DIÁRIO DAS
ILHAS: A Saga que os “cronistas de serviço” omitiram, deturparam, ou deixaram
incompleta
A obra não é
tanto a exposição de um mundo, através do pensamento, mas sobretudo o processo
da sua formação, o do mundo da nossa crioulidade física, antropológica e
histórica, através do verbo.
Se a narração
vem em português é porque nos primórdios do mundo caboverdiano, a língua
crioula ainda não existia. A obra tem muito de ficção, mas também tem muito de
sentimento e de história. É por isso que no frontispício da mesma, o autor
concorda com o poeta português David Mourão Ferreira quando este escreve:
“… assistimos [hoje] à afirmação, sem
precedente, de uma ficção que à História recorre – tanto à História recente
quanto à História remota – mas para sobre ela triunfar, e até para a modificar
ou inflectir, por obra e graças do poder transfigurador do vero”.
E isto é tanto
verdade quando, em Eloge de la Créolité (19933:36-38), se diz:
“Notre
histoire (…) est naufragée dans l’Histoire coloniale … [ele] n’est pas
totalement accessible aux historiens. Leur méthodologie ne leur donne accès
qu’à la Chronique coloniale. Notre Chronique est dessous les dates, dessous les
faits répertoriés: nous sommes Paroles sous l’écriture. Seule la connaissance
poétique, la connaissance romanesque, la connaissance littéraire, bref, la
connaissance artistique, pourra nous déceler, nous percevoir, nous ramener
évanescents aux réanimations de la conscience … [Seule] la vision intérieure et
acceptation de notre créolité nous permettrons d’investir ‘ces zones
impénétrables du silence où le cri s’est dilué. C’est en cela que la littérature
nous restituera à la durée’, à l’espace-temps continu, c’est en cela qu’elle
s’émouvra de son passé et qu’elle sera histoire”.
Diário das
Ilhas é isto mesmo:
“paroles
sous écriture” que vão para além da crónica colonial, com recurso ao conhecimento
romanesco, sociológico, arquivístico, oral-tradicional, jornalístico, literário e artístico, para, através da força transfiguradora do
verbo e da alma crioula, preencher zonas de silêncio deixadas naquelas
“crónicas de serviço”.
A saga começa
com Naus Peregrinas, já desde os idos do século XV, navegando para Mar de Canal
e nos Mares do Continente fronteiriço, nos trilhos do pernicioso sistema
escravocrata, e fala das peripécias da operação e transformações várias
(físicas, antropológicas e outras) dos colonos e escravos que às ilhas
aportaram, desde a noite de 1460/62, até a manhã clarim do 5 de Julho de 1975, altura em que o confronto se tinha transformado em reencontro e o recém-nascido já tinha um nome de batismo: crioulidade caboverdiana..
Eis alguns
extratos apenas do primeiro dia do Diário:
Antes de mais,
entremos na Nau para a viagem a que o narrador, um tal poeta Jorge Barbosa, nos
convida, ou melhor, nos apresenta:
“Era antigamente/ a primeira nau de escravos/no rumo do Arquipélago/ rápida
navegando/ sob o impulso dos alísios”.
Cabo Verde
começou com uma nau, não uma qualquer. Era de escravos, mas também de
capitães-mores. Uma nau sem identidade porque a sua história estava ainda no
início, porque Cabo Verde ainda não era, estava para ser, porém o seu destino
começara a cumprir-se. E é no poema “Prelúdio” que o mesmo poeta afirma:
“… nessa hora então/ nessa hora inicial/ começou a cumprir-se/ este destino
ainda de todos nós”.
O estranho é que, de repente
“… abateu sobre a nau/
a maior tempestade do equinócio// Desmantelada/ o convés varado pela força/ e
pela iras sonoras da procela/ o navio flutuou três noites à deriva”.
Solitários, os escravo dominados iam aguentando, sem que houvesse
solidariedade, e nem tão-pouco as bênçãos do céu. É por isso que alguns
“… de olhos rígidos/ metálicos/ abertos/ foram com urgência/ lançados ao mar/ os corpos nus; putrefactos/ (…) Não houve orações/ nem foram lidos/ versículos tristemente/ na Bíblia de bordo// Talvez não houvesse nenhum/ temente e breve sinal da Cruz”.
Porém a viagem continuou porque
nem todos morreram; a viagem continuou porque a própria nau quebrada pela força
da tempestade foi de novo reconstruída; a viagem continuou porque o destino das
Baias tinha apenas começado. Após quinhentos anos, porém, isto é, a 5 de Julho
de 1975, o povo das Baias, até então sem estatuto jurídico reconhecido,
proclamaram a sua Independência e com o
Pai da nacionalidade e estratega da Luta de Libertação, cantaram:
“Sol, suor e o
verde e o mar.// Séculos de dor e esperança;/ Esta é a terra dos nossos avós!
// Fruto das nossas mãos,/ Da flor do nosso sangue;/ Esta é a nossa Pátria
amada // Viva a pátria gloriosa1/ Floriu nos céus a bandeira da luta // Avante
contra o jugo estrangeiro! // Nós vamos construir/ Na pátria imortal/ A paz e o
progresso!// (…)/ Ramos do mesmo tronco / Olhos na mesma luz:// Esta é a força
da nossa união! // Cantem o mar e a terra/ A madrugada e o sol/ Que a nossa
luta fecundou”.
Alguns anos depois, o povo das Baias, já num tempo que o
Diário das Ilhas não regista, visto que o seu horizonte ia até a Independência,
dava, na década de 1990, um novo salto na senda de um Estado de Direito mais
forte e de uma conquista mais robusta da sua liberdade e dignidade, e com um
dos seus poetas[1],
entoou um novo hino:
“Canta, irmão /
Canta, meu irmão / Que a liberdade é hino / E o homem a certeza //
Com dignidade, enterra a semente/No pó da ilha nua / No despenhadeiro da
vida / A esperança é do tamanho do mar / Que nos abraça / Sentinela de mares e
ventos / Perseverante / Entre estrelas e o atlântico / Entoa o cântico da
liberdade”
É assim que o Diário das Ilhas, através do verbo e da
palavra, procurou preencher, ainda que de forma incompleta, algumas zonas de silêncio
que a narrativa dos “cronistas de serviço” não conseguiram ou não desejaram
preencher. E isto é “exposição”, mas também é “reencarnação” do mundo crioulo,
pela palavra, pelo pensamento e pelo sentimento.
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