terça-feira, 28 de julho de 2020

CORSINO FORTES: POETA - ARQUIPÉLAGO


Cultor e Promotor de uma Poética Inovadora

                                                              Por Manuel Veiga

Na poética do autor de Cabeça Calva de Deus…, várias são as heranças procuradas, resgatadas, construídas ou celebradas:  a do palco africano, a do rincão local, a da aldeia global.
Na demanda dessas heranças, Corsino Fortes, em alguns aspetos, se situa na linha dos seus precursores caboverdianos, daqueles que, face às agruras e ao sufoco na Terra amada, decorrentes dos caprichos da natureza e de uma Administração desleixada, criaram, no seu imaginário literário, um espaço-refúgio, um Éden compensador.
Na geração de José Lopes e Pedro Cardoso, esse Éden, ou Terra Prometida, tinha o nome Jardim das Hespérides. Na geração claridosa criou-se a ideia de Pasárgadas. Na geração subsequente, o poeta Aguinaldo da Fonseca imaginou que o Éden seria o de “uma outra ilha dentro da ilha” e Onésimo da Silveira proclama, dizendo, que “povo das ilhas quer um poema diferente para o povo das ilhas”.                                                                       
Esta ideia tinha sido defendida, também, por Amílcar Cabral. Seguidamente, foi Corsino Fortes quem melhor deu sequência a esse ideário programático. E a diferença entre a poética de Aguinaldo da Fonseca, Amílcar Cabral e Corsino Fortes, relativamente aos seus antecessores, está, precisamente, na configuração da Terra-Prometida como “uma outra ilha dentro da Ilha” e na sintaxe poética, por vezes em detrimento da linguística, que utiliza.
Vejamos como ele, através da metáfora acima referida, dá-nos conta de uma poética inovadora. Antes, porém, gostaríamos de dizer que, ao ler Corsino Fortes, pela primeira vez, não conseguimos entender uma parte significativa da sua poética. Evitámos, pura e simplesmente, de fazer o julgamento de qualidade, como alguns leitores desprevenidos fazem. Era preciso munir-nos de algumas ferramentas para entender, ainda que parcialmente, uma linguagem em que o primeiro sentido, ou a sua ausência aparente, não era o verdadeiro sentido.
Em Corsino Fortes, há que saber distinguir a sintaxe linguística da sintaxe poética, a que tem ligação com os campos sonoros, melódicos, esotéricos, clássicos, épicos, místicos, históricos, proféticos…, podendo a mesma não respeitar a que a que a norma linguística estabelece. É o que acontece com os tempos verbais (ver a entrevista com Michel Laban, 1992:414), ou então o título do poema “De Boca a Barlavento ou seja “A Boca de Barlavento” onde verifica-se um desvio da sintaxe linguística. Vemos duas hipóteses para explicar esse desvio: a) A questão de sonoridade, ritmo e movimento; b) A desordem na sintaxe dos materiais linguísticos poderá significar a desordem ou o inconcebível da situação narrada no poema, a tal “geometria de sangue & fonema”, gotejando “de comarca em comarca”.
Quando o poeta-demiurgo e profeta trata, simultaneamente, de questões ligadas à antropologia, à historia, à sociologia, à política, à transcendência, utilizando mais a sintaxe poética do que a linguística, a compreensão da sua mensagem exige o conhecimento ou a familiarização com os entornos da sua criação poética, com o seu background cultural, com o seu entendimento e motivações, com as suas metáforas e alegorias. E como isso nem sempre é possível, na sua abrangência total, a interpretação da sua criação permanece em aberto.
Com base em alguns poemas da Trilogia A Cabeça Calva de Deus …, que inclui Pão & Fonema, Árvore & Tambor e Pedra de Sol & Substância, vamos apresentar algumas notas de leitura sobre este Poeta Arquipélago, Cultor e Promotor de uma Poética que, em vários aspetos, rompeu com o modelo literário do seu tempo. Alias, Cármen Tindó Secco, citada por Fátima Fernandes, na sua tese de doutoramento (p. 122) afirma que
“Com a obra de Corsino Fortes, os cânones literários do passado foram definitivamente ultrapassados. Muitos de seus poemas dialogaram intertextualmente com os de poetas das “gerações” anteriores, como Jorge Barbosa e Gabriel Mariano. Fez a releitura da poesia de Claridade, negando a proposta de evasionismo e afirmando a necessidade de fecundar a esperança de transformação dentro das ilhas. Releu também Ovídio Martins, contradizendo-o: ‘Já não somos os flagelados do Vento Leste’, pois o vento tornou-se metáfora anunciadora de mudanças sociais, um signo cabo-verdiano de desafio (…) A poesia de Corsino aprofundou a proposta do anticolonialismo fundada pelo grupo Sèló e questionou também os séculos de dominação portuguesa”.
Sobre esta questão, o próprio Corsino, na entrevista concedida a Michel Laban (Cabo Verde: Encontro com Escritores, vol. II, 1992, p. 388) falando do projeto comum com João Vário, esclarece:
É difícil caraterizá-lo, porque nós não tínhamos ideias bem seguras dada a nossa ‘debutância’ [incipiência], mas de qualquer maneira, íamos formando o propósito de vir a escrever algo que fosse diferente ou, melhor, que crescesse … ao património existente – isto é – algo que não fosse meramente fiduciário”.
Corsino Fortes preconiza, pois, um projeto literário que, sem hostilizar as heranças do passado, intenta novos caminhos, em matéria de estilo, de modelo e projeto literário.
Na nossa leitura, primeiramente, procuraremos, nos poemas estudados, não só explorar, minimamente o modelo literário de Corsino Fortes, como tentaremos descobrir não tanto o significado de superfície da sua poética, que poderá ser um não-significado (na sintaxe linguística), mas o sentido profundo, decorrente da sintaxe poética, e que, na nossa perspetiva, poderá ser o verdadeiro sentido criado pelo poeta.
Por cada extrato do poema estudado, falaremos das particularidades inovadoras que as caraterizam. Na análise que vamos fazer, por não sermos músico, teremos dificuldades em abarcar a componente musical dos poemas, nos termos em que o poeta declarou a Simone Caputo Gomes, numa entrevista, no âmbito da tese de doutoramento da Prof.a Fátima Fernandes (p. 271):
Se o destinatário alvo não está muito preparado para compreender [a minha poesia], a música então dá-me um suporte para alcançar o receptor. A melodia é uma linguagem universal e, de fato, é fundamental nessa transmissão. O alfabeto tem que pintar e também expressar a música do folclore, do sentimento... Como propõe [Ezra] Pound, fonopeia, melopeia e logopeia têm que acontecer juntas.
Continuando, afirma Fortes que, quando, pela primeira vez, declamou, na Faculdade de Direito de Lisboa, o poema “De boca a barlavento” um dos colegas que tocava muito bem o violão disse:
“… se não fosses poeta, eras um bom tocador de violão. [Por isso, continua o poeta] conhecer profundamente a epopeia sentimental do cabo-verdiano, as letras das mornas, o funacol, a obra dos nativistas, dos claridosos e não só, os grandes poetas, toda a poesia medieval, os trovadores... estudar foi fundamental para a minha obra” (p. 271).
Com os sons e as melodias que nascem no próprio chão do Arquipélago, vejamos como é que o “logos” da poesia de Corsino Fortes ganha harmonia e sentido no palco global e africano (herança marina) e no rincão local (herança caprina). Devemos assinalar ao leitor que esta é, seguramente, uma das leituras possíveis. Sendo a poética de Corsino Fortes uma obra aberta, difícil se torna uma interpretação fechada. Já Mesquitela Lima (1974) dizia que o livro o esmagou e que “é com raiva contente que [procura] penetrar na molécula …, no labirinto do Fonema”.
Nós também temos a noção clara que, com a leitura que fazemos, não atingimos o númen do sentido (por vezes hermético) de certas realizações. Algumas zonas nos ficaram na sombra. Tudo o que aqui fica dito é tão somente o que a luz da nossa lanterna nos permitiu ver.
Vejamos, então, algumas partituras desse estilo através de uma pequena incursão na sua trilogia poética que inclui Pão e Fonema, Árvore e Tambor, Pedra de Sol e Substância.

1.     Em Pão & Fonema
O título, em si, é uma metáfora que encera o sentido identitário do povo caboverdiano, da sua respetiva cultura e forma de existir, à procura de pão, de voz e de vez para um diálogo inicial e incessante no palco da globalização, mas com o centro de gravidade no chão das ilhas.
 Nós somos o que comemos, mas também a forma como expressamos o nosso existir. Tendo a disponibilidade de pão-milho-morna-liberdade, a existência acontece, a cultura nasce e o fonema – no sentido de educação e comunicação, mas também, no dizer de Daniel Spínola (2009), “…o começo de uma anunciação à volta da essência da vida, que é o alimento nosso de cada dia”) –  encarrega-se de resgatar o ciclo do milho na nossa alimentação, de recriar, preservar, valorizar e divulgar as heranças de um humanismo em crescimento, e em diálogo permanente. O poeta, na bonita isotopia utilizada diz que “Toda a partida é alfabeto que nasce/ Todo o regresso é nação que soletra”, querendo dizer que com a partida do emigrante nasce a esperança de dias melhores e com o seu regresso a vida pode melhorar, com mais “pão”, mais conhecimento, mais liberdade, mais dignidade.
(…)
Retomemos, então, o livro Pão & Fonema para descobrirmos como é que se atualiza o sentido poético de Corsino Fortes, o qual, nem sempre, corresponde ao significado linguístico, daí “os labirintos” na sua poesia.
Na impossibilidade de analisar a obra na sua abrangência formal e semântica, contentemo-nos apenas com alguns extratos do poema “Konde Palmanhan Manxê”:
“… Konde palmanhan manxê/ Sen dezuspere pundróde/ Na bandera de pórta/ Sen lanterna sindide/ Na róbe de burre/ Pa naufraje de navi/ Sen navi kebróde/ Na bóka de pove/ Y mar ben ólte! Bróbe! Dezusperóde”.
Aqui é a antevisão do Dia Clarim da Independência. Estamos em 1974, um ano antes da manhã gloriosa de 5 de Julho de 1975.
Note-se que para Corsino Fortes, a Independência é o marco maior na história do nosso povo. Eis como ele declara a Michel Laban (1992:416) a importância desse dia que ele anteviu no poema em “Konde Palmanhan Manxê”:
“… esse júbilo de poder viver numa época, em todo o meu amor em relação à terra, em todo o meu amor na nossa luta; e também esse júbilo de poder viver numa época de nascimento do nosso Estado, da inserção de Cabo Verde no mundo … Porque nós vivíamos isso… Às vezes eu pensava: ‘Hei-de viver para ver a Independência do meu país!’ É uma coisa bela. Isso me paga tudo na minha vida, viver a Independência(sublinhado nosso).
No poema em análise, procuremos descobrir o sentido poético nele esculpido:

“… Konde palmanhan manxê/ Sen dezuspere pundróde/ Na bandera de pórta/ Sen lantérna sindide/ Na róbe de burre/ Pa naufraje de navi/ Sen navi kebróde/ Na bóka de pove/ Y mar ben ólte! Bróbe! Dezusperóde”
“…palmanhan manxê” é o mesmo que a chegada da Independência; “sen dezuspere pundróde/Na bandera de pórta” poderá significar o fim da colonização; “sen lanterna sindide na róbe burre/ Pa naufraje de navi…kebróde/ na bóka de pove” é o mesmo que sem a necessidade de prender um facho luminoso na cauda dos burros, como se fossem faróis, provocando, assim, o naufrágio de navios, para regalo de “famintos”, na ilha da Boavista; “… Y mar ben ólte! Bróbe! Dezesperóde” terá o sentido de forças coloniais muito zangadas, em desespero, mesmo.
2.     Árvore & Tambor
Depois do sobrevoo ao Pão & Fonema (prenúncio da Luta pela Independência), passemos ao segundo livro da trilogia, Árvore & Tambor (celebração e júbilo pela conquista da Independência) que, na sintaxe poética e não linguística, é o Povo de Cabo Verde já mais crescido, com raízes, tronco e ramos, mas também com a marca indelével de uma identidade africana, simbolizada no signo “tambor” que não só nos liga ao chão de África, mas também reafirma que a nossa identidade, para além de “pedra, mar, cabra e sol; milho, pão & fonema”, tem uma forte componente musical de que o “tambor” pode representar. É todo esse “mobiliário” que fez de Cabo Verde Nação, antes mesmo de ser Estado.
Se os Pré-Clardosos criaram o jardim das Hespérides como Terra Prometida; se os Claridosos sonharam com Pasárgadas; Corsino Fortes, à semelhança de Aguinaldo da Fonseca e de Amílcar Cabral, quis que a Terra Prometida fosse uma outra ilha dentro das dez já existentes, ou seja, Cabo Verde.
Concordando com Ovídio Martins quando esconjurou a ida para a Pasárgada, dele descorda, em parte, com anti-evasionismo que aquele vate proclama em “Somos os Flagelados do Vento Leste”.
É por sermos Árvore & Tambor” , no chão independente das nossas ilhas, que, “Mesmo Sendo, Já não Somos os Flagelados do Vento Leste”, escreve Corsino Forte. Nesta parte da trilogia, a hora é para celebrar, com júbilo, a Festa da Independência.
(…)
3.     Pedra de Sol & Substância
Da Árvore & Tambor, com raízes bem fincados no Chão-Nação e Estado-Nação, passemos ao terceiro elemento da trilogia, ou seja, ao livro Pedra de Sol & Substância (a reconstrução do Estado Independente), para analisar um fragmento do poema Dragoeiro:
Ó catedral & proa de mil âncoras/ ó árvore de mil tambores// Da rocha ao rosto que me deste/ Do rosto à raiz que te dou/ Florescem no teu tronco/ o crânio de Deus + o fogo povo/ Que nos abraça! Como/ Se o arquipélago já não fosse/ A tua Ordem/& as ilhas + ilhéus! A tua Regra// (…) Dragoeiro! Das pernas do vale à face da montanha/ As crateras modelaram/ Teu porte/ De porta-bandeira/ Entre o céu & a terra/ Como se o teu umbigo De mundo largo/ Já não fosse! O cálice/ De sol & substância/ no vulcão da Vida”.
A crioulidade, essa riqueza antropológica que o nosso “dragoeiro” simboliza, é fruto “d’un brassage de cultures” de variadíssimas procedências, cada uma das quais com a sua riqueza e com a sua expressão, fundidas num código único, a “Cabeça Calva de Deus”. O reconhecimento da Cidade Velha, em 2009, e da Morna, em 2019, como Património da Humanidade são provas de que o nosso “dragoeiro” pela idade e pela falta de água já tem a cabeça calva; e pela experiência e riqueza já deseja poder alcançar os atributos do Criador. Aliás, diz a Bíblia que o homem é feito à imagem e semelhança de Deus. Então, o sonho do crioulo cabverdiano não é uma ficção, é uma possibilidade, apesar da erosão, da seca e das lestadas do vento leste.
(…)
Estas são algumas ideias que a leitura de alguns poemas de Corsino Fortes provocou em nós. Como dissemos já, A Cabeça Calva de Deus … é uma obra aberta. A nossa leitura é uma das possíveis. Outros, lendo os mesmos textos, poderão chegar a outras conclusões e é nisto que está a riqueza da poética de Corsino Fortes.

NB: Extrato de um texto mais desenvolvido a ser publicado no meu livro  Letras que Imortalizam.

Bibliografia

ALMADA José Luís Hopffer, (2009). “Corsino Fortes – Poeta Artesão e Co-Artífice da Renovação da Poesia Caboverdiana Contemporânea”. In Pré-Texto, nº 4, II série, Homenagem a Corsino Fortes, AEC, Edição da Biblioteca Nacional de Cabo Verde.

FERNANDES Fátima, 2013. A expressão metafórica do sentido de existir na Literatura Cabo-verdiana contemporânea: João Varela, Corsino Fortes e José Luís Tavares. Universidade de S. Paulo S. Paulo.

FORTES Corsino, 2001. A Cabeça Calva de Deus: Pão & Fonema, Árvore & Tambor, Pedras de Sol & Substância. Lisboa, Publicações D. Quixote.
LABAN Michel, 1992. Cabo Verde: Encontro com Escritores, vol. II, Porto, Fundação Eng. António de Almeida.
LEITE Ana Mafalda,1986. “Árvore & Tambor ou a Reinvenção da Terra Cabo-verdiana”, in Prefácio a Árvore e Tambor de Corsino Fortes, Praia/Lisboa, Instituto Caboverdiano do Livro / Edições D. Quixote.

Idem, 1996. A Modernização Épica nas Literaturas Africanas. Lisboa, Veja.

LIMA Mesquitela, 1974. Pão & Fonema Ou a Odisseia de um Povo. Luanda, Edição do Comité de Acção do PAIGC em Angola, Casa Amílcar Cabral.
SANTOS Elsa Rodrigues (2009). “A Obra Poética de Corsino Fortes”. In Pré-Textos, nº 4, II série, Homenagem a Corsino Fortes, AEC, Edição da Biblioteca Nacional de Cabo Verde
SPÍNOLA Daniel, 2009.  “A Cabeça Calva de Deus: Uma Poética Cosmovisão de Cabo Verde”. In Pré-Textos, Homenagem a Corsino Fortes, p. 7-23.





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