Processo de Afirmação da Escrita do CCV
(Do século XIX à Atualidade)
No
âmbito da 2ª edição da presente obra, esgotada há muito tempo, e objeto de uma
grande procura, decidi introduzir este Anexa
A para abordar a questão do processo de afirmação da escrita e do alfabeto
do crioulo, já que se trata de algo que tem provocado muito debate e alguma
polémica em Cabo Verde.
Proponho
abordar os seguintes pontos:
·
Pioneirismo de Francisco Adolfo Coelho
(FAC) e de António de Paula Brito (APB);
·
Convergência e Divergência dos Alfabetos
de FAC e de APB;
·
Experiência Convergente e Divergente de
Eugénio Tavares e de Pedro Cardoso;
·
Contributo de Napoleão Fernandes;
·
Prática de Alguns Letrados na Segunda
Metade do Século XX;
·
Colóquio Linguístico de 1979 – Rotura e
Continuidade
·
Fórum de Alfabetização Bilingue, em 1989,
para a Refundação do Alfabeto de 1979;
·
Proposta do Grupo de Padronização e
Aprovação do ALUPEC (1994-1998);
·
Institucionalização do ALUPEC (2009);
·
Regras de Acentuação no ALUPEC;
·
Consenso e Dissenso na Prática do ALUPEC
(1998-2020).
Chamo
especial atenção para o penúltimo ponto, isto é, as seis regras de acentuação
avançadas pelo Grupo de Padronização. As mesmas foram enriquecidas,
posteriormente, com a introdução de propostas minhas, com base numa experiência
mais consistente da escrita adquirida no magistério do crioulo no Curso de
Formação de Professores do Ensino Secundário desde 1980, e na Uni-CV, de
2010-2014; no Mestrado de Crioulística e Língua Caboverdiana, na mesma
Universidade de Cabo Verde, de 2010-1013; na elaboração e publicação da 1ª
edição do Caboverdiano em 45 Lições (2002); na primeira, na segunda e
terceira edições do romance Odju d’Agu (1987, 2009 e 2019); na
elaboração e publicação da 1ª e 2ª edições do Dicionário Bilingue
Crioulo-Português (2011 e 2012); em alguns ensaios constantes da obra A
Palavra e o Verbo (2016) e, mais recentemente, na narrativa romanesca Profecias
do Ali-Ben-Ténpu (2019), uma expressão aproximada de romance histórico,
em 50 estações, sendo estas, alternadamente, em crioulo e em português. Ainda,
com base num trabalho, com ais de 40 anos de reflexão, sobre Formação
do Crioulo – Matrizes Originárias (2020).
Em
todo esse processo, de investigação permanente, de magistério e de alguma
prática literária, foi crescendo a minha experiência, a qual foi consolidando a
minha prática de escrita e do funcionamento do crioulo.
E
se chamo especial atenção para as regras de acentuação é, tão-somente, porque
nelas continua a existir maior dissenso entre os vários utilizadores e
defensores da afirmação e valorização da nossa língua materna.
Retomando
os vários pontos do presnete Anexo:
1. Pioneirismo de Francisco Adolfo
Coelho e de António de Paula Brito
A
escrita de uma língua exige um alfabeto estruturado e um conjunto de
procedimentos que permitem clarificar a função e a natureza das letras, das
palavras e de outras combinações, procurando sempre a economia, a clareza e a
pertinência linguísticas, e evitando, sempre que possível, a confusão.
A
função da escrita é subsidiária. Ela representa a língua. É por isso que deve
comportar quatro características fundamentais, quais sejam: a funcionalidade, a
sistematicidade, a economia e a clareza.
A
escrita do crioulo caboverdiano, tendo em conta os documentos que até este
momento se conhece, começou, timidamente, no século XIX, com Francisco Adolfo
Coelho, um português formado em Filologia Românica. O mesmo, com apoio de um
caboverdiano, o senhor César Augusto de Sá Nogueira, e a partir de análise de
cartas e de adivinhas, em crioulo, começou, com base no alfabeto português, a
esboçar algum estudo de textos, nos aspetos fonéticos, morfológicos e lexicais.
As
reflexões de Francisco Adolfo Coelho foram publicadas, pela primeira vez, em
1880, na revista da Sociedade de Geografia de Lisboa, com o título de “Os Dialectos Românicos ou Neo-Latinos em
África, na Ásia e América Latina”[1].
Na
mesma década, mais precisamente em 1888, o caboverdiano António d’Paula Brito,
um profundo conhecedor do crioulo, com base num alfabeto fonológico[2], que ele mesmo criou,
sendo o mesmo funcional, económico e sistemático, publicou, na já mencionada
revista da Sociedade de Geografia de Lisboa, uma edição bilingue de “Apontamentos para a Gramática do Crioulo
que se Fala na Ilha de Santiago de Cabo Verde”[3].
A
proposta de alfabeto concebido, apesar das suas importantes caraterísticas,
acima mencionadas, do meu conhecimento, foi utilizado apenas pelo seu promotor,
provavelmente por causa da rotura com o sistema, até então vigente.
2. Convergência e Divergência entre
Francisco Adolfo Coelho e António d’Paula Brito
O
alfabeto e a escrita de Francisco Adolfo Coelho são baseados no alfabeto e na
escrita do português. Diferentemente é a proposta de António d’Paula Brito que
se configura como algo novo, ousado, quase revolucionário. Verifica-se a
correspondência de algumas letras, entre as duas propostas, porém, com funções
diferentes.
Eis
a representação das duas propostas:
Francisco Adolfo Coelho (FAC) |
António d’Paula Brito (APB) |
A,
B, C, D, E, F, G, H, I, J, K, L, M, N, O, P, Q, R, S, T, U, V, X, Y, Z |
A,
B, CH, D, E, F, G, I, JH, J, K, L, M, NH, N, O, P, R, RR, S, T, U, V, X, Z. |
Alguns Exemplos:
CH,
chôn J,
fója C,
crê, cedo G, algun; G,
fugi S, sabê, casa (z) SS,
gossin |
CH,
chõ JH,
fójha K,
krê, sédu G,
algũ J, fuji S, sabê, kasa (s) S, gosĩ |
É
notória a diferença entre os dois modelos, sendo certo que o de APB é mais
sistemático e mais económico. Com efeito, enquanto na proposta de FAC temos
três representações, por exemplo, para o fonema /s/ (cedo,
sabê, gossin), na
de APB só há uma única representação (sédu, sabê, gosĩ).
O mesmo acontece em FAC com o fonema /j/ representado por j e por g (fuji, geral) que na de
APB é unicamente representado por j: fuji, jeral.
Em FAC encontramos dois dígrafos (ch, ss - chôn, gossin).
Também em APB há dois dígrafos (ch, jh – chõ, fójha). Em FAC a nasalização é
feita sempre por n (mesmo antes de b e p) e em APB ela é feita sempre por til.
O FAC apresenta a primeira pessoa do pronome pessoal por en (en crê) e o pronome pessoal complemento da primeira
pessoa por –n
(da-n).
Porém, o APB representa a primeira pessoa do pronome
pessoal por ĩ (ĩ krê) e a primeira pessoa do
pronome pessoal complemento por ‘m (da’m).
Basicamente, a proposta de APB é mais económica e mais
sistemática porque o mesmo fonema tem sempre a mesma representação, o que não
acontece com a proposta de FAC em que o mesmo fonema pode contar com mais do
que uma representação.
Apesar de tudo, a inteletualidade, durante a segunda
metade do século XIX e a primeira metade do século XX, privilegiou a proposta de FAC (com maior
aproximação ainda ao alfabeto português), salvo na questão da nasalização,
ficando a proposta de APB confinada, ao que tudo indica, apenas ao seu
proponente.
Note-se que em ambos os proponentes, não há o som lh. Provavelmente, este som só viria a entrar no
crioulo depois do século XIX. Constata-se ainda que no século XIX o aspeto
verbal (forma indefinida no passado anterior, que hoje se realiza: da (flada) tinha outra realização em APB: fladuba.
3. Experiência Convergente e Divergente
de Eugénio Tavares e de Pedro Cardoso
Alguns
intelectuais caboverdianos estimam que a escrita do crioulo deveria basear-se
na dos que eles consideram “mestres”, isto é na de Eugénio Tavares e Pedro
Cardoso.
Acontece
que estes “mestres” praticavam o mesmo modelo de alfabeto, mas com algumas
diferenças bem vincadas. Senão vejamos:
PEDRO CARDOSO CH:
crechêu, chorâ TCH:
mátcho, tchapéu CH
, X: conchê, xinti J (dj, j): judâ-m’; bêja’l Dj:
bédjo Dg
(dj): dgêntes; n’bondge LH (dj): belha, mulhê G
(j): longe G
(g): co gostu M’
: M’bêm -m’,
-’n (-m): xa-m’; dá-m’/dâ-’n |
EUGÉNIO TAVARES CH:
ficha, chigâ TCH:
cretcheu, q’ré CH,
X: cheio, dixam J
(dj, j): fijo, juizu Dj
(odjá) ? ? G
(j): fugi G
(g): graça, geto ‘N,
‘M: ‘N ca pedi;’M ta dixóbe m,
‘n (-m): dixam, da’n |
Pedro
Cardoso utiliza quatro formas para a representação dj: j,
dj, dg, lh (juda-m, bedjo, dgêntes, belha). O mesmo utiliza duas formas
para a representação do tx: ch, tch (crecheu,
chorâ, matcho, tchapéu).
Curiosamente, umas vezes utiliza o ch
para representar o som x, e outras vezes
é o próprio x que utiliza (conchê, xinti).
Eugénio
Tavares, porém, usa apenas duas formas para o mesmo som: j, dj (fijo, odjá). Quanto ao som tx, como Pedro
Cardoso, utiliza as duas representações: ch e tch (ficha, chigâ, cretcheu). Para ele também o ch, juntamente com o x podem
representar o som x (cheio, dixam).
Há
diferenças ainda na representação dos pronomes pessoais sujeito e complemento.
Pedro
Cardoso: M’ (‘M bêm); -m,
-‘n (xa-‘m; dá’m, dâ’n).
Eugénio
Tavares: ‘N, ‘M (‘N ca pedi; ‘M ta dixóbe;
dixam, da-n).
Perante
essas diferenças, a qual dos “mestres” se deve seguir?
Mais:
porque é que em todo o tecido social se aceita a evolução e a transformação e
na escrita do crioulo há quem pense que a renovação é um atentado aos bons
costumes e à inteligência?
Aliás
uma participante, conhecida intelectual, afirmou, num encontro de apresentação
da revista “Vozes das Ilhas”,
publicada em Outubro de 2014, que “o ALUPEC é um alfabeto para atrasados
mentais”. Essa senhora esqueceu-se que esse alfabeto foi proposto em
1994 pelo Grupo de Padronização, integrado por técnicos de reconhecido mérito;
foi aprovado, a título experimental, através do decreto-lei 67/98, de 31 de
Dezembro, em sede de um Conselho de Ministros que, seguramente não era formado
por mentecaptos; o mesmo ALUPEC viria a ser institucionalizado como Alfabeto
Caboverdiano, por um outro Conselho de Ministros, através do decreto-lei
8/2009, de 16 de Março, Conselho este que, certamente, era formado por gente de
mente sã.
Mais:
Os vários académicos nacionais e estrangeiros, que desde 1998 passaram a adotar
o ALUPEC, em vários estudos sobre o crioulo, não são, seguramente, atrasados
mentais. É caso para se perguntar se atrasado mental é quem trabalha na base de
estudos científicos, ou quem faz afirmações emotivas, com base em “achismo”?
É
estranho, ainda, que entre os que reclamam a escrita dos “mestres” haja quem
ache normal a evolução da escrita do português, e uma aberração a do crioulo.
Com efeito, Gil Vicente não escrevia como Camões; Fernando Pessoa escrevia
diferente do português que hoje praticamos; a reforma da escrita de 1911 é
diferente da proposta em 1990. Alguns dos que acolhem com abertura as reformas
e mudanças operadas na escrita do português, estranhamente, em se tratando da
escrita do crioulo, entendem que a praticada na primeira metade do século XX,
pelos ditos “mestres”, deve ser intocável.
4. Contributo de Napoleão Fernandes (NF)
Na
primeira metade do século XX, um outro contributo importante sobre a escrita do
crioulo é dado pelo Napoleão Fernandes, no seu Léxico do Dialecto Crioulo de
Cabo Verde, publicado em 1971 pela filha Ivone Ramos, mas cujo início da
elaboração data da segunda década, do século XX.
O
alfabeto usado por NF é baseado no alfabeto português, mas com uma grande
preocupação de sistematicidade. Ao que parece, ele terá tido, também, a
influência do alfabeto de António d’Paula Brito, particularmente na
representação do som por jh (jhabacós).
Outros
casos de sistematicidade, para além do som “dj” representado sempre por jh, há o som “tx” representado sempre por ch (cheo, chabe); o som “x” é representado por sh e por x (shá, xixi);
o som “j” é representado por j e por g (corajo, corage); o som “k” é representado por c e por q (cóche-cóche,
q’rêcheo).
A
conclusão que se pode tirar é que, depois do alfabeto de António d’Paula Brito,
e antes do ALUPEC, o de Napoleão Fernandes é o alfabeto com maior grau de
sistematicidade, no seu tempo, superando mesmo o dos ditos “mestres”, embora
ainda com forte influência do modelo de alfabeto português.
5. Prática da Escrita por Parte de
Alguns Letrados, na Segunda Metade do Século XX
A
partir dos anos 60 do século XX, alguns letrados, como Ovídio Martins,
Kaoberdiano Dambará, Luís Romano, Sergio Frusoni e outros usaram o alfabeto
português como referência (com ligeiras alterações como no caso de Kaoberdiano
Dambara que privilegia a representação k, em
detrimento do c e do q). Vejamos alguns exemplos:
Ovídio
Martins – Nele encontramos as representações tch, dj,
q, c (tchegá, qré, qond, cabeverdióne). A particularidade de Ovídio Martins consiste sobretudo no
emprego do q em palavras como: qré, qretcheu, qond …
Kaoberdianu
Dambará – usa as formas tch e dj (atchal, djunta), como Ovídio Martins. Porém, a sua
particularidade reside no emprego do k, à
maneira de António d’Paula Brito (kussa).
Luis
Romano – Usa o alfabeto português com algumas adaptações: tch (tchorá); M’ (M’ta
presenciá), à maneira de Eugénio Tavares e Pedro Cardoso; q (qris), à maneira de Ovídio Martins. Na amostra que
consultamos, não chegamos a descobrir o uso de dj.
Sergio
Frusoni – Tem uma escrita totalmente baseada no alfabeto português. Em Vangêle Contód d’Nos Moda, ele
escreve:
“Na principe éra VÊRB e VÊRB é DÊUS/. Tude
côsa foi crióde na sê jête,/ e sem El ca fazid nada do qu’ê fête/ N’El era vida
e vida ê luz d’Cêus”.
Não
há dúvida que o legado do alfabeto português, em relação à escrita no crioulo,
apesar da sua falta de economia e de sistematicidade é grande. Apenas o António
d’Paula Brito se afastou do alfabeto português, embora ele também tenha nele
bebido a forma de representação de algumas letras (a, b, d, e, f, g, i, j, l,
m, n, o, p, r, s, t, u, v, x, z). A grande diferença está na economia e na
forma sistemática como utiliza essas letras, as quais cada uma representa
sempre o mesmo som. É pena que, quando em 1979 foi avançada uma proposta de
alfabeto fonológico que privilegia a economia e a sistematicidade, na
representação dos sons (em que um som é representado tendencialente, por uma
letra e vice-versa), os seus promotores, ao que tudo indica, desconheciam, na
altura, a proposta de António d’ Paula Brito. Eu, por exemplo, na altura,
desconhecia um tal modelo.
6. Colóquio Linguístico de 1979 – Rotura
e Continuidade
Como
ficou demonstrado atrás, a falta de sistematicidade e de economia era a
caraterística geral da escrita, em crioulo, desde o século XIX, até ao Colóquio
Linguístico de 1979, com a exceção da praticada por António d’Paula Brito.
Foi
nesse Colóquio que se dá uma outra grande rotura com a prática então vigente.
Para
introduzir maior sistematicidade e maior economia na escrita da língua materna,
os participantes foram ousados em apresentar uma proposta de alfabeto de base
fonético-fonológica, onde a um som correspondia sempre a mesma letra e
vice-versa.
Eis a representação desse alfabeto: A B D E F G H I 𝑍̂ K L 𝐿̂ M N 𝑁̂ 𝑁̈ O P K R S T U V 𝐶̂ 𝑆̂ Z. Note-se que, de uma forma geral, o circunflexo é sinal de palatalização. Assim 𝑍̂, 𝐿̂, 𝑁̂, 𝐶̂, 𝑆̂ representam, no ALUPEC, os sons J, LH, NH, TX, X. O 𝐽̂ representa o som “dj”. O 𝑁̈representa o som gutural, nasal, oclusivo e que se encontra em palavras como 𝑁̈anhóma, 𝑁̈anhi.
Trata-se
de um alfabeto que marca a rotura com a prática até então em vigor. Por isso,
foi praticado apenas por alguns seguidores, tendo servido de suporte na elaboração
de dois romances, respetivamente a 1ª edição de Odju d’Agu e Perkurse
d’Sul d’Ilha
(a escrita foi adaptada segundo o ALUPEC). Uma grande parte dos utentes não
sufragou a proposta de 1979 e apelidava-a de alfabeto-chapéu, porque usava o
circonflexo como sinal de palatalização, por cima de letras como: Z, L, N, C, S,
J.
Urgia, pois, uma refundação do
alfabeto para não comprometer o desenvolvimento e afirmação da escrita do
crioulo.
7. Fórum de Alfabetização Bilingue
Na
década de 1980, o Governo suíço apoiava um programa de alfabetização em Cabo
Verde. Uma das condições exigidas era que a alfabetização tinha que ser
bilingue, isto é: em português e na língua materna. Não querendo perder o
financiamento, o Governo caboverdiano de então contratou uma assessoria
portuguesa para a elaboração de um manual e de uma proposta de gramática,
ignorando a competência nacional e técnicos, na matéria. Para a socialização
dos mesmos, foi organizado um Fórum em 1989, dez anos após a proposta de 1979.
À
assessoria portuguesa, embora possuindo algum conhecimento do crioulo,
faltava-lhe o domínio do génio próprio dessa língua. Por isso, o material que
preparou foi profundamente criticado, a ponto de o Ministro da Educação ter
chamado de “inconveniente” a um dos participantes críticos. O impasse foi tal
que um outro participante, o falecido Jorge Alfama, propôs a criação de um
Grupo de Trabalho para estudar a proposta da assessoria portuguesa e avançar
com um parecer concreto para a saída do impasse.
O
Grupo acima referido acabaria por ser criado com o nome de Comissão Consultiva, integrada apenas por técnicos nacionais.
Ora,
o parecer dessa Comissão foi no sentido de se proceder a uma refundação do
alfabeto proposto em 1979. Nessa refundação se deveria ter em conta a
sistematicidade do alfabeto, com alguma concessão, particularmente no que tange
à representação das consoantes palatais, mesmo que em detrimento da economia
linguística. Para tal, reconcomendou a criação de um grupo de padronização.
8. Grupo de Padronização
O
mesmo só viria a ser criado em Novembro de 1993, com um horizonte de seis meses
para apresentação dos resultados das suas reflexões.
Em
Maio de 1994, o Grupo de Padronização apresentaria uma Proposta de Bases do
Alfabeto Unificado para a Escrita do Caboverdiano – ALUPEC, (ver a publicação
dessas Bases pelo IPC, 2006). O termo “unificado” é porque unifica dois modelos
de alfabeto (o de base etimológica e o de base fonológica). A explicação,
ainda, é porque pode servir para a escrita de todas as variantes e variedades
do crioulo.
A
Proposta só viria a ser publicada, para ser usada, a título experimental, em
1998 (ver Decreto-Lei 67/98, de 31 de Dezembro).
A
principal novidade da Proposta consistia na retoma do alfabeto de base
etimológica para a representação das consoantes palatais, como segue: TX, DJ,
NH, X, J, LH. A oclusiva gutural nasal continua com a mesma apresentação
proposta em 1979, isto é: . Os sons K, S, X, Z
tinham sempre a mesma representação qualquer que fosse o contexto onde surgiam.
O G era sempre G e nunca J, da mesma forma que o S nunca se realizava como Z.
Também o X era sempre representado assim e nunca com a forma CH.
A
proposta do Grupo de Padroniza, embora continue a ser criticada pelos
defensores da escrita dos “mestres”, atrás referida, foi mais consensual que a
proposta de 1979.
9. Institucionalização do ALUPEC como
Alfabeto Caboverdiano
O
ALUPEC, aprovado a título experimental, por um período de cinco anos, continuou
experimental por cerca de 10 anos. Em 2008, o então Presidente do Grupo de
Padronização passou a exercer o cargo de Ministro da Cultura. Ele que já era
possuidor de um diploma de doutoramento na área da crioulística, quis mandar
fazer um balanço sobre a pertinência e o grau de aceitabilidade do ALUPEC. Para
tal, mandou auscultar vários utilizadores e realizou um encontro-debate, de uma
semana, com alguns utilizadores do crioulo e isto para poder ter maior força no
Conselho de Ministros, no momento do debate sobre a Institucionalização do
ALUPEC como Alfabeto Caboverdiano.
Constatou-se
que desde a aprovação experimental do ALUPEC, em 1998, foi este o modelo de
alfabeto usado na investigação académica e no magistério do crioulo tanto
dentro como fora do País. Era largamente usado em produções literárias e
musicais. Mais tarde, algumas confissões religiosas[4] encetariam a tradução de
parte da Bíblia nesse alfabeto. Por isso, era judiciosa a institucionalização
do ALUPEC, embora se constatasse a necessidade de o mesmo continuar a ser
aprofundado, em alguns aspetos, nomeadamente no que tange à acentuação, à
representação da conjunção coordenada copulativa “Y”, e ao uso do som palatal
“LH”. Entendeu-se ainda que a letra “C” deveria ser introduzida para a escrita
de nomes próprios (Cabral), para siglas como TACV, CPLP; para a representação
de símbolos internacionais como etc., cm, cl …; para a representação de marcas
como Vitamina C; numeração romana: C, CC…
A consoante gutural nasal oclusiva, para facilitar a sua representação ( em máquinas de escrever e computador), passou a ser Ñ, em vez de N (+trema).
O
Conselho de Ministros acabou por aprovar a justeza dos argumentos então
apresentados e o ALUPEC foi institucionalizado, com adaptações sugeridas, como
Alfabeto Caboverdiano, pelo decreto 8/2009, de 16 de Março.
Assim,
ficou constituído por 25 letras e 4 dígrafos:
Letras
A B C
D E F
G H I
J K L
M N Ñ
O P R
S T U
V X Y Z
Dígrafos
DJ,
LH, NH, TX.
10. Consenso e Dissenso na Prática de
ALUPEC
A
padronização do alfabeto e da escrita é um processo lento e sempre aberto. A
consensualização leva tempo e, uma vez conseguida, pode ser, de novo, posta em
causa, face a mudanças introduzidas na língua.
O
Alfabeto Caboverdiano apesar de ser um modelo tendencialmente fonológico, com
elevado grau de economia e de sistematicidade, não é um instituto estático e
intocável. A partir de uma base consensualizada, num determinado momento, pode,
num outro momento, haver a necessidade de alguns ajustamentos. Isto acontece
com todos os sistemas de escrita. É por isso que a língua portuguesa, por
exemplo, já foi objeto de vários acordos de alteração, sendo o mais recente o
de 1990.
Em
termos de alfabeto e de escrita, uma base largamente consensualizada pode, em
certo momento, ser confrontada com a prática divergente de um ou outro aspeto.
É por isso que na escrita do caboverdiano, neste momento, há quem defenda a
eliminação de diacríticos, salvo em casos de pares mínimos como “mama e mamá”.
Outros, embora poucos, defendem que o “á” tónico de palavras graves, nos termos
da R2, e à semelhança de “é” e de “ó” tónicos, deveria levar diacrítico. Isto
implicaria a colocação de diacrítico em palavras como “rato, prato, mato …”,
apesar de a respetiva acentuação ser previsível (preditível), não havendo,
portanto, a necessidade de ser representada por um diacrítico.
Outros
entendem que a conjunção coordenada copulativa deveria ser representada por “i”
e não por “y”.
Já
desde a proposta de 1979, passando pelo ALUPEC experimental, de 1998 e para o
ALUPEC institucionalizado em 2009, a representação foi sempre “y”. A justificação
é porque se trata de uma classe gramatical e não de uma simples vogal; a razão
ainda é porque o “i” pode ser a terceira pessoa do verbo “ser” na ilha do Maio
(mi i bon). Sobre esta questão, tudo ficará resolvido com a padronização. De
momento, penso que é saudável tolerar as duas representações até que o tempo
indique o melhor caminho.
Em
conclusão pode-se dizer que:
a) A
afirmação da escrita da nossa língua materna, desde o século XIX até ao
presente, é uma realidade, é um processo que se vai consolidando, que se vai
consensualizando, de forma permanente e constante;
b) Mesmo
as línguas com mais história do que a nossa língua materna têm estado em
processo de consolidação e consensualização permanentes;
c) É
reconfortante saber que já temos uma base para um modelo de escrita do
caboverdiano, largamente sistemática, embora essa mesma escrita esteja num
processo constante de padronização;
d) Felizmente,
os que conhecem o ALUPEC sabem que se trata de um modelo económico e
sistemático e que, neste momento, admite alguma diversidade, já que a sua
padronização está em curso. A diversidade é tolerada, mas sem pôr em causa a
superior unidade do ALUPEC. Pouco a pouco, vai-se limando as arestas e a
unidade mais representativa, mais pertinente, mais económica e mais sistemática
será reforçada.
É
um facto que a padronização da escrita e sua consensualização podem levar
décadas. É fundamental que haja uma política e uma prática bem orientada; um
magistério inclusivo bem enraizado no sistema educativo; uma padronização linguisticamente
pertinente, pragmaticamente económica e sistemática, pedagogicamente inclusiva,
socialmente sufragada, aprendida e praticada.
Em
agindo com pragmatismo e inteligência, com políticas assertivas e ativas, com
investimento adequado e oportuno, cobrindo o mapa linguístico do país, com
investigação e magistério inclusivos, exigentes e de qualidade, a afirmação e a
consensualização do alfabeto e da escrita acontecem. A própria língua materna
alcançará o patamar que merece e que todos nós desejamos.
Obs: Tendo em conta que o ensaio é bastante longo, cortei as referidas Regras de Acentuação no crioulo. Quem estiver interessado pode analisá-las no livro referido, aqui em baixo, p.239-241.
CF. VEIGA Manuel (2021). O Cabovrdiano em 45 Lições, Acácia Editora, Praia, p.225-237.
[1]
Crioulos (1967). Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa,
Ed. Jorge Morais Barbosa, pp. 1-234.
[2]
A
importância do alfabeto fonológico de António d’Paula Brito, de 1888, é tanto
mais relevante quando se sabe que a fonologia, formalmente, só viria a nascer
em 1926, com a Escola de Praga, tendo por principais promotores Trubtskoy,
Jacobson e Martinet, o que prova a precocidade da proposta de António Paula
d’Brito.
[3]
Idem (1967). António d’Paula Brito (1888). “Apontamentos para a
Gramática do Crioulo que se Fala na Ilha de Santiago de Cabo Verde”, pp.
329-404.
[4]
Igreja do Nazareno,
Praia: Lukas – Notísias Sábi di Jizus, 2004; Bíblia na
Prugrésu di Traduson pa Língua Kabuverdianu, 2009; Stórias
Ilustradu di Nobu Testamentu pa Jóvens, 2019; Stória
Ilustradu di Nobu Testamentu pa Pais Lé ku Fidjus, 2019. Igreja Adventista, Praia: Kuzê ki nu Pode Prende na Bíblia, 1016.
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