sábado, 10 de março de 2012

 ALOCUÇÃO  POR OCASIÃO DA VISITA A CABO VERDE
 DO MINISTRO DE ESTADO E DA CULTURA 
DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL, Sr. Gilberto Gil


Cabo Verde e Brasil: Desafios da Cooperação Cultural


 Cumplicidades históricas

A história e a cultura que ligam o Brasil e Cabo Verde falam por si. Com efeito, no caldeirão onde essa história e essa cultura se formaram e se consolidaram, sobressaem vários elementos de cumplicidade entre os nossos dois povos e países, destacando-se:

a mesma potência colonial que partilhou connosco a sua língua e a sua cultura; a mesma escola de dominação, de escravidão, de resistência, de luta e de libertação; o mesmo laboratório rácico onde interagem a cultura do negro, do branco e do índio   ( no caso brasileiro); a mesma emergência de uma mestiçagem conseguida a partir do triângulo  África,  Europa e  Mundo;

uma música e uma literatura com cumplicidades de um meio ambiente, o do Nordeste brasileiro, muito parecido com o das nossas Ilhas, ambiente este que os nossos artistas e criadores souberam tirar partido. E isto no que diz respeito  à seca, à estiagem, à fome, à emigração,  à imigração, ao mar, às crenças e ao imaginário de um povo que foi dominado, de um povo que se libertou; um ecossistema em que plantas e animais caboverdianos foram levados para o Brasil (a palmeira, a cana do açúcar, o inhame, as primeiras vacas, cabras, ovelhas, cavalos) e elementos da flora  brasileira que foram trazidas para Cabo Verde como o milho, os feijões, a mandioca, a batata doce, a buganvília, etc.

     De se destacar ainda o carnaval que viajou do Brasil para Cabo Verde e que,             particularmente  nas Ilhas de São Nicolau e de São Vicente, conquistou o estatuto      de cidadania; a  telenovela brasileira que não só cativa o público caboverdiano        como elemento de diversão, mas também exerce um importante magistério sobre os         problemas sociais do Brasil e do mundo, como a violência, a exclusão, a  droga etc;        a telenovela ainda que já influencia até na toponímia das nossas Ilhas: o mercado      de Sukupira, na Cidade da Praia  e o restaurante Asa Branca, na Cidade de       Assomada, são alguns dos nomes emblemáticos que nos  chegaram via       telenovela.
      
    Tudo isto sem se referir à vaga de escravos que eram ladinizados em Cabo Verde     para depois serem levados ao Brasil; ou então à presença em Cabo Verde de alguns     Inconfidentes que foram deportados do Brasil para as nossas ilhas, na sequência da     revolta de 1792, chefiados pelo célebre Tridentes (Silva Xavier) que deixou, na     família Resende Costa, a marca da sua passagem por Cabo Verde.

   Não deixa ainda de ser relevante o facto de em 1823 ter havido um movimento que     pretendia anexar a ilha de Santiago ao Brasil

E se há tanta cumplicidade entres os nossos povos e países,  é justo perguntar-se como se encontra o estado de saúde das nossas relações.

Relações que cultivamos

Apesar da história e da cultura que  nos ligam, Cabo Verde e Brasil ainda estão longe um do outro. Já o poeta Jorge Barbosa, num poema ( Você Brasil) dedicado ao seu confrade brasileiro Ribeiro Couto, dizia:
        
         «Eu gosto de você, Brasil,/ porque você é parecido com a minha terra//...Eu 
         desejava fazer-lhe uma visita/ Mas isto é cousa impossível.// Queria ver de
         perto as cousas espantosas que todos me contam de você,/assistir aos sambas
         nos Mouros,/estar nessas cidadezinhas do interior/que Ribeiro Couto          
         descobriu num dia de muita ternura,/queria deixar-me arrastar na onda da
         Praça Onze./na terça feira do Carnaval.// Eu gostava de ver de perto o luar do
         Sertão,/de apertar a cintura de uma cabocla.../e rolar com ela num maxixe
         requebrado».

O mesmo Jorge Barbosa, que na impossibilidade de viajar para essa terra amada, em «Carta  para o Brasil», realiza, em sonho, esta tão desejada viagem:

         «Estou a ver-me entrando no Guanabara// para essa visita finalmente/que eu
tenho há muito tempo/guardada no meu desejo!// Não sei quando será.//  
Algum dia, meu amigo,/algum dia!// Quando o vapor atracar/talvez você me
conhecerá facilmente/se souber conhecer por palpite/os que são seus amigos.//  
Talvez me conhecerá/se ouvir a mensagem da minha simpatia/nesta telegrafia
silenciosa/do meu coração alvoroçado».
        

Hoje, o Brasil não está tão longe como nos tempos do poeta Jorge Barbosa que morreu em 1971. Hoje os TACV encurtaram a distância entre as Ilhas do Sal e Fortaleza, em cerca de 4 horas de viagem. Hoje, as nossas rabidantes (vendedeiras informais) deram-nos o exemplo de que o Brasil é um bom mercado. Hoje, alguns dos nossos empresários já se deram conta que o mercado de negócio não existe  só no Norte, mas existe também no Sul, particularmente no Brasil.  Hoje, temos vários quadros formados e em formação no  Brasil. Hoje, o sonho de Jorge Barbosa já não é uma missão impossível, mas ele está ainda longe de ser aquilo que todos nós desejaríamos.

Temos que aprofundar as nossas relações; temos que ouvir a mensagem de simpatia de Jorge Barbosa; temos que poder sentir o palpitar dos corações de caboverdianos e brasileiros para que a história e a cultura que temos em comum sejam o móbil para a construção de novas pontes e de novas alianças.

E deixar-nos guiar pelo palpitar dos nossos corações e pelas exigências da nossa história e cultura significa lançar novos desafios de aproximação e de cooperação entre os nossos dois povos.

Desafios que lançamos

A responsabilidade que eu e o Ministro Gil temos em reforçar as relações de cooperação, a diversos níveis, é uma responsabilidade acrescida. O meu homólogo, por ser artista e Ministro da Cultura; e eu, por ser homem de letras e também Ministro da Cultura, devemos encarar a nossa cooperação com razão, mas também com visão e arte.

E é a razão e a arte que vão inspirar, informar  e enformar as acções que, certamente, iremos retomar no Comunicado Conjunto.

Tais acções irão ganhar forma e consistência em parcerias estratégicas de investigação e divulgação da nossa história e cultura; de conhecimento e preservação do nosso património; de procura de elementos que caracterizam o tráfico negreiro entre Cabo Verde e Brasil; de intercâmbio e capacitação dos nossos artistas; de aproximação e maior inter-relacionamento dos nossos povos, a nível cultural, social e económico; de defesa  e afirmação da propriedade intelectual; de promoção das indústrias de cultura que, para o Brasil, é mais um elemento da sua diversificada economia, mas para Cabo Verde constitui o segredo do seu desenvolvimento auto-sustentado; de implementação do Acordo Ortográfico e de um melhor acompanhamento das actividades do Instituto Internacional de Língua Portuguesa.

E se conseguirmos dar corpo a  esses desafios com a sabedoria da cultura, com a cumplicidade da história,  com a subtileza da arte e com o pragmatismo que nos caracteriza, terá valido a pena o nosso encontro sobre o rochedo destas Ilhas que querem florir, e neste pedacinho da África e do mundo que quer viver, que quer vencer, quer partilhar.

                                                              Cidade da Praia, aos 8 de Dezembro de 2004

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