantes foram ousados em apresentar uma proposta de alfabeto de base fonético-fonológica, onde a um som correspondia sempre a mesma letra e vice-versa.

Eis a representação desse alfabeto: A B D E F G H I 𝑍̂ K L 𝐿̂ M N 𝑁̂ 𝑁̈ O P K R S T U V 𝐶̂ 𝑆̂ Z.  Note-se que, de uma forma geral, o circunflexo é sinal de palatalização. Assim 𝑍̂, 𝐿̂, 𝑁̂, 𝐶̂, 𝑆̂ representam, no ALUPEC, os sons J, LH, NH, TX, X. O 𝐽̂ representa o som “dj”. O 𝑁̈representa o som gutural, nasal, oclusivo e que se encontra em palavras como 𝑁̈anhóma, 𝑁̈anhi. 

Trata-se de um alfabeto que marca a rotura com a prática até então em vigor. Por isso, foi praticado apenas por alguns seguidores, tendo servido de suporte na elaboração de dois romances, respetivamente a 1ª edição de Odju d’Agu e Perkurse d’Sul d’Ilha (a escrita foi adaptada segundo o ALUPEC). Uma grande parte dos utentes não sufragou a proposta de 1979 e apelidava-a de alfabeto-chapéu, porque usava o circonflexo como sinal de palatalização, por cima de letras como: Z, L, N, C, S, J.

Urgia, pois, uma refundação do alfabeto para não comprometer o desenvolvimento e afirmação da escrita do crioulo.

 

7.     Fórum de Alfabetização Bilingue

 

Na década de 1980, o Governo suíço apoiava um programa de alfabetização em Cabo Verde. Uma das condições exigidas era que a alfabetização tinha que ser bilingue, isto é: em português e na língua materna. Não querendo perder o financiamento, o Governo caboverdiano de então contratou uma assessoria portuguesa para a elaboração de um manual e de uma proposta de gramática, ignorando a competência nacional e técnicos, na matéria. Para a socialização dos mesmos, foi organizado um Fórum em 1989, dez anos após a proposta de 1979.

À assessoria portuguesa, embora possuindo algum conhecimento do crioulo, faltava-lhe o domínio do génio próprio dessa língua. Por isso, o material que preparou foi profundamente criticado, a ponto de o Ministro da Educação ter chamado de “inconveniente” a um dos participantes críticos. O impasse foi tal que um outro participante, o falecido Jorge Alfama, propôs a criação de um Grupo de Trabalho para estudar a proposta da assessoria portuguesa e avançar com um parecer concreto para a saída do impasse.

O Grupo acima referido acabaria por ser criado com o nome de Comissão Consultiva, integrada apenas por técnicos nacionais.

Ora, o parecer dessa Comissão foi no sentido de se proceder a uma refundação do alfabeto proposto em 1979. Nessa refundação se deveria ter em conta a sistematicidade do alfabeto, com alguma concessão, particularmente no que tange à representação das consoantes palatais, mesmo que em detrimento da economia linguística. Para tal, reconcomendou a criação de um grupo de padronização.

 

8.     Grupo de Padronização

 

O mesmo só viria a ser criado em Novembro de 1993, com um horizonte de seis meses para apresentação dos resultados das suas reflexões.

Em Maio de 1994, o Grupo de Padronização apresentaria uma Proposta de Bases do Alfabeto Unificado para a Escrita do Caboverdiano – ALUPEC, (ver a publicação dessas Bases pelo IPC, 2006). O termo “unificado” é porque unifica dois modelos de alfabeto (o de base etimológica e o de base fonológica). A explicação, ainda, é porque pode servir para a escrita de todas as variantes e variedades do crioulo.

A Proposta só viria a ser publicada, para ser usada, a título experimental, em 1998 (ver Decreto-Lei 67/98, de 31 de Dezembro).

A principal novidade da Proposta consistia na retoma do alfabeto de base etimológica para a representação das consoantes palatais, como segue: TX, DJ, NH, X, J, LH. A oclusiva gutural nasal continua com a mesma apresentação proposta em 1979, isto é: . Os sons K, S, X, Z tinham sempre a mesma representação qualquer que fosse o contexto onde surgiam. O G era sempre G e nunca J, da mesma forma que o S nunca se realizava como Z. Também o X era sempre representado assim e nunca com a forma CH.

A proposta do Grupo de Padroniza, embora continue a ser criticada pelos defensores da escrita dos “mestres”, atrás referida, foi mais consensual que a proposta de 1979.

 

9.     Institucionalização do ALUPEC como Alfabeto Caboverdiano

 

O ALUPEC, aprovado a título experimental, por um período de cinco anos, continuou experimental por cerca de 10 anos. Em 2008, o então Presidente do Grupo de Padronização passou a exercer o cargo de Ministro da Cultura. Ele que já era possuidor de um diploma de doutoramento na área da crioulística, quis mandar fazer um balanço sobre a pertinência e o grau de aceitabilidade do ALUPEC. Para tal, mandou auscultar vários utilizadores e realizou um encontro-debate, de uma semana, com alguns utilizadores do crioulo e isto para poder ter maior força no Conselho de Ministros, no momento do debate sobre a Institucionalização do ALUPEC como Alfabeto Caboverdiano.

Constatou-se que desde a aprovação experimental do ALUPEC, em 1998, foi este o modelo de alfabeto usado na investigação académica e no magistério do crioulo tanto dentro como fora do País. Era largamente usado em produções literárias e musicais. Mais tarde, algumas confissões religiosas[4] encetariam a tradução de parte da Bíblia nesse alfabeto. Por isso, era judiciosa a institucionalização do ALUPEC, embora se constatasse a necessidade de o mesmo continuar a ser aprofundado, em alguns aspetos, nomeadamente no que tange à acentuação, à representação da conjunção coordenada copulativa “Y”, e ao uso do som palatal “LH”. Entendeu-se ainda que a letra “C” deveria ser introduzida para a escrita de nomes próprios (Cabral), para siglas como TACV, CPLP; para a representação de símbolos internacionais como etc., cm, cl …; para a representação de marcas como Vitamina C; numeração romana: C, CC…

A consoante gutural nasal oclusiva, para facilitar a sua representação ( em máquinas de escrever e computador), passou a ser Ñ, em vez de  N (+trema).

O Conselho de Ministros acabou por aprovar a justeza dos argumentos então apresentados e o ALUPEC foi institucionalizado, com adaptações sugeridas, como Alfabeto Caboverdiano, pelo decreto 8/2009, de 16 de Março.

Assim, ficou constituído por 25 letras e 4 dígrafos:

 

Letras 

A  B  C  D  E  F  G  H  I  J  K  L  M  N  Ñ  O  P  R  S  T  U  V  X  Y  Z

Dígrafos

DJ, LH,  NH, TX.

 

 

10. Consenso e Dissenso na Prática de ALUPEC

 

A padronização do alfabeto e da escrita é um processo lento e sempre aberto. A consensualização leva tempo e, uma vez conseguida, pode ser, de novo, posta em causa, face a mudanças introduzidas na língua.

O Alfabeto Caboverdiano apesar de ser um modelo tendencialmente fonológico, com elevado grau de economia e de sistematicidade, não é um instituto estático e intocável. A partir de uma base consensualizada, num determinado momento, pode, num outro momento, haver a necessidade de alguns ajustamentos. Isto acontece com todos os sistemas de escrita. É por isso que a língua portuguesa, por exemplo, já foi objeto de vários acordos de alteração, sendo o mais recente o de 1990.

Em termos de alfabeto e de escrita, uma base largamente consensualizada pode, em certo momento, ser confrontada com a prática divergente de um ou outro aspeto. É por isso que na escrita do caboverdiano, neste momento, há quem defenda a eliminação de diacríticos, salvo em casos de pares mínimos como “mama e mamá”. Outros, embora poucos, defendem que o “á” tónico de palavras graves, nos termos da R2, e à semelhança de “é” e de “ó” tónicos, deveria levar diacrítico. Isto implicaria a colocação de diacrítico em palavras como “rato, prato, mato …”, apesar de a respetiva acentuação ser previsível (preditível), não havendo, portanto, a necessidade de ser representada por um diacrítico.

Outros entendem que a conjunção coordenada copulativa deveria ser representada por “i” e não por “y”.

Já desde a proposta de 1979, passando pelo ALUPEC experimental, de 1998 e para o ALUPEC institucionalizado em 2009, a representação foi sempre “y”. A justificação é porque se trata de uma classe gramatical e não de uma simples vogal; a razão ainda é porque o “i” pode ser a terceira pessoa do verbo “ser” na ilha do Maio (mi i bon). Sobre esta questão, tudo ficará resolvido com a padronização. De momento, penso que é saudável tolerar as duas representações até que o tempo indique o melhor caminho.

Em conclusão pode-se dizer que:

a)    A afirmação da escrita da nossa língua materna, desde o século XIX até ao presente, é uma realidade, é um processo que se vai consolidando, que se vai consensualizando, de forma permanente e constante;

b)    Mesmo as línguas com mais história do que a nossa língua materna têm estado em processo de consolidação e consensualização permanentes;

c)     É reconfortante saber que já temos uma base para um modelo de escrita do caboverdiano, largamente sistemática, embora essa mesma escrita esteja num processo constante de padronização;

d)    Felizmente, os que conhecem o ALUPEC sabem que se trata de um modelo económico e sistemático e que, neste momento, admite alguma diversidade, já que a sua padronização está em curso. A diversidade é tolerada, mas sem pôr em causa a superior unidade do ALUPEC. Pouco a pouco, vai-se limando as arestas e a unidade mais representativa, mais pertinente, mais económica e mais sistemática será reforçada.

É um facto que a padronização da escrita e sua consensualização podem levar décadas. É fundamental que haja uma política e uma prática bem orientada; um magistério inclusivo bem enraizado no sistema educativo; uma padronização linguisticamente pertinente, pragmaticamente económica e sistemática, pedagogicamente inclusiva, socialmente sufragada, aprendida e praticada.

Em agindo com pragmatismo e inteligência, com políticas assertivas e ativas, com investimento adequado e oportuno, cobrindo o mapa linguístico do país, com investigação e magistério inclusivos, exigentes e de qualidade, a afirmação e a consensualização do alfabeto e da escrita acontecem. A própria língua materna alcançará o patamar que merece e que todos nós desejamos.


Obs: Tendo em conta que o ensaio é bastante longo, cortei as referidas Regras de Acentuação no crioulo. Quem estiver interessado pode analisá-las no livro referido, aqui em baixo, p.239-241.

CF. VEIGA Manuel (2021). O Cabovrdiano em 45 Lições, Acácia Editora, Praia, p.225-237.



[1] Crioulos (1967).  Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, Ed. Jorge Morais Barbosa, pp. 1-234.

[2] A importância do alfabeto fonológico de António d’Paula Brito, de 1888, é tanto mais relevante quando se sabe que a fonologia, formalmente, só viria a nascer em 1926, com a Escola de Praga, tendo por principais promotores Trubtskoy, Jacobson e Martinet, o que prova a precocidade da proposta de António Paula d’Brito.

[3] Idem (1967). António d’Paula Brito (1888). “Apontamentos para a Gramática do Crioulo que se Fala na Ilha de Santiago de Cabo Verde”, pp. 329-404.

[4] Igreja do Nazareno, Praia:  Lukas – Notísias Sábi di Jizus, 2004; Bíblia na Prugrésu di Traduson pa Língua Kabuverdianu, 2009; Stórias Ilustradu di Nobu Testamentu pa Jóvens, 2019; Stória Ilustradu di Nobu Testamentu pa Pais Lé ku Fidjus, 2019. Igreja Adventista, Praia: Kuzê ki nu Pode Prende na Bíblia, 1016.

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