quinta-feira, 8 de março de 2012

A ARTE DE COZINHAR



Numa das minhas frequentes deslocações à Cidade de Assomada, encontro-me, casualmente, com a Dona Cesaltina. A mesma diz ter um pedido para me fazer. Como senhora respeitável e de fino trato, tendo eu aprendido a estimá-la desde a minha infância, disse-lhe logo que não recusava nenhum pedido seu, desde que o mesmo estivesse dentro das minhas competências e possibilidades.

A minha interlocutora repercutiu dizendo que estava a preparar um livro de culinária e que teria muito gosto que o prefaciasse. Senti algum desconforto perante um tal convite já que se trata de uma área  que não faz parte do meu labor quotidiano; porém, diante da candura daquele pedido, não senti a coragem em desapontar a Dona Cesaltina.

Foi assim que o meu nome surge nesta obra e é com muita honra que aceitei um tal  desafio. Em primeiro lugar, porque a autora é uma figura que marcou a minha vida e a de várias gerações de santacatarinenses, quer com os seus doces e guloseimas, quer com o sabor dos seus temperos no restaurante “Cozinha da Avô” que hoje é uma referência para todos quantos visitam a Cidade de Assomada. Em segundo lugar, por ela ser a companheira do meu inesquecível e estimado professor primário, Sr. Manuel Delgado, também ele uma figura que a minha geração não só respeita e estima, mas também agradece o seu rico e profícuo magistério.
E, ao pensar neste prefácio, lembrei-me logo da emblemática frase de Brillart-Savarin, datada do século XIX: «Diz-me o que comes, e eu dir-te-ei quem és». É uma sentença mostrando a importância da culinária na formatação de uma identidade. Somos o que comemos. A nossa cachupa é exemplo de como um prato passa a ser um símbolo poderoso de identidade nacional. Direi mais: depois da língua e da música, nada me parece mais reveladora da identidade de um povo que a sua culinária

Mas voltemos à obra “Cozinha da Avô”. Não sou especialista na arte de cozinhar. Porém, eu sei apreciar  os dotes de quem sabe fazer da cozinha um laboratório de criatividade.  De facto, as receitas da «Cozinha da Avó» ganham ancestralidade e magia, na medida que harmonizam os elementos e valorizam os produtos no seu meio ambiente. A comida, embora rotineira, se inscreve num corpo substantivo de materiais culturalmente derivados. E a cozinha caboverdiana é mais do que um somatório de influências. Ela reflecte um processo complexo de confrontos, associações e convergências. Sentímo-la nos ingredientes, nos modos e rituais de preparo, nas quantidades e nas formas de servir. Neste sentido, a autora não só faz arte ao confeccionar os seus variados e saborosos pratos como também faz a preservação e a valorização dos produtos da terra. E isto é uma atitude cultural, é um acto de cidadania.
A Dona Cesaltina sempre achou que era difícil escrever um livro; porém, ela escreveu muitos livros sem se dar conta do ofício da escrita. Com efeito, os seus livros não tinham páginas, tinham sabor; não tinham letras, tinham condimentos. As suas mãos, mais do que fazer a sintaxe das palavras, fazem a sintaxe dos ingredientes que entram na confecção de um prato ou de uma sobremesa. Uma forma de arte, tão digna como a de escrever um livro, pintar uma tela ou fazer um poema.
Pode crer, Dona Cesaltina, que Santa Catarina e Cabo Verde inteiro lhe agradecem o sabor e o tempero da sua oficina criadora. Este belo livro é a cultura da nossa gente na sua dimensão mais profunda e autêntica. E o Ministério da Cultura, sempre atento aos valores da nossa antropologia cultural e da nossa tradição ambiental, não pode deixar de reconhecer o seu talento e o seu contributo para o engrandecimento da nossa história e para a afirmação da nossa culinária.

Estou certo que não é só a cultura que tem a expressão da sua arte. Também o desenvolvimento do nosso turismo tem alguma cumplicidade nesse seu labor. Por isso, o Ministério da Cultura presta-lhe o seu melhor tributo e Cabo Verde o seu melhor agradecimento.

 “Cozinha da Avô” não só é o símbolo da nossa morabéza como também, de alguma maneira, representa o nosso orgulho. Com efeito, o prazer de um prato saboroso e o regalo de uma sobremesa  suculenta não nos podem deixar indiferentes.

Que a “Cozinha da Avó” tenha longa vida e que a sua musa inspiradora, com engenho e arte, continue a valorizar a nossa cultura, continue a dar o seu contributo na transformação de Santa Catarina num destino turístico procurado e apreciado.

Obrigado, Dona Cesaltina, por ter escolhido a arte culinária para escrever, para pintar e para esculpir o banquete da vida no chão das nossas ilhas e no coração da nossa Cidade. E para aqueles que ainda não tiveram a sorte de experimentar o sabor e as delícias do seu atelier-laboratório, fica aqui o convite de quem é um frequentador assíduo desse cantinho de surpresas e de novidades gastronómicas.
Muito mais poderia ter escrito neste singelo prefácio. Todavia, a prudência me aconselha aficar por aqui  deixando aos leitores e aos especialistas o ensejo de descobrirem o que o talento da autora tem para lhes oferecer, neste ano do 30º aniversário da Independência de Cabo Verde..


                                                                                             
Manuel Veiga
                                                                                          Ministro da Cultura     

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