Cultor e Promotor de uma Poética Inovadora
Por Manuel Veiga
Na poética do autor de Cabeça Calva de Deus…,
várias são as heranças procuradas, resgatadas, construídas ou celebradas: a do palco africano, a do rincão local, a da
aldeia global.
Na demanda dessas heranças, Corsino Fortes, em alguns
aspetos, se situa na linha dos seus precursores caboverdianos, daqueles que,
face às agruras e ao sufoco na Terra amada, decorrentes dos caprichos da
natureza e de uma Administração desleixada, criaram, no seu imaginário
literário, um espaço-refúgio, um Éden compensador.
Na geração de José Lopes e Pedro Cardoso, esse Éden, ou
Terra Prometida, tinha o nome Jardim das Hespérides. Na geração claridosa
criou-se a ideia de Pasárgadas. Na geração subsequente, o poeta Aguinaldo da
Fonseca imaginou que o Éden seria o de “uma
outra ilha dentro da ilha” e Onésimo da Silveira proclama, dizendo, que “povo das ilhas quer um poema diferente para
o povo das ilhas”.
Esta ideia tinha sido defendida, também, por Amílcar Cabral.
Seguidamente, foi Corsino Fortes quem melhor deu sequência a esse ideário
programático. E a diferença entre a poética de Aguinaldo da Fonseca, Amílcar
Cabral e Corsino Fortes, relativamente aos seus antecessores, está,
precisamente, na configuração da Terra-Prometida como “uma outra ilha dentro da Ilha” e na sintaxe poética, por vezes em
detrimento da linguística, que utiliza.
Vejamos como ele, através da metáfora acima referida, dá-nos
conta de uma poética inovadora. Antes, porém, gostaríamos de dizer que, ao ler
Corsino Fortes, pela primeira vez, não conseguimos entender uma parte
significativa da sua poética. Evitámos, pura e simplesmente, de fazer o
julgamento de qualidade, como alguns leitores desprevenidos fazem. Era preciso
munir-nos de algumas ferramentas para entender, ainda que parcialmente, uma
linguagem em que o primeiro sentido, ou a sua ausência aparente, não era o
verdadeiro sentido.
Em Corsino Fortes, há que saber distinguir a sintaxe
linguística da sintaxe poética, a que tem ligação com os campos sonoros,
melódicos, esotéricos, clássicos, épicos, místicos, históricos, proféticos…,
podendo a mesma não respeitar a que a que a norma linguística estabelece. É o
que acontece com os tempos verbais (ver a entrevista com Michel Laban,
1992:414), ou então o título do poema “De Boca a Barlavento ou seja “A Boca
de Barlavento” onde verifica-se um desvio da sintaxe linguística. Vemos duas
hipóteses para explicar esse desvio: a) A questão de sonoridade, ritmo e
movimento; b) A desordem na sintaxe dos materiais linguísticos poderá
significar a desordem ou o inconcebível da situação narrada no poema, a tal “geometria
de sangue & fonema”, gotejando “de comarca em comarca”.
Quando o poeta-demiurgo e profeta trata, simultaneamente,
de questões ligadas à antropologia, à historia, à sociologia, à política, à
transcendência, utilizando mais a sintaxe poética do que a linguística, a
compreensão da sua mensagem exige o conhecimento ou a familiarização com os
entornos da sua criação poética, com o seu background cultural, com o seu
entendimento e motivações, com as suas metáforas e alegorias. E como isso nem
sempre é possível, na sua abrangência total, a interpretação da sua criação
permanece em aberto.
Com base em alguns poemas da Trilogia A
Cabeça Calva de Deus …, que inclui Pão & Fonema, Árvore & Tambor
e Pedra
de Sol & Substância, vamos apresentar algumas notas de leitura
sobre este Poeta Arquipélago, Cultor e Promotor
de uma Poética que, em vários
aspetos, rompeu com o modelo literário do seu tempo. Alias, Cármen Tindó
Secco, citada por Fátima Fernandes, na sua tese de doutoramento (p. 122) afirma
que
“Com a obra de Corsino Fortes, os cânones literários do
passado foram definitivamente ultrapassados. Muitos de seus poemas dialogaram
intertextualmente com os de poetas das “gerações” anteriores, como Jorge
Barbosa e Gabriel Mariano. Fez a releitura da poesia de Claridade, negando a
proposta de evasionismo e afirmando a necessidade de fecundar a esperança de
transformação dentro das ilhas. Releu também Ovídio Martins, contradizendo-o: ‘Já
não somos os flagelados do Vento Leste’, pois o vento tornou-se metáfora
anunciadora de mudanças sociais, um signo cabo-verdiano de desafio (…) A poesia
de Corsino aprofundou a proposta do anticolonialismo fundada pelo grupo Sèló e
questionou também os séculos de dominação portuguesa”.
Sobre esta questão, o próprio Corsino, na entrevista concedida
a Michel Laban (Cabo Verde: Encontro com
Escritores, vol. II, 1992, p. 388) falando do projeto comum com João Vário,
esclarece:
“É difícil
caraterizá-lo, porque nós não tínhamos ideias bem seguras dada a nossa
‘debutância’ [incipiência], mas
de qualquer maneira, íamos formando o propósito de vir a escrever algo que
fosse diferente ou, melhor, que crescesse … ao património existente – isto é –
algo que não fosse meramente fiduciário”.
Corsino Fortes preconiza, pois, um projeto literário que,
sem hostilizar as heranças do passado, intenta novos caminhos, em
matéria de estilo, de modelo e projeto literário.
Na nossa leitura, primeiramente, procuraremos, nos poemas
estudados, não só explorar, minimamente o modelo literário de Corsino Fortes,
como tentaremos descobrir não tanto o significado de superfície da sua poética,
que poderá ser um não-significado (na sintaxe linguística), mas o sentido
profundo, decorrente da sintaxe poética, e que, na nossa perspetiva, poderá ser
o verdadeiro sentido criado pelo poeta.
Por cada extrato do poema estudado, falaremos das
particularidades inovadoras que as caraterizam. Na análise que vamos fazer, por
não sermos músico, teremos dificuldades em abarcar a componente musical dos
poemas, nos termos em que o poeta declarou a Simone Caputo Gomes, numa
entrevista, no âmbito da tese de doutoramento da Prof.a Fátima
Fernandes (p. 271):
“Se o
destinatário alvo não está muito preparado para compreender [a minha
poesia], a música então dá-me um suporte
para alcançar o receptor. A melodia é uma linguagem universal e, de fato, é
fundamental nessa transmissão. O alfabeto tem que pintar e também expressar a
música do folclore, do sentimento... Como propõe [Ezra] Pound, fonopeia, melopeia e logopeia têm que acontecer juntas”.
Continuando, afirma Fortes que, quando, pela primeira vez,
declamou, na Faculdade de Direito de Lisboa, o poema “De boca a barlavento” um
dos colegas que tocava muito bem o violão disse:
“… se não fosses poeta, eras um bom tocador de violão. [Por isso,
continua o poeta] conhecer profundamente
a epopeia sentimental do cabo-verdiano, as letras das mornas, o funacol, a obra
dos nativistas, dos claridosos e não só, os grandes poetas, toda a poesia
medieval, os trovadores... estudar foi fundamental para a minha obra” (p.
271).
Com os sons e as melodias que nascem no próprio chão do
Arquipélago, vejamos como é que o “logos” da poesia de Corsino Fortes
ganha harmonia e sentido no palco global e africano (herança marina) e no rincão local (herança caprina). Devemos assinalar ao leitor que esta é, seguramente,
uma das leituras possíveis. Sendo a poética de Corsino Fortes uma obra aberta,
difícil se torna uma interpretação fechada. Já Mesquitela Lima (1974) dizia que
o livro o esmagou e que “é com raiva
contente que [procura] penetrar na
molécula …, no labirinto do Fonema”.
Nós também temos a noção clara que, com a leitura que fazemos,
não atingimos o númen do sentido (por vezes hermético) de certas realizações.
Algumas zonas nos ficaram na sombra. Tudo o que aqui fica dito é tão somente o
que a luz da nossa lanterna nos permitiu ver.
Vejamos, então, algumas partituras desse estilo através
de uma pequena incursão na sua trilogia poética que inclui Pão e Fonema, Árvore e Tambor,
Pedra de Sol e Substância.
1.
Em Pão & Fonema
O título, em si, é uma metáfora que encera o sentido
identitário do povo caboverdiano, da sua respetiva cultura e forma de existir,
à procura de pão, de voz e de vez para um diálogo inicial e incessante no palco
da globalização, mas com o centro de gravidade no chão das ilhas.
Nós somos o que
comemos, mas também a forma como expressamos o nosso existir. Tendo a
disponibilidade de pão-milho-morna-liberdade,
a existência acontece, a cultura nasce e o fonema
– no sentido de educação e comunicação, mas também, no dizer de Daniel
Spínola (2009), “…o começo de uma anunciação
à volta da essência da vida, que é o alimento nosso de cada dia”) – encarrega-se de resgatar o ciclo do milho na
nossa alimentação, de recriar, preservar, valorizar e divulgar as heranças de
um humanismo em crescimento, e em diálogo permanente. O poeta, na bonita
isotopia utilizada diz que “… Toda a partida é alfabeto que nasce/ Todo o
regresso é nação que soletra”, querendo dizer que com a partida do
emigrante nasce a esperança de dias melhores e com o seu regresso a vida pode melhorar,
com mais “pão”, mais conhecimento,
mais liberdade, mais dignidade.
(…)
Retomemos, então, o livro Pão & Fonema para
descobrirmos como é que se atualiza o sentido poético de Corsino Fortes, o
qual, nem sempre, corresponde ao significado linguístico, daí “os labirintos”
na sua poesia.
Na impossibilidade de analisar a obra na sua abrangência
formal e semântica, contentemo-nos apenas com alguns extratos do poema “Konde
Palmanhan Manxê”:
“… Konde palmanhan manxê/ Sen dezuspere pundróde/ Na
bandera de pórta/ Sen lanterna sindide/ Na róbe de burre/ Pa naufraje de navi/
Sen navi kebróde/ Na bóka de pove/ Y mar ben ólte! Bróbe! Dezusperóde”.
Aqui é a antevisão do Dia Clarim da Independência.
Estamos em 1974, um ano antes da manhã gloriosa de 5 de Julho de 1975.
Note-se que para Corsino Fortes, a Independência é o
marco maior na história do nosso povo. Eis como ele declara a Michel Laban
(1992:416) a importância desse dia que ele anteviu no poema em “Konde
Palmanhan Manxê”:
“… esse júbilo de poder viver numa época, em todo o meu
amor em relação à terra, em todo o meu amor na nossa luta; e também esse júbilo
de poder viver numa época de nascimento do nosso Estado, da inserção de Cabo
Verde no mundo … Porque nós vivíamos isso… Às vezes eu pensava: ‘Hei-de viver
para ver a Independência do meu país!’ É
uma coisa bela. Isso me paga tudo na minha vida, viver a Independência” (sublinhado nosso).
No poema em análise, procuremos descobrir o sentido
poético nele esculpido:
“… Konde palmanhan manxê/ Sen dezuspere pundróde/ Na
bandera de pórta/ Sen lantérna sindide/ Na róbe de burre/ Pa naufraje de
navi/ Sen navi kebróde/ Na bóka de pove/ Y mar ben ólte! Bróbe! Dezusperóde”
|
“…palmanhan
manxê” é o mesmo que a chegada da Independência; “sen
dezuspere pundróde/Na bandera de pórta” poderá significar o fim da
colonização; “sen lanterna sindide na róbe burre/ Pa naufraje de navi…kebróde/ na
bóka de pove” é o mesmo que sem a necessidade de prender um facho
luminoso na cauda dos burros, como se fossem faróis, provocando, assim, o
naufrágio de navios, para regalo de “famintos”, na ilha da Boavista; “… Y
mar ben ólte! Bróbe! Dezesperóde” terá o sentido de forças coloniais
muito zangadas, em desespero, mesmo.
|
2.
Árvore &
Tambor
Depois do sobrevoo ao Pão & Fonema (prenúncio
da Luta pela Independência), passemos ao segundo livro da trilogia, Árvore & Tambor (celebração e
júbilo pela conquista da Independência) que, na sintaxe poética e não
linguística, é o Povo de Cabo Verde já mais crescido, com raízes, tronco e
ramos, mas também com a marca indelével de uma identidade africana, simbolizada
no signo “tambor” que não só nos liga
ao chão de África, mas também reafirma que a nossa identidade, para além de “pedra, mar, cabra e sol; milho, pão & fonema”, tem uma
forte componente musical de que o “tambor” pode representar. É todo
esse “mobiliário” que fez de Cabo Verde
Nação, antes mesmo de ser Estado.
Se os Pré-Clardosos criaram o jardim das Hespérides como
Terra Prometida; se os Claridosos sonharam com Pasárgadas; Corsino Fortes, à
semelhança de Aguinaldo da Fonseca e de Amílcar Cabral, quis que a Terra
Prometida fosse uma outra ilha dentro das dez já existentes, ou seja, Cabo
Verde.
Concordando com Ovídio Martins quando esconjurou a ida
para a Pasárgada, dele descorda, em parte, com anti-evasionismo que aquele vate
proclama em “Somos os Flagelados do Vento Leste”.
É
por sermos Árvore & Tambor” , no
chão independente das nossas ilhas, que, “Mesmo
Sendo, Já não Somos os Flagelados do Vento Leste”, escreve Corsino Forte.
Nesta parte da trilogia, a hora é para celebrar, com júbilo, a Festa da
Independência.
(…)
3.
Pedra de Sol &
Substância
Da Árvore & Tambor, com raízes bem
fincados no Chão-Nação e Estado-Nação, passemos ao terceiro elemento da
trilogia, ou seja, ao livro Pedra de Sol & Substância (a
reconstrução do Estado Independente), para analisar um fragmento do
poema Dragoeiro:
“Ó catedral &
proa de mil âncoras/ ó árvore de mil tambores// Da rocha ao rosto que me deste/
Do rosto à raiz que te dou/ Florescem no teu tronco/ o crânio de Deus + o fogo
povo/ Que nos abraça! Como/ Se o arquipélago já não fosse/ A tua Ordem/& as
ilhas + ilhéus! A tua Regra// (…) Dragoeiro! Das pernas do vale à face da
montanha/ As crateras modelaram/ Teu porte/ De porta-bandeira/ Entre o céu &
a terra/ Como se o teu umbigo De mundo largo/ Já não fosse! O cálice/ De sol &
substância/ no vulcão da Vida”.
A crioulidade, essa riqueza antropológica que o nosso “dragoeiro” simboliza, é fruto “d’un brassage de cultures” de
variadíssimas procedências, cada uma das quais com a sua riqueza e com a sua
expressão, fundidas num código único, a “Cabeça Calva de Deus”. O
reconhecimento da Cidade Velha, em
2009, e da Morna, em 2019, como Património da Humanidade são provas de que o
nosso “dragoeiro” pela idade e pela
falta de água já tem a cabeça calva; e pela experiência e riqueza já deseja
poder alcançar os atributos do Criador. Aliás, diz a Bíblia que o homem é feito
à imagem e semelhança de Deus. Então, o sonho do crioulo cabverdiano não é uma
ficção, é uma possibilidade, apesar da erosão, da seca e das lestadas do vento
leste.
(…)
Estas
são algumas ideias que a leitura de alguns poemas de Corsino Fortes provocou em
nós. Como dissemos já, A Cabeça Calva de Deus … é uma obra
aberta. A nossa leitura é uma das possíveis. Outros, lendo os mesmos textos,
poderão chegar a outras conclusões e é nisto que está a riqueza da poética de
Corsino Fortes.
NB: Extrato de um texto mais desenvolvido a ser publicado no meu livro Letras que Imortalizam.
Bibliografia
ALMADA José Luís Hopffer, (2009). “Corsino
Fortes – Poeta Artesão e Co-Artífice da Renovação da Poesia Caboverdiana
Contemporânea”. In Pré-Texto, nº 4,
II série, Homenagem a Corsino Fortes, AEC, Edição da Biblioteca Nacional de
Cabo Verde.
FERNANDES Fátima, 2013. A expressão metafórica do sentido de existir
na Literatura Cabo-verdiana contemporânea: João Varela, Corsino Fortes e
José Luís Tavares. Universidade de S. Paulo S. Paulo.
FORTES
Corsino, 2001. A Cabeça Calva de Deus:
Pão & Fonema, Árvore & Tambor, Pedras de Sol & Substância.
Lisboa, Publicações D. Quixote.
LABAN Michel, 1992. Cabo Verde: Encontro com Escritores,
vol. II, Porto, Fundação Eng. António de Almeida.
LEITE Ana Mafalda,1986. “Árvore &
Tambor ou a Reinvenção da Terra Cabo-verdiana”, in Prefácio a Árvore e
Tambor de Corsino Fortes, Praia/Lisboa, Instituto Caboverdiano do Livro /
Edições D. Quixote.
Idem, 1996. A Modernização Épica nas Literaturas Africanas. Lisboa, Veja.
LIMA Mesquitela,
1974. Pão & Fonema Ou a Odisseia de
um Povo. Luanda, Edição do Comité de Acção do PAIGC em Angola, Casa Amílcar
Cabral.
SANTOS
Elsa Rodrigues (2009). “A Obra Poética de Corsino Fortes”. In Pré-Textos,
nº 4, II série, Homenagem a Corsino Fortes, AEC, Edição da Biblioteca Nacional
de Cabo Verde
SPÍNOLA Daniel, 2009. “A Cabeça Calva de Deus: Uma Poética
Cosmovisão de Cabo Verde”. In Pré-Textos, Homenagem a Corsino Fortes, p. 7-23.
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