A história
faz-se com factos e não com impressões, sejam elas nossas ou alheias. Num texto
datado de Janeiro de 2016, publicado num blogue da Academia de Ciências
Políticas para a Guiné-Bissau, e veiculado no facebook, em Janeiro de 2018, o
senhor Livonildo Francisco MENDES afirma: “…todos os dados indicam que foram os
escravos guineenses que deram origem à actual população de Cabo Verde e, por
consequência, ao crioulo que hoje é uma das línguas oficiais do arquipélago…”.
Mais: no
mesmo texto reafirma que: “… na Guiné-Bissau a língua crioula resulta de
contactos políticos e comerciais entre os portugueses e os povos do Golfo da
Guiné (principalmente os Mandingas e os Fulas) desde a época do Grande-Império
Mali, no século XIII”.
É ainda
estranha a firmação segundo a qual a “…língua crioula é a que serve de veículo
comum entre falantes de dialetos diferentes”.
Espero que algum historiador caboverdiano e/ou guineense, com base em factos, venham repor a verdade histórica da origem dos crioulos falados em Cabo Verde e na Guiné-Bissau.
Eu, como
caboverdiano, formado em linguística, com algum conhecimento sobre a história
do meu povo, senti-me desafiado a dizer o que penso, escudado em argumentos do
historiador António Carreira e em informações de linguistas como Baltasar
Lopes, Marlyse Baptista, Robert Chaudenson, Jürgen Lang, Jean-Louis Rougé,
Nicolas Quint.
Desconheço
qualquer fonte histórica que coloca a presença de portugueses no Golfo da
Guiné, já desde o século XIII, como estranhamente, afirma o senhor Mendes.
Segundo
Carreira (1982:15), o descobridor Nuno Tristão terá chegado a Guiné-Bissau em
1446. Porém, face à insegurança e à hostilidade dos régulos, as feitorias
funcionavam a bordo de barcos e somente a partir do século XVII surgem as
primeiras feitorias de Ziguinchor, Farim, Geba, Fá e Bissau (cf. p. 18).
Ora, se a
descoberta da Guiné-Bissau data de 1446, se as feitorias, em terra firme, datam
da segunda metade do século XVII, se o crioulo resulta do encontro entre o
português e as línguas étnicas da Costa Ocidental africana, como será possível
a sua formação já desde o século XIII, como afirma o senhor Mendes?
Acontece
que no século XVII, altura da fixação de feitorias portuguesas na Guiné-Bissau,
o crioulo de Cabo Verde já contava com cerca de um século de existência. E isto
se tivermos em conta que, segundo o historiador António Carreira (1982: 53), “…
a menos de cem anos do achamento existiam em Santiago escravos da estirpe Jalofa
que se entendiam (necessariamente por um pidgin ou um protocrioulo) com os
europeus, e que eram utilizados como intérpretes junto dos povos do
continente”.
Ora, se a
descoberta de Cabo Verde aconteceu em 1460, isto significa que em 1560 já
existia, em Cabo Verde um protocrioulo. Estamos ainda longe do século XVII,
altura do estabelecimento de feitorias na Guiné-Bissau, em terra firme. Isto
significa que, historicamente falando, o crioulo de Cabo Verde antecede o da
Guiné-Bissau.
Assim
sendo, resulta insustentável a afirmação do senhor Mendes, segundo a qual
seriam os escravos guineenses que deram origem ao povo e ao crioulo de Cabo
Verde.
Aliás, é o
próprio Carreira (1982:33) que categoricamente afirma “…o crioulo de Cabo Verde
começou a ser usado, timidamente, nos ‘rios’ pelos Lançados ou Tangomaos
oriundos das ilhas de Cabo Verde no período da formação das Praças e Presídios”
que, como vimos atras, data da segunda metade do século XVII, na Guiné-Bissau.
Mais à frente, citando Baltasar Lopes, Careira (1982:33) afirma: “Suponho que o
crioulo falado na Guiné é, não o contacto do indígena com o português, mas sim
o crioulo caboverdiano de Sotavento levado pelos colonos idos do arquipélago…”.
De acordo
com o senhor Mendes, o crioulo terá provindo, principalmente do contacto com os
Mandingas e os Fulas. Ora acontece que, enquanto o linguista francês Jean-Louis
Rougé (2006) destaca a origem mandiga do crioulo, o linguista alemão Jürgen
Lang (2006, 2009) apresenta vários aspetos morfológicos, sintáticos e semânticos
que provam a grande influência, também, do wolof no crioulo de Cabo Verde.
Segundo o
linguista francês Robert Chaudenson (1992:37), especialista do crioulo da
Reunião, a origem dos crioulos atlânticos e do Oceano Índico, tem por base três
unidades: a do tempo, a do espaço e a da ação.
Relativamente
ao tempo, são línguas muito recentes (séculos 15, 16 e 17 para o de Cabo Verde.
Século 17 para os das Antilhas e os do Oceano Índico). Quanto a unidade do
espaço, a quase totalidade se formou nas ilhas. Quanto à unidade de ação,
surgiram em contexto de dominação (escravatura e colonização), onde o dominador
e os dominados não se entendiam, por possuírem códigos linguísticos diferentes.
Ora, a necessidade urgente e premente de comunicação exigiu a formação de um novo
código linguístico a partir da língua do dominador e das dos dominados. Nessas
circunstâncias (caracterizadas por uma situação limite de comunicação) costuma,
em pouco tempo, nascer uma língua miscigenada, resultante do encontro do léxico
da língua do dominar com a gramática das línguas das classes dominadas. O
produto dessa recriação por parte sobretudo dos mestiços, descendentes da
escrava negra e do dominador branco, e que desconheciam a língua tanto do pai
como da mãe, se convencionou chamar “crioulo”, um código simples, de início, e
que, a pouco e pouco, se complexifica e se autonomiza.
Acontece
que a Guiné-Bissau se situa no continente, as etnias se comunicavam nas
respetivas línguas e tudo indica que não poderiam sentir-se em situações
limites de comunicação, exigindo a formação de uma nova língua. A comunicação
com o comerciante branco que vinha e repartia para o negócio, em
barcos-feitoria (pelo menos até ao século XVII), de início, se processava a
partir dos “chalonas” (intérpretes) trazidos de Cabo Verde (Carreira,1982:30).
Pode-se
perguntar ao senhor Mendes porque será que os escravos guineenses, em vez da
imposição das suas línguas étnicas, preferiram impor o seu crioulo, em Cabo
Verde? Porque será ainda que, em outras paragens, na América Latina e nas
Caraíbas, para onde foram levados, não impuseram o seu crioulo. Porque será que
o crioulo se formou em S.Tomé e Príncipe, que são ilhas, e não em Angola e
Moçambique onde a situação social e linguística era parecida com a da
Guiné-Bissau?
Por tudo
isto, a nosso ver, a tese do senhor Mendes carece de sustentabilidade. Por
isso, não a sufragamos. Não obstante, nós os caboverdianos somos eternamente
gratos a todas as etnias, principalmente a mandinga e a wolof pelas marcas que
deixaram na nossa crioulidade, seja a linguística seja a antropológica.
A
terminar, reafirmamos que o crioulo de Cabo Verde se formou e se consolidou em
Cabo Verde, no horizonte temporal que abrange os séculos XV (início), XVI,
XVII, XVIII (consolidação). A partir da aí entrou na fase de autonomização que
ainda perdura.
Bibliografia
BAPTISTA
Marlyse, 2006. "When Substrates meet superstrate: the case of Capeverdean
Creole", In Cabo Verde – Origens da sua Sociedade e do seu Crioulo.
Alemanha, Gunter Narr Verlag Tübingen.
CHAUDENSON
Robert1992. Des Îles, des Hommes, des Langues. Paris, l’Harmattan.
CARREIRA
António, 1982. O Crioulo de Cabo Verde – Surto e Expansão. Mem Martins,
Portugal. Gráfica EUROPA Lda.
LANG
Jürgen, 2006 (org.). “L’Influence des Wolof et du wolof sur la formation du
créole santiagais”. In Cabo Verde – Origens da sua Sociedade e do seu Crioulo.
Alemanha, Gunter Narr Verlag Tübingen.
Idem,
2009. Les Langues des Autres dans la Créolisation. Alemanha, Gunter Narr Verlag
Tübingen.
QUINT
Nicolas, 2000, 2006. Le Cap-verdien: Origine et Devenir d'une Langue Métisse,
Paris, L'Harmattan; “Un Bref Aperçu des racines Africaines de la Langue
Capverdienne”, 2006, p. 75-90, in Cabo Verde – Origem da Sua Sociedade e do Seu
Crioulo, Ed. Jürgen Lang, John Holm, Jean Louis Rougé e Maria João Soares,
Gunter Narr Verlag Tübingen.
ROUGÉ Jean-Louis, 2009.“L’Influence Mandingue sur la
Formation des Créoles du Cap-Vert et de Guiné-Bissau et Casamance”. In Cabo
Verde – Origens da sua Sociedade e do seu Crioulo. Alemanha, Gunter Narr Verlag
Tübingen.
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