sábado, 10 de março de 2012

Texto de Apresentação do Livro da D.Cesaltina Benchimol sob o Título de: Cozinha de Avó

A Culinária é, ao mesmo tempo, uma arte e um artesanato cultural. Como arte, ela cria. Como artesanato cultural, ela reproduz e multiplica, para fins de subsistência biológica e de prazer do paladar, o universo de pratos, de iguarias e de sabores que corporizam a sabedoria alimentar de um povo.

Assim, através da culinária, através de mil receitas de pratos e de sabores  que um povo consome e aprecia, podemos descobrir uma faceta importante da identidade desse mesmo povo e da sua relação com a natureza e com os produtos orgânicos e inorgânicos que essa mesma natureza disponibiliza para as necessidades alimentares do ser humano.

A importância da culinária é tal que quase tudo o que somos, quase tudo o que fazemos depende daquilo que consumimos, daquilo que ingerimos.

Uma pessoa mal alimentada é débil, é fraca e pode até ficar doente. Uma pessoa bem alimentada é uma fonte de energia, de criação, de realização e de inovação, a nível biológico, cultural, social e económico.

A nossa saúde, a nossa força de trabalho e de criação intelectual, a nossa boa disposição dependem, em grande medida, dos nossos hábitos alimentares. E a cozinha afigura-se como um laboratório importante para as combinações, as transformações e o apuramento desses mesmos hábitos.

Porém, se a cozinha é o ponto de chegada onde os produtos são tratados e os pratos confeccionados, é preciso não se esquecer que os ingredientes culinários até chegarem ao laboratório de transformação e de apuramento, passam por diversas estações de produção ou de organização.

Muitas vezes, quando estou sentado à mesa, por exemplo ao pequeno-almoço, em que normalmente estou sozinho, olho para tudo o que está à minha frente: a mesa, os talheres, o café, o leite, o açúcar, a cachupa guisada e uma fruta que, normalmente, é a papaia ou a banana. Num cenário dessa natureza, muitas vezes, quase que inadvertidamente, começo a pensar nas pessoas todas que estiveram relacionadas com o meu café da manhã:

O guarda-florestal que plantou a árvore; o carpinteiro que fez a mesa e as cadeiras; o agricultor que semeou o trigo, plantou a bananeira, o cafeeiro ou a cana-de-açúcar; o industrial que preparou a farinha de trigo, que refinou o açúcar ou embalou o café, o padeiro que preparou o pão; o vaqueiro que mungiu e vendeu o leite; a rabidante que levou a banana e a papaia para o mercado; o empresário do supermercado que colocou à venda tudo quanto entra na minha dieta alimentar do pequeno-almoço; a empregada que leu a «Cozinha da Avó» e que preparou o pequeno – almoço, mas também o almoço e o jantar.

Não há dúvida de que o número de pessoas que entram no circuito dos nossos hábitos alimentares é grande, é diversificado.

Diz Fernando Pessoa que só quem não nasceu livre se sente solitário.

Ora, eu sentado sozinho, ao pequeno-almoço, ou em qualquer outra refeição, dou-me conta sempre que só é solitário quem não come.

Com tudo isto, quero dizer que no livro Cozinha da Avó encontramos receitas para a preparação de iguarias várias, mas também, indirectamente, encontramos receitas de como fazer a sociabilização, de como realizar a confraternização, de como construir cumplicidades solidárias.

O poder das receitas da Cozinha da Avó é inesgotável, não apenas por causa das receitas, mas também pela magia do espaço cozinha e do espaço refeitório.

Já falamos do valor das receitas na formatação da nossa identidade, na promoção da nossa singularidade e na construção da solidariedade e da interdependência humanas.

Vejamos outros poderes das receitas e da cozinha: se há um lugar, no lar, onde a família se sente unida e reunida, onde se dialoga e se comunica em família, onde também se forma e se informa, é, sobretudo à mesa das refeições.

À mesa do lar se pode amar, se pode confraternizar, se pode divertir, se pode educar. Mas também à mesa do restaurante se pode fazer política, se pode discutir projectos, se pode iniciar ou curtir um doce namoro, se pode organizar ou planificar uma acção  social, económica ou cultural.

Tudo isto já aconteceu na Cozinha da Avó, tudo isto já aconteceu por causa da Cozinha da Avó.

Eu mesmo já fui sujeito e já fui testemunha do poder das receitas, mas também do espaço-laboratório dessas mesmas receitas.

A D. Cesaltina, autora, mas também proprietária de Cozinha da Avó, com a sua «sagessa» de mulher-mãe e de artista do paladar e dos sabores vários, criou esse cantinho de amizade e apetrechou-o com ingredientes da solidariedade, da fraternidade e da singularidade caboverdianas. Com esta obra de arte e de dieta alimentar, a autora engrandeceu Santa Catarina e promoveu Cabo Verde.

Tinha razão quando, no prefácio do primeiro livro, eu mesmo tinha afirmado:

 «A Dona Cesaltina sempre achou que era difícil escrever um livro; porém, ela escreveu muitos livros sem se dar conta do ofício da escrita. Com efeito, os seus livros não tinham páginas, tinham sabor; não tinham letras, tinham condimentos. As suas mãos, mais do que fazer a sintaxe das palavras, fazem a sintaxe dos ingredientes que entram na confecção de um prato ou de uma sobremesa. Uma forma de arte, tão digna como a de escrever um livro, pintar uma tela ou fazer um poema.

Pode crer, Dona Cesaltina, que Santa Catarina e Cabo Verde inteiro lhe agradecem o sabor e o tempero da sua oficina criadora. Este belo livro representa uma das facetas da nossa cultura, na sua dimensão mais profunda e autêntica. E o Ministério da Cultura, sempre atento aos valores da nossa antropologia cultural e da nossa tradição ambiental, não pode deixar de reconhecer o seu talento e o seu contributo para o engrandecimento da nossa história e para a afirmação da nossa culinária.

Estou certo de que não é apenas a cultura que tem a expressão da sua arte. Também o desenvolvimento do nosso turismo tem alguma cumplicidade nesse seu labor.

Por isso, o Ministério da Cultura presta-lhe o seu melhor tributo e Cabo Verde o seu melhor agradecimento.

 Cozinha da Avô não só é o símbolo da nossa morabéza como também, de alguma maneira, representa o nosso orgulho. Com efeito, o prazer de um prato saboroso e o regalo de uma sobremesa  suculenta não nos podem deixar indiferentes.

Que a Cozinha da Avó tenha longa vida e que a sua musa inspiradora, com engenho e arte, continue a valorizar a nossa cultura, continue a dar o seu contributo na transformação de Santa Catarina num ponto de encontro e num destino turístico procurado e apreciado.

A autora do livro foi mulher e companheira do meu saudoso professor primário, Sr.Manuel Delgado, mas também foi e é professora de quantos com ela conviveram e convivem no laboratório da sua cozinha e da vida. Uma das suas alunas que com ela aprendeu o gosto pela etnografia como também os sabores e os requintes da sua mesa e do seu lar é a própria prefaciadora deste nº2 de Cozinha da Avó.

Obrigado, Dona Cesaltina pelo seu magistério, mas também  por ter escolhido a arte culinária para escrever, para pintar e para esculpir o banquete da vida no chão das nossas ilhas e no coração da nossa Cidade de Assomada.

 E para aqueles que ainda não tiveram a sorte de experimentar o sabor e as delícias do seu atelier-laboratório, fica aqui o convite de quem é um frequentador atento desse cantinho de surpresas e de novidades gastronómicas.

A todos, muito obrigado.

                                                                                                 Assomada, aos 9 de Maio de 2009
       
                                             

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